Saturday 19 May 2012

RV Pandit - A Chuva (1968)

Vem ó chuva
Trepidando
Em torrentes

Veio a chuva
Inundou os campos
Correu pelos campos
Dessedentou a terra
Germinou as sementes
Reviveu a várzea
Plantazinhas cresceram
Lavradores alegraram

Refreia-te um pouco, ó chuva
Deixa endurecer o lago
Aurear a espiga

O ouro entrarão em casa
Os lavradores comerão

Comerão os lavradores?
Como? Antes que levem
À boca a côdea
Virão demónios. Virão agentes
Para cobrar as dívidas
Do ano presente e do ano passado
De muitos anos atrás
Contas escritas em velhos livros
Compensação de três gerações

A várzea inundada
No tempo dos Ranes
Colheita perdida

Antes de saldar a conta
Outra inundação
Outra dívida
Dívida e juros

O meu avô morto
Antes de pagamento

Juros de dívida
E dívida de juros
Nos livros de contas do batcará

Caíram em peso
Sobre o peito do meu pai
E o mataram...

Antes que os juros daquela dívida
Rendessem mais juros
E incidissem sobre mim

O bisavó, o avô e o pai
Do batcará, já eram mortos

Hoje
Morreram todos os antepessados
Meus e os do meu batcará
Mas os livros de contas
De três gerações
Estão seguramente guardados
Nos cofres do batcará

Naqueles livros
Dívida e juros
Juros, de juros de dívida
Tem criado uma grande confusão
Um montão de dívidas
Nos livros do batcará

O agente do batcará
Ficará à minha porta
Ao tempo de colheita
Com uma longa folha de contas
Para arrecadar tudo
Arroz e palha
Os agentes levarão tudo
De que é que os lavradores viverão?
De que viverão os lavradores?
Se antes, os demónios
Tudo levarão?
Hão de partir tudo
Levar tudo...

Festa em casa do batcará
Lamentações em nossa
E lágrimas quentes dos meus filhos
Na canja fria...

Chuva vem de novo
Encher a lagoa de batcará
Para vangana
E chuva, vem
Vem na minha várzea
Só uma vez, meu amigo,
Para comigo chorar!

Armando Casal - Poetas Goeses: Clara Menezes (1954)

=Trazemos hoje para as colunas desta Página mais um nome que, de certo, não será estranho a um grande número dos que nos lêem.

Professora de ensino primário, há pouco ainda (1948), enveredou pelo difícil caminho da poesia que tem vindo a percorrer num desejo de aperfeiçoamento, estampado nas páginas que temos na nossa frente e que constituem “Flores Silvestres” – um livro em preparação.

Neste espaço de tempo, algumas vezes procurou o contacto com o público, enviando poesias para “A Vida” e “A Voz da Índia”. Concorreu aos Jogos Florais de 1951, entre outras, com a primeira produção que aqui inserimos.

Anseio é um soneto inédito onde Clara Menezes põe a marca duma evocação e dum desejo.

Poesia obrigada a mote

Sendo nada, eu dei-te tudo,

E tu só me deste nada



Fui grão de areia perdido

Nos teus olhos de veludo;

Nesse instante bem vivido,

Sendo nada, eu dei-te tudo.



Deste amor, fornalha a arder,

Dei-te a essência concentrada;

Dei-te a minha alma, o meu ser,

E tu só me deste nada.



Anseio

Loucos de paixão meus lábios poisaram,

Naquela noite fria de Janeiro,

À flor dos teus, celestial braseiro,

Em que os anseios mais caros se queimaram.



Nessa comunhão íntima juraram,

Mutuamente, amor puro e verdadeiro

Com os corações num ritmo fagueiro,

Frementes, nossos peitos em um arfaram



Sonho ou realidade? Doce enleio

Em que o meu ser se embala todo cheio

De esperanças que não serão quimeras.



Sim espero que o teu amor, agora

Terá aquele sadio vigor de outrora,

Mesmo volvidas tantas palavras!

Clara de Menezes - Caridade (1971)

Amo-vos, meu Senhor, no desgraçado,
Que à beira do caminho estende a mão,
P’ra pedir uma côdea de pão
E de vestir o corpo ensanguentado.

Amo-vos no inimigo assanhado,
Que sempre me injuria a reputação
E julgando-se o rei da Criação,
Planeia contra mim um atentado.

Amo-vos neste Sol que me alumia,
Fonte de tanta luz e de alegria,
Criadora de real felicidade.

Amo-vos na doença e no bem-estar
E até mesmo sem nunca me queixar,
Amar-vos-ei na cruel adversidade.

José Rangel - Autocrítica (1978)

Senhor, Deus meu!
Hóstia sagrada
No tabernáculo do meu sangue,
Nervo do meu nervo,
Suor do meu suor,
Vida da minha vida.
Sou livro aberto face ao Mundo,
Que me vê e me julga,
Ante o qual não me curvo,
Mas respeito-o,
Pois nele o meu viver,
Se entrechoca e se tempera.
De consciência alerta,
Que ora me impele ora me retrai,
Se me impus a dolorosa missão
De humilda pregoeiro da Fé,
Cônscio da minha imensa fraqueza,
Que o meu amor por Ti
A torna em força.
No báratro da Justiça
Vejo suspensa a minha vida,
Sentindo a Tua palmada
Quando me desvio,
Sentindo o Teu afago
Quando me endireito.
E nesse angustiante balanço
Me mantenho e caminho,
Vendo a Tua grandeza,
E a minha pequenez.
Em Ti, por Ti e para Ti
Vivo,
Hoje, amanhã, sempre!

Alfredo Bragança - As Noites Desejadas (1963)

O agricultor e o Bhattkará
A Deus pedem chuva e mais chuva
Para a sua várzea e coqueiros
Fecundar.
E lá vêm as noites desejadas,
Noites de Inverno,
Noites negras e cerradas...
O céu se reveste de luto,
Ziguezagueia no espaço o raio,
Sibila o vento, brame o vendaval;
Ronca sinistro o oceano, ribomba furioso o trovão,
As árvores açoitam sem dó as paredes...
Cobre-se tudo de escuridões medonhas
Sem lua, sem estrelas;
A chuva cai em fúria impetuosa, horrenda
Sobre o telhado... e em grossos cordões
Rola para o chão,
Abre carcavões, forma enxurradas:
Despenham-se com terrível furor
Os pedregulhos, rochas e penhascos;
O frio ríspido penetra pelas frinchas da casa,
Açoitadas pelo vendaval, choram de medo as vidraças
Geme lúgubre a natureza toda.
E perante esse quadro tétrico,
Qual o Ser-pensante que se lembra
Dos pobrezinhos... ossudos, esqueléticos,
Sem pão, sem vestuário, sem abrigo,
E sempre a tiritar de frio, tremer de pavor?

Thursday 17 May 2012

Telo de Mascarenhas - Em Defesa da sua Dama? (1975)

O Sempre-Fixe (este nome traz-nos sempre à ideia o título do jornal, irmão gémeo de “Os Ridículos”, fundado em Lisboa, por Amarelho), cronista das quintas-feiras de “O Heraldo”, querendo talvez competir com a Ala dos Namorados, saiu a estacada em defesa da sua dama – o grupinho que apodamos, com inteira razão, de Obstrucionistas, por terem querido passar-nos rasteira e palmar os frutos da actividades do Círculo de Amizade Indo-Portuguesa, sabemos bem com que intuitos.

Se o Sempre-Fixe tivesse lido o número especial do “Ressurge, Goa!” dedicado à Amizade Indo-Portuguesa e se conhecesse o nosso passado de anti-colonialista, mas defensor acérrimo da difusão e manutenção da Língua e Cultura portuguesas em Goa, ficaria elucidada acerca de Ideologia e Actividades do Círculo e não cairia no dislate de afirmar, equivocamente, que “Um dos seus pilares começou a amizade anunciando que de deviam acabar por completo todos os vestígios dos Portugueses não se compreende como passou a ser amigo”.

Ora, o que nós sugerimos, logo após a nossa chegada à Goa, liberto das masmorras dos colonialistas, foi que fossem varridos todos os estigmas do colonialismo (que era um opróbrio para a Nossa Terra e para nós) o que é diferente dos vestígios dos portugueses. Mas esta diferença subtil os espíritos obscurecidos pelo culto do colonialismo não podem compreender. Do mesmo modo, logo após o triunfo da Revolução de 25 de Abril, os seus mentores apagaram todos os vestígios de Salazar – a grandiosa ponte sobre o Tejo mandada construir pelo Ditador para perpetuar a sua memória, deixou de ser Ponte Salazar para passar a ser Ponte 25 de Abril; e todos os nomes dos apaniguados do homem de Santa Comba Dão, como Américo Tomás e outros foram varridos inexoravelmente da face da terra. E ninguém, em Portugal, ousou chamar-lhes iconoclastas, porque eles, os portugueses, de todas as escolas sociais são mais politizadas, do que nós, os ex-colonizados goeses. Ficam, pois, o Sempre-Fixe o os da sua grei elucidados, de uma vez para sempre, quanto a este assunto, para não virem lançar, volta e meia, aquela suspeição própria de cabeças obtusas, ou como quem faz girar o moinho de orações sem intenção nem devoção.

A Crónica que publicamos acerca dos Obstrucionistas não foi de animo leve, mas depois de termos estudado bem os intuitos e as intenções daquele grupinho, e foi um test necessário para extremar os campos, porque, como Cristo ensinou “quem não é por nós é contra nós”. E como disse São Pedro, o mais ardoroso discípulo e propagandista das Doutrinas do Mestre, calejando na dura faina de lançar a rede e pelos ventos desabridos do Tiberia – de, e que com uma espadeirada, decepara a orelha ao servo dum Rabino – “Quem o inimigo poupa nas mãos lhe morre”. E não somos dos que, quando nos esbofeteiam uma face oferecem a outra (um ensinamento hipócrita atribuído a Cristo que, como Revolucionário que era, deveria ser brioso e não um pusilânime, como querem os hipócritas para fazer das suas ovelhas cordeirinhos mansos).

No nosso artigo não procuramos fazer passar pelas ruas de amargura os obstrucionistas, como pretende o Sempre-Fixe, nem depois de eles discordarem de nós (quem os convidou não sabemos), mas na primeira reunião começaram logo por propor a representação da “Barca Sem Pescador” (julgando talvez brilhar no palco), proposta que rejeitamos por a peça não ser do autor português e justificando que do repertório do Círculo só podiam fazer parte originais portugueses e indianos, em português, ou adaptação de peças indianas. E aquela sua proposta ficou prejudicada, o que os amargurou deveras.

Um amigo comum que assistiu à Conferência de Imprensa do Círculo, mostrou-se muito interessado pelo programa delineado e compremeteu-se a arranjar elementos para se formar o elenco. E na reunião seguinte comparecerem os mesmo elementos com quem lá tínhamos travado conhecimento na reunião anterior. Como a sua proposta não tinha sido aceite, torceram o nariz para as peças originais propostas pelo Conselho de Leitura do Circulo a apresentaram na reunião seguinte uma proposta para uma espécie da sociedade de Coca-Cola, pelo que revelaram o seu interesse não pela arte, mas em saborear o precioso líquido de origem americana. Seria fastidioso esmiuçar este assunto de modo que os obstrucionistas chegaram a sugestionar o tal amigo comum que, depois disso se desinteressou completamente. Mas não há elementos insubstituíveis nesta Nossa Terra, graças a Deus – insubstituíveis e desinteressados.

A critica à peça “Barca sem Pescador” foi feita em “O Heraldo” a seu devido tempo, quase nos mesmos termos que nós, por alguém que não é verde na matéria. Só agora se nos ofereceu ensejo de nos referimos a ela para desmascarar abertamente, e não à socapa, o grupo dos obstrucionistas.

Nós ocupamos o posto de “pilar” como impropriamente diz o Sempre-Fixe, não por o ambicionarmos, mas no-lo ter sido imposto. E, cônscios da nossa responsabilidade, estamos empenhados em realizar uma obra válida, não nos poupando ao esforço para produzir peças originais adequadas aos intuitos do Cículo, indo a Pangeim sempre que é necessário galgando distancias, com sacrifícios de vária ordem. Tomamos o compromisso de bem servir a causa do Círculo. Esse compromisso estamos decididos a honrá-lo mesmo que tenhamos de pôr o pé no inferno, como soe dizer-se.

Gastamos toda esta cera para edificar o espírito do Sempre Fixe, para que os seus leitores não se deixem embair com histórias parciais e fantasiadas. No entanto estamos-lhe gratos pelos votos que faz no fim do seu artigo (“O Heraldo” de 30 de Outubro último, cremos que com boas e sinceras intenções) pelo “florescimento do Círculo de Amizade Indo-Portuguesa que receberá de braços abertos e coração exultante de alegria (há mais alegria no Céu por um pecador convertido do que por mil santos que nunca pecaram como disse Cristo. Apesar de nos apodarem de ímpio, conhecemos alguma coisa dos ensinamentos do doce Nazareno e os praticamos). Receberá de braços abertos, dizíamos nós, todos quantos, sem reserve mental, nele queiram ingressar.

Monday 7 May 2012

Tertuliano Lobo - Flores Silvestres: Uma Apreciação (1969)

O livro de poesias “Flores Silvestres” de Clara Menezes deve ser lido e relido.

É um conjunto de poesias, num português impecável, que nos eleva às nuvens, que nos faz esquecer das realidades da vida.

É como um bálsamo que nos alivia das dores das chagas da nossa alma. É um mundo de cor de rosa onde não há sofrimentos, onde tudo é belo. As aspirações, os desejos, os sentimentos, são os mais puros.

Clara Menezes não estuda homens vulgares, estuda e louva os mais perfeitos. Os homens são semi-deuses.

A poesia de Clara Menezes não tem sangue tropical, circula nela sangue frio, que não se pertuba quando nos fala de amor, ele corre calmo, sereno, impertubável, tal qual o Mandovi, após séculos de existência. Ela não é como uma fornalha que lança ideias ignes, soberbas e tempestuosas.

A poesia de Clara Menezes não mete dedo aristocrático na podridão do mundo, na miséria em que vive o homem. Não estuda os sentimentos instintivos deste animal racional, os sentimentos que o leva a arrasar mundos, a matar e morrer, a tornar-se ladrão e criminoso.

Não fala do amor, que é por todos querido, o amor, que todos procuraram, o amor, quente, gerado por carnes que se roçam, que se abrem, que se penetram, unem e desunem. Amor que faz dar vida e vidas cria. Amor esse que é glorificado pelos poetas de hoje.

A vida na poesia de Clara Menezes é uma suave brisa que embala os sonhos e cria sono...., que cobre tudo sem bulir em nada. Não é o vendaval que agita e põe tudo em tumulto por onde passa, descobre paixões, destampa podridões humanas, desenterra escândalos e põe ao sol dores e prazeres.

A palavra de Clara Menezes é a que o homem hipocritamente criou para chamar as coisas pelos nomes diversos.

A poesia moderna chama as coisas pelo seu nome, mas Clara Menezes evita isto. Educadamente salta por cima de tudo que seja feio ou pouco aristocrático... fecha os olhos quando avista dor humana, amor carnal, sentimentos baixos, atitudes desaforadas, e leva o lenço perfumado às narinas quando sente a proximidade da podridão social.

Engana e engana-se.

Na poesia de Clara Menezes onde a imaginação falha, socrorre-lhe o dicionário de rimas.

Os seus sonetos são exercícios escolares de poesia, com bom português.

Repórter X - Quem Tem Telhados de Vidro (1964)

Quem telhados de vidro tem
- Reza assim outro ditado –
Não atira pedras a ninguém,
Se é prudente e atilado!

De corda em casa de enforcado
- Mais um provérbio ainda diz –
Não se fale nem um bocado,
Não venha tudo à luz, num triz!

Conquistas, “uniões”, “mancebias”
Não as enterrou de todo a história,
Derriços, fugas, “galantarias”
Não passaram ainda da memória.

Basta, que tudo isto já fede
Nem merece o tempo que perdemos
Trabalho construtivo é o que pede
A hora tormentosa que vivemos.

Tuesday 1 May 2012

RV Pandit - A Palha (1965)

A palha
Quem a cultiva?

A palha
Nasce, cresce, morre
Por si só.

Viva, mata a fome.
Morta, faz o mesmo.

Vive ou morta,
Forma um tapete macio
Protegendo os pés... dos outros.

A serpente, oculta na palha,
É traiçoeira,
Mas a gente
Incrimina a palha!

A palha
Dá-se igualmente
Ao homem, ao gado,
À serpente, ao fogo.
Ela não se distingue,
Não discrimina.

Ao abrigo da palha,
O fogo devora.
E a palha?
Dá-lhe forças, sacrificando-se
A quem considerou amigo,
Dá-lhe tudo.
É o costume da palha,
É a sua grandeza,
É a sua moral.

Mas o mundo
Ignorante e cego!
Sem ver...
Se o fogo atiçou a palha,
Ou a palha atiçou o fogo,

Berra:
Fogo da palha!
Fogo da palha!

Visnum Porobo Sincró - Desponta a Aurora (1962)

O glorioso momento é chegado nesse dia
Em que nos foge a melancolia
Inércia produzida pela escravidão
De quatro séculos e meio de duração!

Pode-se exprimir a opinião certa
Hipocrisia desaparece sentidos desperta
Valor de independência hoje se conhece
Pesadelo de séculos num momento se fanece?

Irmãos! De mãos dadas unamos em laço fraterno
Não percamos o tempo, o conflito é eterno,
Ganha a independência, cuidar da paz interna.

Associemos pois e gritemos à una
Viva Goa, viva a mocidade goesa
Ao trabalho pois, à parte a questão interna.

Clara de Menezes - O Regresso do Imigrante (1972)

Andei errante pela terra e pelo mar,
Passei invernos bravios, secas ardentes,
Também gozei prazeres inocentes,
Mas nada iguala ao meu paterno lar.

Por isso venho para mitigar
A saudade dos meus queridos entes,
Que fartos de chorar pelos ausentes,
Partiram para nunca mais voltar.

Como tudo isto que me cerca é querido!
Pela primeira vez dei o vagido
No meio desta alcova cheia de amor!

Em vão sufoco o convulsivo pranto;
Lembrando os pais e irmãos em cada canto,
Sinto estalar o meu peito de dor.