Thursday 30 August 2012

Lino Abreu - Criação de Amor e de Ciúme (1968)

Cioso de mundo,
Do rir profundo
Que nele havia,
Um deus, um dia,
Meditabundo
Ao vale fundo
Duma alta serra
Desceu
Do céu
À leda Terra.

E ali, irado,
Transfigurado
Em um vulcano
No ódio insano
Só, ao luar,
Entrou a malhar
Setas ervadas
Que disparadas
Fossem ferir
O homem a rir;

Grave, colheu
A luz ao céu
Ao vinho a cor
O aroma à flor
E na ira ardendo
Foi os tecendo
À luz da Dor.
Co’o rubro ardor
Do fogo
E logo
Nasceu o Amor.

A noite escura
Pede a negrura;
À alma doentia
A hipocondria
Rouba tristuras
As sepulturas
E logo, horrendo,
À luz da lua
Co’a força crua
Dum fino gume,
E então
Na mão
Rugiu o Ciúme.

Assim quis um deus um dia
Rir-se de quem muito ria.

José Rangel - Meta (1978)


Arde-te o peito
Em ânsias de luz?
Segue direito
Onde a verdade te conduz!

Bebe a fundo
A Beleza
Que vibra no mundo
Da Natureza.

E à vazia mão
Que trémula se estende
Dá a bênção do pão
E a palavra que prende.

Abre a porta
Ao ente que não mascara;
Mas à grei hipócrita
Fecha-a à cara.

Abraça o Bem,
Estreita-o ao coração;
E para o Além,
Dirige a tua visão.

Alma candente,
Que lutas destemida,
É na sarça ardente
Que se sublima a vida!

Cyrano Valles - Saudade (1978)

Saudade!
Emoção divina!
Elo doirado
Entre nós e o passado,
Vislumbre íntimo
De róseos sonhos
Desfeitos em fumo e nada.

Passam dias e anos
Mas a saudade nos subjuga
Sempre numa suave tirania
Feita de amor e melancolia.

Saudade! Única e última consolação
Para o nosso atribulado coração!

Clara de Menezes - Esperança (1971)

Sofro com paciência a saudade,
Que me vem roendo o pobre coração,
Dias sucedem-se a noites de aflição,
Fazendo crescer minha ansiedade.

Vou amealhando com simplicidade
Grão a grão, os frutos da minha provação
E apoiada na Cruz da Redenção,
Guio-me pela tremenda tempestade.

Sei que o martírio a meio caminho,
Que estou a reunir devagarinho,
Para gozar, Além, da Luz, sem véu...

E quando o mealheiro se encher,
Cumprindo com rigor o meu dever,
Espero alcançar, meu Jesus, o Céu.

Wednesday 29 August 2012

Wilfredo - Levanta-te (1967)

Levanta-te, Goa,
Musa adormecida nas conchas do Concão!
Goa, eterna namorada dos poetas,
Levanta-te
E renega esses profetas,
Falsos e alheios ao teu coração!
Rege o teu próprio destino!
Que vale?
A culpa não é tua
Se nasceste princesa
Deste torrão latino!

Leonor Rangel-Ribeiro - Linda Goa (1966)

Oh linda Goa,
À beira mar plantada
Jardim de sonhos
E tantas ilusões
Minh’alma chora
Roída pela saudade
De tuas praias
E teus verdes arrozais.

Terra de meus amores
De lindas noites estreladas
Por longínquos mares beijada
E onde o sol tem mais fulgor.

Imorredoira Goa
Terra de Santos e de Heróis
Viverás sempre eterna
Nos nossos corações.

JS de Almeida - Vento Levou (1953)

À sombra acolhedora da ramada que estendia os seus gigantes e hirsutos braços na espessura da noite, Luísa segredava, toda repassada de soluços:

“Prometo que casarei só contigo, Daniel. Embora meu pai não queira, serei só tua, senão morro!”

E Daniel, expandindo-se com romântico orgulho perante aquela promessa tão grave, tão cheia de alma, achegava ainda mais contra o que seu peito varonil a linda cabeça, perfumada e leve, de Luísa.

Não havia tréguas em casa para Luísa. O pai já a admoestara contra esse enfadonho namorico, pondo o rapaz em ridículo, alcunhando-o de vadio, doidivanas e outros termos mais impressionantes para desarraigar do peito inocente da filha aquela erva daninha que lá se aninhara, Deus sabe por que meios.

- Se ao menos ele ganhasse, tivesse uma posição, uma carreira, vá, podias casar-te com ele. Mas, assim, naquele pé de vagabundo em que se encontra, vivendo às sopas da pobre mãe viúva, ele, um rapagão ocioso, não é para marido da minha filha.”

- “Mas, meu pai, ele diz que vai a Bombaim ganhar. Sabe inglês, e depois de assegurar um emprego, vem pedir à minha mãe”, argumentava a pobre Luísa, avançando uma faúlha de esperança contra as arremetidas lampejantes do pai.

- “Pah!” ria o velho Sousa Carvalho, como naquele “Pah” se reunisse toda a filosofia duma vida eriçada de experiências. “Ele vai a Bombaim arranjar uma carreira? A ver vamos, minha filha, o resultado dessa epopeia. No entanto, tu perdes o tempo em acalentar ideais tão pueris que só te podem acarretar desgostos e vexames.”

Mas Luísa, embora curvasse a cabeça em silêncio filial sob o trovejar paterno, sentia que o seu coração voava ainda mais sôfrego para o pobre Daniel, contorcendo-se aos seus pés, bradando a sua jura para que ele nunca duvidasse da sua inabalável fidelidade.

E, no quarto, afundando o rosto entre almofadas rondadas, sob o olhar compassivo da Virgem do seu oratório, ela chorava a sua sina, a macabra sina de amar tanto e não poder ter o homem para si. – “Ai, que será de mim, meu Deus, se me não deixam casar com Daniel?” murmurava consigo própria, entre arrancos de lágrimas, na calada da noite, quando tudo dormia e ela revolvia-se no seu leito de amargura, sem pregar olho.

Na manhã seguinte, já o seu rosto exibia a palidez – bem visível duma noite inquieta de insónia e fundas olheiras sombreavam o seus belos olhos, trazendo a mãe em cuidados e o pai de sobrolho carregado.

- “Tu estás a arruinar a saúde, minha filha” prevenia-a a mãe, observando-a de relance por sobre os óculos reluzentes, entre suspiros compreensivos, onde parecia pairar a fina saudade dum remoto idílio.

- “Mas mãezinha, eu estoiro se não caso com Daniel. Não sei que mania a do pai em ser tão adverso, tão cruel.”

- “Teu pai só quer o teu bem, e Daniel não tem poiçá de seu. Pensa, bem, minha filha. Quando o rapaz tiver a sua carreira, pode ser então que o teu pai se convença.”, justificava a mãe em quem, como em todas as mães, o coração sempre se inclinava com ternura pelos filhos desditosos.

Mas, carreira ou não carreira, Luísa estava insistente em nunca se separar de Daniel, com seu pai queira, para a dar em casamento a um remoto parente de África, que tinha chegado de licença, todo fresco do sertão e pingando libras. Não, ela não venderia o seu coração nem pelo trono da França. Daniel era o seu ídolo, a sua vida, o seu primeiro e único amor. Sem Daniel o mundo não existia para ela, como não existia o dia sem a luz do sol.

E, encostada à janela que dava para a rua, ela ficava horas infindas a fitar a ala sombria de frondosas arvores que ladeavam a avenida do Campal por onde ela enxergaria o passo lento e firme do seu amado.

O grande relógio de chorão da sala badalava às seis. Era a hora em que o seu pai andava pelos clubes ou bares, a jogar o bridge ou discutir politica. Era essa a hora em que Daniel devia “parecer para o maior regalo do seu coração que, morto de ansiedade pelo resto do dia, parecia reviver apenas naquele instante em que os seus olhos poisavam nos deles. Seis e meia e Daniel sem aparecer! Ali, que sustos, que desespero, que desvario naqueles olhos que escrutinavam o caminho... Mas, bom Deus, ele aí vem, infalível e firme como o seu grande amor, parecendo cada dia mais triste, mais magro, mal preocupado.

O coração de Luísa parecia vibrar de doida alegria. Oh, como ele me ama! Pensava ela. E, debruçada sobre a janela entre os vasos de cravos floridos, ela mirava num ardor de paixão reprimida aquele “rapagão ocioso”, aquele “vagabundo sem ceitil”, por quem ela daria a sua vida, com orgulho e firmeza, banhada numa poça de sangue. Por Daniel era capaz de tudo!

Sentado sobre o parapeito que corria ao longo do Mandovi, Daniel ficava horas esquecidas voltado para a janela, contemplando o rosto ansioso de Luísa, que lhe sorria à distancia por entre uma moldura de flores. Daniel sacrificava tudo para não perder, uma tarde sequer, o encanto daquela doce visão – visão etérea – como se uma linda fada se tivesse apeado dum conto infantil e pestado ali à janela numa radiância de luz e flores. Luísa reunia para ele todas as delícias do seu viver. Era o sonho constante, a sublime consolação da sua existência rasa de pobre amoroso.

Daniel sentia já o peso daquele amor a esmagar-lhe a vida inteira, e cedo, pensava ele, a tumba se fecharia por cima dos seus rostos, se ele não possuísse Luísa como sua mulher. Mas era preciso adquirir uma carreira, uma profissão, para poder mostrar a Luísa que ele era homem capaz de pelejar com a sorte, ainda que fosse nas selvas virgens do Amazonas, por causa do seu amor, e se possível fosse, de erguer sobre os seus largos ombros o mundo inteiro como o lendário Atlas. Ah, como ela então se orgulharia da sua força protectora, do seu másculo vigor, do seu imenso sacrifício, capaz de abrir caminho de pólo a pólo para ela passar como a rainha do seu coração! E um impulso infrene agitava-lhe o robusto peito, atiçava um brilho raro nos seus olhos sonhadores.

E então, ele volvia-se para as águas serenas do Mandovi, correndo silenciosamente por entre a beleza irresistível das suas verdes margens; o olhar inquieto vagueava pela fileira elegante de esguios palmeiras, pelos ricos bosques e fraldas verdejantes que se erguiam dentro lado do rio, onde a vida parecia estagnada, suspensa entre os encantos da terra e a paz dos céus e pouco mais distantes, assomava a fortaleza secular e denegrida de Reis-Magos, mergulhando a franja das suas históricas muralhas no histórico rio; mais ao longe, por entre as majestosas silhuetas de Aguada e Cabo. Daniel via a imensidade do mar, e horizonte longínquo e fosco, donde parecia acenar-lhe um futuro vago, cheio de promessas e aventuras. E, depois, todo esse cenário parecia diluir-se no crepúsculo da tarde, e a figura esbelta, de Luísa resplandecia no espaço, dominando todos os encantos, todos os belos sonhos.

Sim, pensava ele, por causa dela, ele tinha de fazer aquela arrancada pela barra fora, mergulhar-se naquele horizonte remoto, abraçar o destino por terras de além – para vencer ou morrer.

Quando caía a noite e o sr. Sousa Carvalho demorava em recolher-se à casa, Daniel segredava a Luísa, à sombra dalguma copada árvore da avenida, as suas esperanças, o seu sonho de ir cavar a fortuna lá por fora, por Bombaim, donde ele voltaria com um rendoso emprego e levaria Luísa como sua legítima esposa. E ela sorria, meio triste, meio acalentada por aquela vontade férrea do seu pobre Daniel, tão pronto em se bater contra o mundo, em seu sacrifício.

- “É, Luísa, meu anjo”, afirmava ele num tom de grandes realizações, “ou eu morro como um herói vencido no campo da lide por amor de uma donzela, ou volto coberto de gloria em honesta peleja, para a fazer minha, e só minha!”

- “Ai, Daniel, se tu morres, morro eu também”, repetia ela, orgulhava daquele “pobre vagabundo” que ia remexer céus e terra por causa do seu tamanho amor! “Se eu não te pertencer, Daniel, ninguém me terá – só a sepultura!”

As estrelas observavam do alto os segredos da terra, piscando os seus olhitos maliciosos. Pelas ramagens do Campal uma doce brisa beijava as folhas num leve sussurro, e o Mandovi, enchendo-se, marulhava no silêncio da noite.

A véspera da partida de Daniel para Bombaim raio como o fim do mundo. A despedida foi tremenda, angustiosa, Luísa não cessava de chorar, enlaçando seu peito como se aquele fosse o ultimo momento da sua vida, e Daniel os olhos rasos de lágrimas, refreando os soluços como homem forte e destemido, consolava aquela frágil figura da desolação e desespero. Ela pedia-lhe para não se demorar, para voltar logo, noutro mês, não, noutra semana, logo que tivesse um pequeno emprego, e a levasse consigo, pois uma separação longa a mataria de certo; e ele afirmava que embora o seu corpo estivesse distante, ele deixava ali o seu coração despedaçado. Não, ele nunca se esqueceria dela, nem por um momento! Como seria possível, se ele ia daquela arrancada com a fé firme de fazer dela sua esposa!

Na manhã seguinte com os olhos inchados de chorar, despenteada, indiferente a tudo que a rodeava, Luísa viu da janela, através da neblina de lágrimas, o barco sulcar o Mandovi, atravessar a barra, diminuir-se à distância apagar-se por além daquele horizonte longínquo, levando Daniel, a sua alma, a sua própria vida. Não comeu naquele dia, e por algum tempo vagueava pela casa, sumida e silenciosa como uma sombra, que até seu pai, temperado em rígidos princípios, se amolecer; a mãe não a deixava, rodeando-a de cuidados e carinhos.

Pelas tardes, como por um doce e pungente hábito, ela quedava-se à janela, alongando a vista, não pela avenida por onde não soariam mais os passos de seu Daniel, mas por aquele remoto mar, impassível e cruel, que a separava agora do seu ídolo. À noite descia silenciosa e negra, as estrelas seguiam seu imutáveis cursos ao longe, no negrume, as ondas batiam nalguma desolada praia, e no peito de Luísa rugia o tumulto duma saudade infinda, dolorosa...

***

Dez anos depois.

Na gare da estação ferroviária de Margão, o comboio silvou, avançou roncando ao longo da plataforma e estacou num chiar de rodas e ranger de ferros. Do compartimento de 1a classe apeou-se um cavalheiro alto, possante, de ombros largos, bem trajado, acompanhado duma senhora elegante e duma ninhada de filhos. Na confusão de passageiros que se acotovelavam uns aos outros, ele estacou de súbito a pouca distancia dum perfil que lhe pareceu deveras familiar. O perfil voltou-se ligeiramente.

“Luísa!” balbuciou ele, adiantando-se para ela...

“Daniel...” correspondeu ela, abrindo os lábios num sorriso vago, indeciso. Estava mais gorda, mais rosada, mais linda.

As mãos tocaram-se timidamente, os olhares fixaram-se num relâmpago.

“Depois de quanto tempo!” titubeou Daniel, imperceptivelmente.

“É verdade” disse ela, baixando as pálpebras, num frémito fugaz duma fugaz saudade.

“Então, Luísa, já estás...”

Nesse instante, uma criança com dois laços prendendo as trancinhas, correu para ela, puxou-lhe pelo vestido:

“Mãezinha, o pai está a chamar, o comboio não demora.”

“Vamos, filha” respondeu Luísa; depois, voltando-se pressurosa para o cavalheiro à sua frente:

“Folguei muito em o ver, Daniel”

“Muito prazer...” murmurou ele, levando a mão à aba de chapéu.

O guarda apitou. O comboio arfou, partiu, deixando atrás densos novelos de fumo que o vento apanhou, desfez, levou...

Laxmanrao Sardessai - Esperava, Esperava

Eu esperava, esperava ver
Surgir diante dos olhos esfaimados
O prato abundante
E ante os lábios sequiosos
Correr o fio perene
Do leite vitalizante
E cores novas sorrirem
Na face do infante!

Eu esperava, esperava
O pão em fartura ver
Na arca daqueles abençoados
Que venderam os seus ricos quintais
Para alimentaram os desgraçados!

Eu esperava, esperava ver
Os novos se curvarem reverentes
Perante aqueles abnegados
Que ofereceram em holocausto
O conforto dos seus lares

E queimaram nas masmorras
O viço dos seus anos
E sujeitaram às torturas
Os seus corpos delicados
Para conservarem puras
E cintilantes as suas almas
Quando a liberdade raisse!

Resignado, sofri o açoite do dominador
Mas soltei gritos dilacerantes
Quando vi os irmãos de sangue
Dançarem alvoroçados
No palco da escravidão!

Eu esperava, esperava
Que um dia com juros pagariam
Os seus ciúmes os celerados,
Entretidos em encher
A algibeira do graúdo
E reduzir a miséria do mundo!

Eu esperava, esperava
Que um dia pagariam o frango
Os criminosos que à custa do mercado negro
Da sua vida fizeram um deleite
E o mate vermelho humedecido
Com o suor do operário
Converteram em oiro
E arrasando as cabanas
Ornaram de diamantes
Dos lares as deusas!

Eu esperava, esperava
Que punidos seriam
Os malfeitores que com o frio metal
Desfrutaram o calor das belezas alheias
E com a graça orvalhada do Governo
Sazonaram as suas searas
E, cego da opulência,
Tripudiaram sobre a humanidade
E com artes de berloques
Espezinharam os simples!

Derramamos o sangue das nossa veias
Para dar à terra-mãe a cor da vida!
Era sangue vivo ou água incolor
O que se derramou?
Pergunto eu.

Como poderei, com essas mãos
Que tentaram, um dia, derrubar
As muralhas de Aguada
Limpar hoje o calçado nojento
Do governante actual
Com o execrável fito de me locupletar?

O meu verbo cintilante
Desafiou o fio cortante da espada
Que pendia sobre a minha cabeça,
Como poderei com o mesmo verbo
Adular o poder assente
Na glória emprestada?
São de escravos as vossas mãos
Habituadas durante séculos
Às algemas metálicas!
As vossas almas engaioladas
Temem, senhores, ventos livres!
Infelizes, como podereis beber
A fortes goles o azul dos céus?


Um noite de trevas densas,
À luz ofuscante do relâmpago
Eu vi tremeluzir
A imagem do nosso futuro...

Eu esperava, esperava
Que essa visão, tornando-se realidade,
Sorriria, qual querubim célestem
Nos olhos e nos lares,
Nas alfaias do camponês
Nas coroas das palmeiras
E nas ondas do Oceano.



Esperava enfim,

Que a minha Goa

Despertara para a vidam

Acalentando o mesmo sonho

E enfiando as asas do futuro

E bebendo os raios do sol

E penetrando as nuvens da loucura,

Voaria altiva no céu azul

Qual águia vitoriosa.



Thursday 23 August 2012

Augusto do Rosário Rodrigues - A Lâmpada da Democracia na Ásia (1965)

No âmago das florestas, nas ravinas e desfiladeiros
Os filhos da Índia Mártir, os lídimos pioneiros
Da paz lutam para defender esta pulcra terra
Dos tentáculos peçonhentos do polvo da guerra
Desta brutal agressão acre e dolorosa
Por provir duma nossa própria irmã um tanto maldosa...
Paquistão, quem és tu afinal pobre desvairado
Tu és simplesmente um índio desnacionalizado
Aos caprichos dos nossos últimos dominantes
Que, mais subtis que os pristinos quiromantes
Esfarraparam esta milenária terra secular
Transformando-a num caos estrambótico singular
Onde doces maciças do torpe comunalismo
Deram como resultante o presente cataclismo.
A Índia escrava fiel do seu antigo ideal
Vê tudo por um prisma que abstrai o mal
Arauto da Paz, construtora de jovens nacionalidades
A Pátria de Bharat lutou sempre pelo Bem em todas as idades
Ela que corria célebre apagar lutas de vários povos e gentes
Desgostosa vê na tortura das batalhas seus queridos entes
Lutando como leões numa unidade homogénea de irmãos
Sejam eles hindus, sikhs, budistas, moslems, parses ou cristãos
Pertencendo a raças díspares, credos diversos e língua diferente
Tudo constituiu um amalgama plurifacetado constituindo única frente?
Oh berço dos deuses o teu solo sagrado
É um poema primorosamente ilustrado
Onde cada página deleita o leitor mais caprichoso
Que se enamora loucamente do teu passado donairoso
Tu nunca foste amiga das guerras ó terra idolatrada
Quase sempre trocaste pela paz a gume da espada
Mas quando te afrontam e ferem sem motivo
Nenhum dos teus filhos quer continuar a ser vivo
E engolir uma afronta tamanha. Clamando pela vingança
Ergue-se numa massa o forte, o fraco, o jovem, o velho, a criança!
Camuflando ambições mesquinhas e triviais
Cavaram-se, entre irmãos, ódios sangrentos, fatais
Irmãos porque o sangue ancestralmente indiano.
E contudo no Cutch, Rajastan, e Lahore
Lutas fracticidas semearam o ódio e pavor
Destruindo sem dó nem piedade
As choupanas da aldeia e os Palácios da Cidade.
Hospitais, pontes, estradas e templos religiosos
São o pasto cotidiano desta horda de raivosos
Que em nome de Alah, único e sempiterno
Transformam a vida do próximo num inferno
Descendo como os hunos em famintas alcateias
Para pilhar, matar e estruprar em mansas aldeias
Onde o suave e fraternal credo gandiano
Proíbe a violenta efusão de sangue, a mentira, o engano
E é nestes sítios ermos e mal guarnecidos
Onde os habitantes modestos aldeões esquecidos
Das velhas perfídias, que este nosso irmão esquisito
Na embriaguez dum ódio ciumento de proscrito
Ao abrigo enigmático, doloso do cessar do fogo
Vai consolidando o seu sinistro jogo de aproveitar da nossa cândida seriedade
De acatar ordens e aumentar a velocidade
Os seus ataques tendo sempre em mira
A conquista do velo de oiro o paraíso de Caxemira.
Nesta pretensão injusta não vê que arrasta
O mundo inteiro a uma crise perigosa, nefasta
Em que ódios recalcados com hipocrisia
Mostram a calva ignóbil a luz crua do dia
E a patita dos índios este subcontinente tentador
Cimentado com tanto sangue, lágrimas e dor
Será o palco onde nações de continentes diversos
Mal avindos entre si e professando ideais adversos
Virão cevar seus ódios em território alheio
Que é afinal das contas o profícuo meio
De guardar longe das bélicas calamidades
O seu povo, as suas aldeias, as suas cidades
Mas esta miragem tentadora embriagante
Da Paquistão, que era promessa abiciante
Para nossos falsos amigos das bandas ocidentais
Foi uma das lições que não se olvidam nunca mais
Pois a Índia velho gigante que outrora tem vencido
Nas florestas insondáveis do seu torrão natal
Onde hunos, mongóis, e europeus tiveram um declínio fatal
Sacudiu seus membros possantes anquilosados
Por inúteis austeridades e ruinosos tratados
E com uma fé ardente nos destinos da sua pátria
Ergue-se arrogante, digno como o lendário Chatria
Para defender não somente seu património ancestral,
Mas numa luta sagrada do Bem contra o Mal,
Salvaguardar esta nobre e secular democracia
Contra uma nefasta e ditatorial teocracia
Que tenta arrasar para sempre da Sociedade
Este último Bastião Asiático da Liberdade!

Wednesday 22 August 2012

RV Pandit - Casa, Minha Casa! (1963)

Que é uma casa?
A casa é...
Um caixão de quatro paredes,
Onde o homem,
Desde que nasceu
Até o último estertor da morte,
Enclausurado fica.

É casa isto?
Não. É uma gaiola...

Um papagaio,
Atreito à sua gaiola,
Não voando em liberdade...

Não voando de ramo a ramo,
De árvore a árvore
De mato a mato...
Não voando para parte alguma,
Girando em volta da gaiola...
Palrando...

Mesmo assim,
Seria
Somente
Um papagaio na gaiola.

Mas... o papagaio
Voa em liberdade
O passado esquecendo,
Se, por acaso, encontra
Aberta a portinha da gaiola...

Mas, o homem...
Desde que nasceu
Até a morte,
Gira somente
Dentro das quatro paredes
Da sua gaiola
Palrando
“Casa... minha casa...”

Até a morte.

Laxmanrao Sardessai - Delícias do Paraíso (1965)

Sou bem-aventurado!
Porque em menos de um ano e meio
Está cumprida a promessa do paraíso!
E agora eu estou a nadar
Nas suas delícias!
O Ministro, coitado, não come arroz
Faz três dias e eu, felizardo,
Faz três meses!
No nosso bairro de vinte casas,
Os beneméritos assaltam cinco
Em três dias!
O B.D.O abre dois poços
Que custam três mil rupias
E da água nem uma gota!
O Mamlatdar assina documentos
E não compreende uma letra sequer!
O mestre da escola abandona as aulas
E visita as casas da aldeia
A ensinar aos pais
“Jajach Pahijê!”
Como, às vezes,
No hotel da cidade
E pago rupia e meia
E quando saio
Vejo que a minha pança
Está ainda vazia!
Um telegrama do meu velho tio
Expedido de Canácona
Em dois de Janeiro,
Chega-me em três de Fevereiro!
(E ironia do Destino!)
Quando chego ao mau destino
Estava o tio transferido
Para o céu!
A minha terra abunda
Em cocos – dizem
Mas eu compro dois
Por uma rupia!
E, às vezes, saem ocos
Na lauta boda que lá vai,
Migalhas cabem ao vizinho,
Sofredor político
Que deu seu sangue
Para elevar uns boçais
Às cadeiras dos governantes!

**
Estou a boiar
Nas delícias do paraíso!

Maria Flávia Xavier - Recordando (1965)

Meu lenço todo branco, de cambraia,
Comprado, um dia, aos vendilhões da feira!
Lindo presente que a minha pobre aia
M’ofereceu, p’los anos, prazenteira;

Como crianças que são da minha laia,
Fui de mil precipícios caminheira;
E aquela mulher, sempre de atalaia,
Amaparou-me, só eu sei, de que maneira!

Dia dos mortos! Sinto, na minha alma, o tédio
De a não ver, a nostalgia sem remédio,
Duma dedicação, como não há igual;

E, evocando aquele tempo tão remoto,
Trago, ainda, nas mãos, o lenço já roto,
Ao desfolhar rosas no seu coval!

Luís Furtado - Do Monte de Margão (1979)

Sentando num banco da encosta
Do monte da cidade de Margão
Admiro a linda vista que desfruta,
E que consola a minha solidão.

É digna dum pincel de artista,
A linda paisagem que desenrola,
Vista dos degraus da ermida
Dedicada de Piedade, à Nossa Senhora.

Lindas edifícios dessa Antenas Goesa,
E o comboio que qual serpente chega,
Verdes arrozais a perder da vista,
Selam no meu espírito a sua magia.

Se pudesse ficar aqui ficaria,
Como gostariam os discípulos em Tabor,
Admirando esse conjunto de simfonia
Que é um bálsamo a minha dor.

Tuesday 21 August 2012

Bicaji Ganecar - A Ponte do Mandovi (1970)

Sentado sobre a ponte
Do Mandovi, já completa
Quero cantar o mandó
Que no coração palpita.

O mandó é da espuma
Que aparece sobre a onda
E desaparece por si
Como o segredo da vida.

O palmeiral acompanhará
Esta minha cantiga
Dançando no ar
Com a ventania amiga.

O Mandovi sonhará
Ouvindo a minha canção
A sua lenda de Águada,
Dos tempos que já lá vão.

As duas irmãs sagradas
Que são Betim e Pangim
Acompanharão em coro
Esta canção sem fim.

O céu azul de Goa
É de todo risonho
Está a espera de
Se realizar esse meu sonho.