Monday 1 April 2013

Alfredo Dias - Apreciação Crítica de Adeodato Barreto (1966)

Adeodato Barreto foi um dos raros intelectuais da nossa terra que soube pautar a sua vida, conjugando os altos ideais que acalentou na alma, com acção positiva e persistente, embora à custa de sacrifícios sem conto. A sua prodigiosa actividade, quer no campo literário quer no campo social, que começou a desenvolver desde tenros anos, teve duração efémera. A morte cedo o arrebatou à vida a que com tanto entusiasmo de alma de agarrara. Mas a obra universalista e bem humanitária a que devotou a curta existência, basta para que o seu nome seja consagrado e inscrito, em letras de oiro, no panteão dos filhos mais preclaros da nossa terra.

Afigura-se-me tarefa impossível esquadrinhar a sua obra multifacetada adentro do tempo restrito que me foi marcado. E, mau grado, meu, fico obrigado a limitar o âmbito desta palestra apenas as características dominantes da sua obra.

Para tentar um ensaio critico da obra que Adeodato Barreto nos legou importa, antes de mais marcar, o seu âmbito quanto ao sentido humano e aos ideais que a informaram. Vejamos, em primeiro lugar, quais os sentimentos que inspiraram e orientaram a sua obra poética.

*

Acima de tudo, vemos através das enternecedoras páginas dos seus versos, perpassar a chama ardente da espiritualidade indiana, retratada num objectivismo tão comovente que bem se pode afirmar que Adeodato Barreto é um poeta indiano por excelência. Os seus voos líricos em prol da reivindicação espiritual da terra natal, pode-se bem afirmar, constituíram a preocupação dominante do seu espírito.

Vemos igualmente palpitar, na sua obra, um cântico de saudade vibrando de paixão pela grande Índia e por esta negada terra natal, cujas belezas são visionadas em êxtase pela alma sonhadora do poeta.

Ressaltam igualmente na sua obra, nitidamente, duas ideias fundamentais afirmando a beleza da sua crença, embora exaltada mas consciente, que leva o poeta às profundas e emaranhadas regiões do pensamento, perscrutando a vida universal, nomeadamente o panteísmo e a metempsicose (ou seja, a alma universal com elevação mais perfeita de tudo e a solidariedade de todos os seres da natureza).

Haurindo, nos princípios e doutrinas emancipadoras e igualitárias de Buda, a religião sublime da verdade e da não-violência que constituem a base da tolerância universal, sobre a qual se deveria assentar a nova forma de humanismo, tendente à comunhão dos povos; partidário de harmonias e defensor consciencioso dos sagrados e importais princípios e direitos da humanidade. Adeodato não foi apenas um defensor acérrimo do direito da emancipação da Índia. Foi muito além. Em algumas das suas composições poéticas, através de imagens fantasistas do poeta Adeodato, na fé ardente mas cândida de um sonhador impenitente, vaticinava a missão futura, reservada à Índia na pacificação do mundo conturbado dos nossos dias, e quiçá na condução dos destinos da humanidade.

Para não me alongar muito, cito apenas a parte final da sua poesia “Apoteose”, um hino de louvor e de exaltação da terra querida que lhe deu o berço. Eis a chave de oiro com que o poeta fecha o seu cântico:

Essa árvore, ó terra amada

Não é sonho!

Não é apenas miragem fugitiva

É a viva perspectiva do teu futuro risonho

(Na indecisão duma imagem de poesia,

Quantas vezes a verdade

Se anuncia!

Mas apenas a desfruta

Quem sabe reconhecer

Os seus fulgores dispersos.

Terra saudade,

Terra de beleza!

São luz e cor os meus versos)

Simplesmente;

Mas goza,

Procura compreender

O que há neles de profundo...

E se és actualmente

No Oriente

Uma princesa desditosa

Serás então com certeza

Uma Rainha, no Mundo.

Disse eu que Adeodato amava entranhadamente a sua terra natal; mas, ao dizer isto, não se deve inferir que o amor do poeta se limitasse apenas a isso. Não . O amor de um poeta, encarnando o ideal da perfeição humana, não podia ter um sentido tão restrito.

Esse amor pelos homens e coisas que fez de Adeodato um homem superior, era mais amplo e abrangia o Universo. À maneira dos rishis indianos, que embrenhando-se nos lugares ermos, tentavam resolver os problemas supremos da Vida, Adeodato foi bem um asceta que, recolhido dentro de si próprio, se interrogava sobre a razão de ser da dor humana. A limitação dos das possibilidades do auxílio ao próximo diante da imensa tragédia dos que sofrem, jamais fez diminuir em Adeodato o entusiasmo pela luta que travou sempre na esperança pela vitória decisiva pela qual se alcançasse o melhoramento do seu Homem. Esse Homem era para ele uma criação de espírito, que ajudou, de algum modo, a erguer com as forças de que dispunha.

Era bem grande a alma do poeta – tão grande que, alem da sua Índia, cabia nela o Mundo todo. É que ele estava compenetrado de que a sua acção, sobranceira aos limites dos estreitos de uma pátria, tinha um conteúdo e significação universais. Não fosse o seu pensamento tão amplo, as comunicações da sua alma excelsa não teriam tocado a alma dos ocidentais que viram bem nesse defensor do direito das gentes mais um apóstolo a enfileirar-se ao lado dos Grandes que pertencem à história do Mundo pela projecção da sua obra fecunda. Efectivamente Adeodato foi o homem universal, no sentido em que a definição serve para classificar o valor humano, cuja obra atravessa as fronteiras da sua pátria e começa a pertencer ao Mundo do Espírito. Essas virtudes que constituem a síntese psicológica do seu carácter, deram ao poeta o traço psicólogico de valor universalista. Por outro lado, o seu lirismo, ritmando as vibrações elegíacas da sua sensibilidade que, por vezes, chega a parecer sentimentalidade mórbida, deixou-se impressionar pela tragédia da dor humilde. Parecia o coração do poeta abrir-se para dar refúgio a todas as desgraças do Mundo.

Não havia dor que o não fizesse sofrer nem lágrimas que o não fizessem chorar. Haja vista uma sua passagem que vou citar da sua poesia “Confidências” a revelar a delicadeza do seu sentimento, uma sensibilidade quase mórbida perante a dor humana. Eis o texto:

É certamente uma alma bem pequena,

Esta minha...

Ontem, vendo à janela uma avezinha,

Quase morta de frio,

Até me senti doente,

Aquela criancinha,

Descalça e que, de fome,

Pouco fala,

Não passa que eu não chore

Ao contemplá-la

Não sou capaz, não posso,

Por mais que queira,

Pousar o pé sorrindo, indiferente,

Sobre um verme que arrasta tristemente

Seu mísero fadário na poeira...

Por vezes tenho pena

De ter assim uma alma tão pequena.

Se possuira uma outra, grande e forte,

Não me faltaria nada.

Mas que seria de ti

Ó criancinha nua que eu vesti?

Mas que importa

Que me importa ter a alma pequenina se cabe

Nela a dor dum mundo inteiro?

Mas Adeodato Barreto, como frisei já logo ao princípio, não se limitou a teorizar os seus princípios humanitários. Ele soube conjugar sempre os seus ideais com acção positiva e persistente em prol da humanidade. Seduzido pela beleza das doutrinas sociais, com esse estoicismo e abnegação que o impunham à consideração ainda dos próprios adversários, Adeodato soube como raros harmonizar os actos com as palavras. A sua bondade, o seu altruísmo granjearam-lhe, por toda a parte, carinhosas e abnegadas dedicações. Um exemplo apenas que aqui cito, basta para definir esta faceta humanitária da sua personalidade. Em Aljustrel onde Adeodato Barreto exercia a função de notário, havia um núcleo importante de mineiros, homens rudes, endurecidos pela lida penosa da dura profissão.

A Adeodato não lhe sofria o ânimo que esses infelizes, explorados pelo egoísmo humano, continuassem a arrastar essa vida inglória, sem ao menos lhes suavizar a alma com a assistência moral ao seu alcance. Abriu para eles uma escola onde, nos momentos de lazer, lhes ministrava ensino gratuito. Nesta escola, não só lhes ensinava ler e escrever mas ministrava-lhes pari passu educação moral sã, exercendo neles a influência benéfica dos seus sentimentos, essa doçura espontânea do seu coração amorável, criando assim em sua volta uma verdadeira auréola de santo.

E não se fez tardar o fruto desta sua fecunda acção educativa. Teve a recompensa consoladora de avaliar uma tocante manifestação de apreço pelas suas muitas virtudes de espírito e de coração. Estes seus discípulos, homens boçais, sabendo que o Mestre caíra doente, faltando-lhe meios de subsistência, levaram-lhe as migalhas colhidas com os maiores sacrifícios para lhe minorar, de algum mo (segue na 4a pagina)do, os sofrimentos dos mestre e amigo. Mais do que ler e escrever, os discípulos destas lições aprenderam a conhecer as virtudes do homem bom. O carinhoso semeador do bem verificava os efeitos do seu desinteressado mas belo trabalho de modelador de almas.

Mas não foi só nesta escola que ele revelou as suas qualidades inatas de pedagogo. |AA sua fecunda acção educativa desentranhou-se através de várias instituições e jornais que fundou ou dirigiu com o móbil de propagar ideais de pronunciado sentido educativo. Pode-se mesmo afirmar que toda a sua actividade literária ou social teve uma finalidade nitidamente educativa. Em toda a sua obra ele deixou o vinco da sua acção pedagógica.

Diz-se que o ideal pedagógico, a símile do ideal poético, manifesta-se como anseio da perfeição humana, ora desentranhando-se em fórmulas educativas no mundo de realidades tangíveis, ora manifestando-se em ritmos sonoros a evolar-se nas regiões etéreas da ideia pura. E não é raro notarem-se afinidades estreitas entre estas duas manifestações da alma humana. E pode-se dizer que esta afinidade admirável entre o ideal pedagógico e o ideal poético realizou-se em Adeodato Barreto, fazendo dele um poeta pedagogo – um educador por excelência, inspirado pelo génio da poesia.

Bibliografia de Adeodato Barreto

Verbo Austero (1930)
Civilização Hindu (Separata da Revista Seara Nova)
Democracia Orgânica (1931)
Sobre o Presente e o Futuro de Goa (1930)
Ideias Pedagógicas de Tagore
Poetas Luso-Indianos (1929)
Mahatma Gandhi (trad. da obra de Romain Rolland 1925)
Ensaios – Coletânea de Estudos sobre temas vários
Temas Educativos
Na Tribuna (Colectânea de discursos e conferências)
Erguendo a Luva (Colecção de Artigos em Defesa da Índia e dos Indianos)
O Livro da Via – Coletânea de Poesias (1935)

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