Monday 29 October 2012

Telo de Mascarenhas - O Tesouro Oculto (1975)

Findo o curso do Liceu, nas férias grandes, Dona Leocádia foi com o filho visitar a família de Luís Bernardo, parentes afastados que Carlos Manuel não conhecia ainda. E ao ver Rosália, de rosto oval de madona, dum moreno doirado, emoldurado de bandós negros, olhos vivos e expressivos, airosa e grácil, exuberante, sorridente e vibrante como uma corda tensa de violino, um doce enleio se apoderou do seu coração. Sentiu-se diante dela confuso e acanhado como um colegial. E os olhares furtivos de Carlos Manuel foram mais expressivos do que o mais belo poema lírico.

Quando estudante do Liceu Carlos Manuel fora um romântico impenitente; mas os primeiros rebates sentimentais da sua adolescência não tinham deixado vestígios nem causado danos ao seu coração.

Naquele primeiro encontro ele manteve-se distante e discreto sem deixar transparente o sentimento que lhe agitava a alma. Mas ela que, com o seu sexto sentido de mulher, adivinhara ter causado nele certo alvoroço, não se deu por achada e tratou-o com calma deferência e simulada indiferença, como se trata um parente de cerimónia.

Havia muito que as duas famílias não se visitavam. Mas agora que Carlos Manuel estava quase um homem, com dezoito anos feitos, precisava de conviver, de conhecer a parentela, de sair da concha em que sempre tinha vivido, e impunha-se à Dona Leocádia o dever de o apresentar aos parentes, e não fazer dele um ser esquivo e insociável como um animal bravio.

“Que curso vais fazer, Carlos Manuel? Com certeza não vais ficar só com o Liceu”, perguntou Dona Ubélia.

“Nesta terra onde não há muito por onde escolher, minha tia, só se pode ser Médico-Cirurgião ou então Adv., quero dizer, advogado provisionário, como toda a gente. Eu optei pela medicina, que para chicana não tenho jeito”, disse Carlos Manuel.

“É uma bela profissão para minorar o mal alheio”, observou Dona Ubélia.

“Eu estou a precisar dum médico na parentela para me curar dos meus achaques”, gracejou Luís Bernardo.

Rosália descera ao jardim, como era seu costume todas as manhãs, para colher flores de jasmim que, como minúsculos flocos de neve, salpicavam as moitas de jasmineiros junto do muro. Enfiava-as em grinalda com que enfeitava o cabelo apartado ao meio e apanhado atrás em carapito frouxo descaído na nuca, que lhe dava um ar langoroso e sonhador das heroínas dos contos de amor.

Carlos Manuel lhe dissera quando, no dia anterior, ela lhe aparecera com aquele penteado gracioso, circundado da enfiada de jasmina, como uma aureola: “Fica-lhe admiravelmente, bem esse penteado, Rosália. Por momentos tive a impressão de que eras uma figura animada dos frescos de Ajanta, caminhando para mim”.

Rosália sorrira e agradecera-lha, lisonjeada o galanteio.

Carlos Manuel desceu atrás dela ao jardim e disse-lhe: “Shakuntalá, no ermitério da floresta, devia ser como Rosália, amiga das flores e da natureza. E foi breve o seu idílio com o rei Dachanta. Também para mim chegou o momento de partir. O rei dera à filha adoptiva do eremita, como recordação, um anel com o seu nome gravado. E o quê me vais dar, Rosália, para eu me lembrar de si?”, perguntou-lhe Carlos Manuel.

“Nada mais lhe posso dar que valha tanto para mim como esta rosa, símbolo do meu nome e da minha afeição por si. Mas as rosas tem a vida efémera duma manhã e a sua lembrança morrerá com ela, certamente, e se esquecera de mim”, disse Rosália, pesarosa.

“Creia que, longe ou perto a sua imagem viverá sempre no meu coração e no meu pensamento”, asseverou Carlos Manuel.

“Com tempo veremos”, disse Rosália, com lágrimas na voz.

Dona Leocádia assomou à varanda e lembrou ao filho que eram horas de se porem a caminho. E a iminência da separação veio angustiar ainda mais os dois corações e interromper o breve idílio junto do jasmineiro.

Foi dolorosa a separação para os dois corações que mal preludiavam a eterna canção de amor. E Rosália sentiu pela primeira vez na sua vida, uma imensa dor no coração como se um punhal de indizível saudade o tivesse trespassado, traiçoeiramente. Perdera a habitual alegria de viver e andava triste e suspirosa, alheada e distante, gemendo em solilóquio: “Quando viras tu, quando?”.

A mãe perguntou-lhe um dia: “O que tens tu, menina, que andas a suspirar pelos cantos, como uma viúva?”.

“Não tenho nada, mãe. Então, o que é que eu havia de ter?”.

“Parece que ficaste com pena de não teres ido com a prima Leocádia”, disse Isabel, a irmã mais nova, em tom malicioso, olhando-a de soslaio, enquanto bordavam.

“Cala-te, minha pateta. Tu, que pareces que não partes um prato, sais-te com cada uma!” repreendeu Rosália com um sorriso triste.

Telo de Mascarenhas - O Tesouro Oculto

Bensaulim é uma aldeia de beira-mar, acolhedora e remansosa, aninhada sob as frondes das palmeiras, que o vento da tarde faz fremir como harpas encantadas.

As figueiras da Índia de porte majestoso e ramaria em umbela, são como naves silenciosas de catedrais, dando sombra e frescura à beira dos caminhos. Antigamente, aquelas árvores seculares, que a tradição santificara eram as guardiãs da aldeia. Sob a sua copa frondosa reuniam-se os aldeões, à tarde, finda a labuta do dia e, sentados em volta da peanha circular de pedra, assistiam à representações cénicas dos episódios heróicos e líricos das grandes epopeias, entoavam hinos a Hari, ou ouviam narrar os contos e as fábulas do “Panchachantra”. Agora, porém, perdido o seu carácter de ‘ficus religiosa’ e de centro social da aldeia, aquelas árvores acoitam na sua ramaria bandos de gralhas bulhentas e crocitantes e nos ocos dos seus troncos cobras de capelo oscilante e coruscante, com o tiara incrustada de pedrarias.

Em volta, várzeas e valados, cômoros e lagoas floridas de nenúfares, dão àquela aldeia o aspecto bucólico duma écloga pastoril. Para além das várzeas e palmares estendem-se as dunas e a praia de areias fulvas onde o mar espraia as suas ondas soluçantes, franjadas de alva espuma rendilhada.

Sobranceiro a uma grande lagoa fica o velho solar, bastante danificado pelo tempo, de Luís Bernardo, representante duma das mais antigas famílias daquela aldeia. Como quase todas as casas dos grandes propriedades rurais, a casa de Luís Bernardo havia decaído, devido não só ao grande estadão de vida que os seus antepassados levaram para honrar a tradição, com banquetes e bailes de espavento, mas também porque as suas terras, em parte hipotecadas ou alienadas, e cultivadas com métodos rotineiros, através de gerações, haviam empobrecido.

Com a sua estatura avantajada, olhar inteligente e nariz proeminente, Luís Bernardo, se em vez do seu democrático boné, bigode e mosca, arvorasse turbante rutilante de seda e pedrarias e barba frondosa, seria a imagem viva de guerreiro rajput das pinturas murais dos palácios principescos de Udeipur.

Luís Bernando tinha o ar afidalgado, maneiras requintadas e hábitos hospitaleiros. E não obstante a sua idade avançada, possuía espírito jovem e encarava a vida com optimismo e bom humor.

D. Ubélia, sua esposa e companheira de muitos anos, dera-lhe um filho e duas filhas. O rapaz, José Manoel, feita a instrução primária e aprendios os rudimentos de solfejo e violino, andara a estudar inglês com o fito de ir para África ganhar a vida. A filha mais velha, Rosália, era uma rapariga azougada e espirituosa, de olhos negros e sorriso gracioso. A outra, Isabel, sorridente e esquiva, parecia viver desprendida do mundo, como se tivesse feito o voto de renúncia e sacríficio. A mãe adestrara-se nos trabalhos de agulha e lavores, e elas com as suas mãos de prata, bordando e tecendo, supriam o magro orçamento doméstico.

A preocupação constante de Luís Bernardo era desencantar o tesouro oculto da família que, segundo a tradição, devia estar enterrado no quintal ou nos baixos da casa, como era uso nos tempos distantes de frequentes incursões das hordas de Bijapur e outros invasores, empenhados no saque e rapina. Com aquele tesouro dos seus antepassados contava Luís Bernardo restaurar o seu velho solar escalavrado e melhorar as condições económicas da família. E obcecado por aquela ideia fazia pesquisas diárias, dirigindo os trabalhos de escavação, revolvendo o quintal e os baixos da casa. Andava naquela faina havia anos, na ânsia de ver surgir à luz do sol o decantado tesouro. Tinham sido, porém, até então, baldados todos os seus esforços. Estava, por isso, pesaroso e decepcionado.

Uma tarde, findas as pesquisas do dia, dirigiu-se Luís Bernardo, extenuado e descoroçoado, para a sala de costura onde D. Ubélia e as filhas estavam atarefadas a bordar uma colcha a matiz, e, atirando-se para cima duma cadeira de espreguiçar, desafabou: ‘E não há meio de dar com ele. Maldita sorte a minha”.

“Com quê, meu pai?”, inquiriu Rosália, simulando curiosidade, embora ela soubesse muito bem a que queria referir.

“Ora, com que havia de ser?! Com aquilo que eu procuro. Com o tesouro da nossa família”, disse ele mal humorado.

“O pai espera ainda desencatá-lo?”, tornou ela com cepticismo.

“Porquê não, menina? A perseverança tudo alcança” disse Luís Bernardo com teimosia.

O pai já revolveu quase tudo. Por esse andar é bem capaz de deitar a casa abaixo. E se o tesouro não passa duma lenda, meu pai?” tornou ela a perguntar.

“Impossível, menina!”, disse ele com energia, quase agastado. “O teu avô sempre falava nele. Mas, grande politicão como era, mais interessado com as lutas eleiçoeiras e festanças do que com o bem estar da família, nunca se importou com isso. Dizia ele que tinha achado na livraria um pergaminho manuscrito entre as folhas dum velho códice, especificando as preciosidades que o tesouro continha: ricos “mohurs” de oiro do tempo dos mongóis, jóias e aljôfares, cintas e braceletes incrustadas de pedrarias. Uma verdadeira fortuna, capaz de tentar Genghis Khan”.

“Não teria Rauji Rane, aquando da incursão à nossa aldeia, desenterrado e levado o tesouro? Diz o povo que Rauji Rane levou um grande despojo da nossa aldeia”, observou Rosália com uma pontinha de malícia.

“Rauji Rane, ainda aparentado à nossa família, foi grande amigo do teu avô”, disse Luís Bernardo, com orgulho. “Ele foi um guerreiro que lutou para reivindicar os justos direitos do nosso povo. Não era um vulgar bandoleiro, e incapaz de uma acção dessas. Foram os outros, com certeza, que roubaram e saquearam à sombra do seu nome”.

“Deus o ajude a achá-lo, pai. Já é tempo de sairmos desta mediania”, disse, por fim, Rosália, conformada.

“Mesmo na nossa mediania temos sido felizes. Para que cobiçar grandes riquezas? Até Deus podia levar a mal”, observou D. Ubélia, com a sua resignação cristã.

“Ora, cantigas, mulher; Deus importa-se lá com as nossas necessidades?” volveu Luís Bernardo.

“Não sejas herege, homem, nem ambicioso”, censurou D. Ubélia.

“Não sou herege nem ambicioso, criatura de Deus! Apenas desejo reaver o que é nosso. E aquilo que foi dos nossos antepassados de direito nos pertence. Nem Deus pode levar a mal que assim seja”, replicou ele mal-humorado.

“E não vês que isso te tira o sossego do espírito?”, disse D. Ubélia para o aplacar. “Pois, sim! O maior desassossego é uma pessoa andar a tinir. E nem o céu se ganha sem trabalhos e canseiras”, disse Luís Bernardo, como que se quisesse pôr termo ao assunto.

Levantou-se e saiu resmugando, arrastando os chinelos para se ir refastelar no balcão e fumar, descansado, o seu cigarro.

Nisto, viu vir subindo os

(segue na 5a pagina)

degraus do balcão, com ares misteriosos e modos mesureiros, Manoel João, o casamenteiro. O ofício de casamenteiro é muito antigo nas aldeias de Goa, tão antigo como a própria instituição do casamento. Não há aldeia que não tenha o seu casamenteiro que, incumbido pelos pais com filhas casadoiras, leva a proposta à algum jovem, herdeiro rico, ou lançado na vida como funcionário público, por mais modesta que seja a sua categoria, porque um emprego público é aspiração máxima numa terra sem grandes horizontes nem perspectivas, como é a nossa. Ou então são os pais de filhos que voltam da África ou de Bombaim, com algum pecúlio, e os querem casar nas famílias de alto nível social, mas decaídas de fortuna.

Manoel João era o casamenteiro da aldeia. Pequeno proprietário, lançara mão daquela missão benfazeja que lhe dava o direito a uma percentagem sobre o dote, e comia a dois carrilhos – da família da noiva e do noivo.

Luís Bernardo, pressentindo ao que ele vinha, acolheu-o com o seu hábil ar galhofeiro: “Então, Manoel João, que bons ares o trazem a esta sua casa!”

Há muito tencionava fazer uma visita ao batcará, para saber da sua saúde”, disse Manoel João com a sua manha habitual.

“Bom, bom, não há razão para sustos. Sente-se, Manoel João, e conte como lhe corre a vida”.

“Se o batcará dá licença”, disse ele e sentou-se na extremidade de um banco. “A vida vai mal, batcará, muito mal. A minha profissão está a dar pouco. Uma crise pavorosa. Cada vez recorrem menos aos meus bons ofícios”.

“Então, que quer Manoel João? O preceito “crescei e multiplicai-vos” não se coaduna com estes tempos de vacas magras. No entanto, não me consta que alguém tenha feito voto de celibato”, disse Luís Bernardo.

“O mundo está perdido, batcará”, tornou Manoel João. “A gente nova faz pouco caso dos nossos bons e moralizadores costumes. Pegam em namoriscar e as duas por três estão casados sem se importarem com o futuro, quer dizer, com o dote nem com os conselhos dos pais”

“Mas isso é óptimo, Manoel João. Porque, afinal, quem se casa são os filhos e não os pais”.

“Vejo que está demasiadamente moralizador e pessimista, Manoel João. Então, assim, pela hora da morte, os seus bons ofícios de casamenteiro?”

“É como diz, batcará. O meu ofício não dá para mandar cantar um cego”.

“O meu amigo já fez uma razoável fortuna. Podia agora descansar e gozar o que ganhou casando os outros”.

“São mais vozes de que as nozes, batcará. Eu ando nisto devido a extrema necessidade que tenho de ganhar a vida. A propósito. Trago a proposta de filho de Manoel da Anastácia que, como sabe, voltou há pouco da África. É muito bom trabalhador, e deve dar um bom marido”.

O filho de Manoel da Anastácia que abalou há anos, quase descalço, para África? E como chegou ele a fazer fortuna, homem?”, perguntou Luís Bernardo.

“A África, como o batcará sabe, é um El-Dorado para quem tenha expediente e habildade. Dizem que o rapaz andou no mato a vender aos pretos riscado pelo preço do brocado e fez fortuna.”

“Magnifico, Manoel João! Esta proposta pode fazer a sua fortuna. Não o poupe. Ele que andou a esfolar o negro, pode enchê-lo de oiro.”

“Eu tinha pensado numa dessas filhas do batecará. É um belo partido. E a sua filha seria tratada como uma rainha.”

“Deus me livre falar-lhe nisso. Eu conheço bem as minhas filhas. O oiro nunca as tentou. Veio bater a má porta, Manoel João.”

“Para falar verdade batecará realmente a diferença de famílias é um grade empecilho. Contudo, há precedente. Como sabe, o filho de Gertrudes piladeira, que tem grandes estabelecimentos em Mombaça, onde ele é vice-consul de Portugal, casou com a filha do batcará da Casa Grande”.

“Cada um sabe as linhas com que se cose, meu amigo”, disse Luís Bernardo, causticante.

“O batcará não leve a mal o meu atrevimento. Pensei que talvez chegássemos a um entendimento e o casamento se fizesse. Visto isso, retiro-me, se me dá licença”.

“Pois bem, Manoel João. Estimei vê-lo”, disse Luís Bernardo, despedindo-o.

Manoel João levantou-se, limpou ao lenço encanado as bagas de suor que lhe perlava o rosto e, vendo goradas as suas diligências, foi descendo os degraus do balcão, arreliado com a sua vida, cabisbaixo e vexado, como um cão batido, murmurando entre dentes: “Pobres mas soberbos”.

Ao jantar, Luís Bernardo deu a novidade à família: “Sabem quem esteve cá esta tarde?”

“Quem foi”, perguntou D. Ubélia.

“Manoel João”, disse ele.

“Manoel João, casamenteiro? E o que é que ele queria pois? Quis saber Rosália, ardendo de curiosidade.”

“Vinha com a proposta do filho de Manoel da Anastácia para uma de vocês”.

“Do filho de Manoel de Anastácia que chegou há dias da África?” perguntou D. Ubélia.

“Esse mesmo. Mas eu tirei-lhe as ilusões”, disse Luís Bernardo, autoritárian.

“Deus me livre de casar com o filho de Manoel de Anastácia; nem que ele fosse pintado a oiro. Prefiro ficar solteira toda a vida”, foi o comentário tempestuoso de Rosália.

“E tu, Isabel, o que dizes?”, perguntou Luís Bernardo à filha mais nova, para a arreliar.

“Eu não quero casar. Quero ficar a fazer companhia aos meus pais”, disse Isabel, corando.

“Nesse caso terei que arranjar um ghor-zaoim, um genro estabelecido”, disse Luís Bernardo, divertido, o que a fez arreliar ainda mais.

“Não digo com o filho de Manoel de Anastácia; mas porque não hás-de casar, Isabel? Queres ficar para tia?”, disse Rosália com o seu ar chistoso, e acrescentou: “Já estou a ver a nossa Isabel de pano-baju como as tias clássicas das famílias antigas, devotas e beatas”.

E Isabel, ante a observação da irmã, conservou-se calada e cabisbaixa, e ficou a remoer o seu amuo e a sua timidez.

Telo de Mascarenhas - O Emigrante (1975)

Luís Bernardo era regedor de aldeia. Com o seu saber e experiência de vida, administrava Justiça nos limitados domínios da sua jurisdição, com raro tacto e rectidão. Era, por isso, respeitado e acatado; e os seus concelhos tinham força da lei para a pobre gente da aldeia.

Todas as manhãs, de fato branco, o casaco abotoado até ao queixo, o boné encafuado na cabeça e a bengala que era o seu bastão de mando, dava o seu passeio habitual para se inteirar da vida do burgo, ouvir as queixas e reclamações e dar-lhes pronta solução.

A vida de regedor da aldeia não é um mar de rosas. Contudo, a par de trabalhos, arrelias e canseiras, tem também as suas compensações. Todo o africanista ou bombaísta que regresse após longos anos de labuta no Continente Negro, em Bombaim, ou como embarcadiço nos grandes transatlânticos, é ao regedor-batcará que faz a sua primeira visita com alguma lembrança, e pinta-lhe com cores vivas e até com cores por sua conta e risco, as coisas maravilhosas que viu na Grande Índia e na estranja, no que, não raro, leva a palma ao famoso Marco Pólo.

João António era filho de gente modesta. Inteligente e empreendedor, com o seu sonho de transpor mares e ver terras novas, estudara a algumas classes de inglês na escola de Jackson e fora para Bombaim para se empregar a bordo. E era agora dispenseiro dum dos barcos da P&O, que faz carreiras para Europa.

“Pode crer, batcará”, disse João António a Luís Bernando, “aquilo é que são terras ricas e progressivas. Grandes cidades, grandes e florescentes centros industriais.. E nós aqui a foassar nestas aldeias atrasadas em tudo.”

“O que é que tu queres, João António? Se todos vocês, emigrantes, estivessem de acordo podíamos fazer grandes melhoramentos na nossa aldeia”, disse Luís Bernando.

“E sabe, batcará, como ‘elas’ lá fora, identificam os goeses?”

“Hum, - como é?”

“Eu conto. Uma noite, em Marseilles, fui, com mais dois companheiros meus, visitar uma daquelas casas de luxo das professional beauties, por mera curiosidade, para ver como aquilo era por dentro e se correspondia à realidade aquilo que me tinham contado. Veio sentar-se ao meu lado uma rapariga muito loura, muito pintada, e perguntou-me: “Êtes-vous Goannais, mon chéri?”. “Oui, mademoiselle”, respondi-lhe.

Vai ela, então, sem mais cerimónias, mete a mão pelo peitilho da minha camisa para ver se eu trazia ao pescoço a corrente de oiro com a cruz.

“Com que, então, os goeses lá fora são conhecidos por trazerem ao pescoço a corrente de oiro com a cruz?”, disse Luís Bernardo soltando uma das suas estrondosas e divertidas gargalhadas. “Essa é de primeira ordem. Hei-de contar isso ao nosso vigário para ver com que cor ele fica”.

“Deus nos livre, batcará. É capaz de barafustar no púlpito e chamar imoralões aos emigrantes”

“E o que pensas fazer agora, João António?”, perguntou Luís Bernando.

O ghor-mand é o terreno em volta da casa que sendo pertença do dono da propriedade, este impõe aos seus moradores ou mundcars, obrigações verdadeiramente onerosas: e as várzeas das Comunidades são os grandes proprietários que as tomam de arrendamento em haste pública ou gaun-pon, disputando os lanços em lutas renhidas e as sub-arrendam aos pequenos cultivadores sem terras, mediante rendas exorbitantes, explorando-os sem comiseração. Por isso, ser dono da casa com uma nesga de terreno em volta para servir de logradouro, e uma pequena várzea onde possa semear arroz no tempo das chuvas e, em tempo seco pimenteiras, legumes e batata doce para consumo doméstico, abrindo um poço quando se não tem serventia da lagoa para aguar a plantação, é o maior sonho do mundcar o que lhe dá o desafogo e a satisfação de ser um pequeno proprietário e o liberta das condições onerosas do sistema de mundcarato.

Outra compensação para a vida de regedor de aldeia são os ‘brincos’ goeses e vem de longe aquele costume, de quando os jograis iam de aldeia em aldeia, de corte, representar os episódios heróicos e líricos das nossas grandes epopeias e lendas doiradas.

Música estridente de flautas e tambores anuncia a aproximação de ‘brinco’. E a gente da aldeia acorre; pressurosa e exultante, para se juntar à volta dos cantadores e bailarinos que, nos seus trajes de fantasia, adornos e coroas auriflamantes de papel doirado, cantam, mimam e dançam as façanhas bélicas de Ramá e Ravon, dos Pandavas e Kauravas, os jeitos de audácia e bravura de Shivaji e Custobá (um herói local) ou comentam, com graça e chiste, malícia e bom humor, a vida da gente da aldeia, numa espécie de revista do ano, para gláudio do auditório.

Telo de Mascarenhas - Advogados e Solicitadores (1975)

Todas as tardes, por volta das seis, José Gregório fazia o caminho da estação para casa, de regresso de Margão, e costumava parar no balcão de Carlos Manoel para dar dois dedos de conversa ao amigo, com novidades frescas colhidas no botequim de David Camilo ou na sala de espera da gare do caminho de ferro e, às vezes, quando dispunha de tempo, para uma partida de xadrez.

José Gregório era vizinho de Carlos Manoel, e ambos, quase da mesma idade, tinham cursado o Liceu juntos. Feito o exame para advogado, e obtida a provisão, José Gregório abrira banca em Margão. Todos os dias ia ele com a pasta atulhada de papeis de demandista, tomar o comboio, na sua via-sacra quotidiana, para o escritório e para o tribunal. Arguto e hábil, de olhos vivos armados de óculos de grossas lentes faiscantes, tinha criado uma razoável clientela, alem da que herdara do pai, que fora um advogado consciencioso e honesto. Jogando habilmente os artigos do Código como jogava as pedras do xadrez, engrolava os juízes, novatos na profissão e desconhecedores das tricas e dos costumes forenses da terra, e conseguia fazer vingar as causas que lhe eram confiadas.

“Imagina tu, Carlos Manoel”, dizia ele uma tarde ao seu parceiro do xadrez, referindo-se aos Licenciados, oficiais do mesmo ofício, “aqueles senhores, lá por terem cursado Direito na Universidade fazem alarde do seu título de Doutor e pretendem saber mais do que nós, com o nosso simples exame de advogado”

“Não admira que assim seja, José Gregório”, observou Carlos Manoel. “Também nós, os médicos, com o nosso curso da Escola Médica de Goa, de via reduzida, no dizer do Dr. Brito Camacho, não podemos competir com os diplomados pelas Faculdades de Medicina”.

“Ora, bolas! Eu só queria ver a figura que fariam esses senhores togados, de enorme prosápia, perante os nossos grandes advogados doutros tempos, com o mesmo exame que nós, como o Avertano, Bruto da Costa, Lourencinho e outros, que mereceram louvores dos grandes mestres do Direito.”

“Esses, sim. Foram grandes advogados e podiam ombrear com os luminares do foro, em qualquer parte. Mas hoje em dia, sem desprimor para si, José Gregório, não temos nem grandes advogados nem grandes causas”

“Tens razão, Carlos Manoel. Concordo, plenamente, contigo. Infelizmente assim é. Nós, agora, vivemos de migalhas e não passamos de cepa torta. É sina nossa”

Rosália veio servir o chá, e José Gregório levantou-se muito cerimoniosamente, para a cumprimentar. Continuaram a jogar, até que Carlos Manoel, movimentando a rainha, deu cheque-mate no rei do parceiro, e disse: “Por hoje, basta. Já tens a tua conta, José Gregório”.

“Ora veja, minha senhora”, disse José Gregório, dirigindo-se à Rosália, “Veja como um médico descamba um advogado no xadrez e dizem que nós é que somos chicaneiros”.

“Bem dizem os ingleses – Lawyer is liar. Na língua que nós falamos não rima; mas deve ser verdade. A vossa chicana é mais de temer, porque pode levar à ruina os litigantes. Enquanto que a nossa, se chicana se pode chamar, é no inofensivo xadrez”.

Passaram a beber o chá louro e perfumado, que Rosália deitara nas chávenas.

“Na verdade, não há como mão de mulher para preparar um bom chá. Nós, os homens, somos desajeitados e sem gosto”, disse José Gregório, continuando a saborear a aromática bebida.

“Obrigada pelo elogio Sr. José Gregório”, disse Rosália, agradecendo.

Tomando o chá, José Gregório levantou-se para retirar, dizendo: “Agradecido pelo seu excelente chá, sra. D. Rosália. E agora, deixem-me ir, que devo ter gente em casa à minha espera. Não calculas, Carlos Manoel, como é espinhosa a profissão de advogado”.

“Espinhosa, sobretudo, para os teus clientes a quem tiras coiro e cabelo”.

“És dum sarcasmo mordaz, Carlos Manoel. O que vale é que não passa de boca”, disse ele sorrindo para o amigo e despediu-se; “Bem, até amanhã, à hora do costume”.

E lá se foi gingando, ajoujado, com a pasta atulhada de papeis de demandista.

Esperava-o, sentado no balcão, o procurador Belmiro, com dois clientes, para recorrer aos seus serviços para uma composição amigável numa disputa de limites, que o próprio solicitador suscitara e alentara com os seus conselhos tortuosos, esperando fazer disso uma mina de inconfessáveis proventos.

José Gregório era para o procurador Belmiro um advogado de recurso, de quem se valia para casos urgentes e embaraçosos, que não sabia solucionar, como aprendiz de feiticeiro que era, e por trabalhar por conta dum advogado de Margão.

“Então, Sr. Belmiro, que bico de obra temos nós hoje?” perguntou-lhe o advogado.

“Coisa de nada, Sr. José Gregório. Estes meus clientes querem ouvir a sua opinião para se resolver uma disputa sobre limites”.

“A minha opinião em casos desses só posso dá-la após prévia vistoria ao local. Mas a hora é imprópria”, disse José Gregório.

“Se o Sr. José Gregório não se importasse, podíamos ir lá agora, que é muito pertinho daqui. É que, um dos meus clientes retira-se amanhã para Bombaim”.


E como o caso de esbulho era patente, a disputa foi prontamente solucionada, comprometendo-se o esbulhador a corrigir a extrema.





O procurador Belmiro para se dar ares de pessoa atarefada, sentado sob alpendre de olas entrelaçados da sua casa, que fazia de escritório e servindo-se duma velha Remington, quase desconjuntada, desatava a escrever a toda a gente aquilo que lha dava na real gana – as autoridades civis, reclamando a destituição do regedor que não lhe fazia bom pêlo, dificultando-lhe as manigâncias: as autoridades eclesiásticas, suplicando-lhes a transferência do vigário, por denunciar nas suas práticas dominicais, os que não observavam o décimo mandamento: aos prováveis compradores de algum prédio à venda em hasta pública, apoucando-lhe o valor e o rendimento, para os afastar da concorrência, com o seu espírito de cambão inveterado, para compra-lo por tuta-e-mais.

O procurador Belmiro era uma espécie de gestor de negócios de defuntos e ausentes, mas mau prestador de contas. Para se furtar ao pagamento da renda de prédios que arrendava, desculpava-se alegando o desaparecimento do negociante do coco, sem lhe ter pago. Deixava relaxar as contribuições que eram de sua conta, para descontar na renda e procuradoria pelos serviços prestados para evitar a execução.

Ia assim aumentando a sua fazenda por artes de tricas e baldrocas, e engordando como um bom burguês, porque o seu sonho era ser também um batcará, como todos os grandes batcarás da terra e fazer-lhes sombra. Homem de poucas letras e algumas classes de inglês, metera ombros à vida com o fim de fazer rapidamente fortuna.

Um dia, um aldeão foi procurá-lo no seu “escritório” sob o alpendre, para lhe pedir um conselho. E como ele o tratasse por ‘Sr. Belmiro’, o solicitador abespinhou-se e disse-lhe:

“Dobre a língua, seu begarim, e trate-me por Sr. Doutor, porque eu sei muito mais de leis do que muitos advogados que por aí pululam, quase tanto como os Licenciados – esses senhores de grande prosápia que, quando peroram nos tribunais, vestem túnica negra, como se lhes tivesse morrido a avó torta. Forte danação! Sem aqueles charlatães, que bem que eu teria governado a vida! Não tenho grandes estudos, é certo; mas a manha e a chicana são o meu segredo:.

O pobre homem ouviu em silêncio e a pé firme a longa objurgatória do procurador Belmiro, sem lhe atinar o sentido. Mas quando compreendeu o sentido da expressão “governado a vida”, fez meia-volta e safou-se, apressadamente, com receio de que o solicitador mal-humorado o despojasse das úncias duas rupias que levava atadas na ponta do lenço, sob o pretexto de lhe ter dado um bom conselho.

Aljube, Janeiro de 1961

Friday 26 October 2012

Laxmanrao Sardessai - Ouço os Teus Passos, Senhor

Eu ouço teus passos, Senhor,
Na brisa suave da manhã
Vejo o esplendor do teu sorriso
Na luz áurea do sol nascente,
As aves e as árvores
Acarinhadas pelo vento
Comunicam-me o teu canto misterioso
E, a chuva abundante,
Inunda-me da tua graça infinita,
A tua generosidade, sinto-a, Senhor,
Nos rebentos que saem espontâneos da terra
E o azul celeste retrata
A tua alma universal
Vejo isto...
E me curvo reverente
Perante a tua omnipotência
Mas quando vejo uma velhinha,
Carcomida e benta,
Oferecer a um pobrezinho
O arroz da sua tigela,
Lágrimas borbulham nos meus olhos
Retratando o infinito amor
De que palpita toda a criação!

Friday 12 October 2012

Evágrio Jorge - Menezes Bragança (1966)

Recai hoje o 28o aniversário do falecimento de Menezes Bragança que foi justamente considerado o Maior de Todos os jornalistas de Goa.

Nasceu aos 15 de Janeiro de 1878 em Chandor, filho de Juveniano Menezes de Calapur das Ilhas, advogado que chegou a exercer o cargo de Juiz de Direito. A família de sua mãe, Stael de Bragança, não tendo deixado descendente masculino, fez estabelecer o genro no seu solar e impôs ao neto os apelidos tanto do pai como da mãe. As duas casas eram ricas em posses materiais como em dotes intelectuais. Porém, Luís teve a infelicidade de perder o pai aos 7 anos de idade.

Seguindo o praxe do tempo, Luís fez os seus estudos no Seminário de Rachol e depois no Liceu. Aqui, com excepção da marata, obteve distinção em todas as outras disciplinas. Entrou a seguir na Escola Médica, onde era um dos primeiros dois alunos distintos. Mas logo no primeiro ano foi acometido de febre tifóide, tendo de convalescer por um ano. Aproveitou deste ano para leitura mais vasta e universal. Ganhou gosto de ler as melhores obras literárias. Conhecendo várias línguas como latim, português, francês, e inglês, e tendo franca queda para literatura e ciência, procurou estar ao par das melhores correntes nestes dois campos. Sendo rico, podia abalançar-se a trazer os mais recentes livros e revistas da Europa, que recebia regularmente.

Com os conhecimentos assim adquiridos, o seu talento privilegiado floriu precocemente e, antes de atingir vinte anos de idade, escrevia para jornais como O Heraldo e

(Segue na segunda página)

Nacionalista e enfileirava-se entre os intelectuais do tempo.

Influenciado por Rénan e os enciclopedistas franceses, Menezes Bragança seguiu o trilho de livre pensamento. Animado pelos ideais de Igualdade, Fraternidade e Liberdade, fez-se o paladino da democracia. Em um tempo fez parte do Corpo Redactorial de O Heraldo.

Quando Portugal declarou-se República, por cuja causa se batera denodadamente, Menezes Bragança aspirou melhores dias a Goa e ofereceu o seu apoio ao primeiro governador da República Couceiro da Costa. Pensaram muitos ao tempo que Menezes Bragança fizera-se pró-governamental. Mas, quando verificou que um outro governador, Freitas Ribeiro espezinhava os direitos dos goeses Menezes Bragança serviu-se da sua pena para o atacar.

O seu jornal “O Debate” batia-se pela democracia e pelas liberdades da terra. Esse jornal além de exercer grande influência no governo, preparou uma geração de espíritos progressivos. Não há um só assunto que não tenha versado. E cada assunto que versava, fazia-o com uma superioridade única.

Afim de canalizar as aspirações populares pelos métodos constitucionais, Menezes Bragança serviu-se do Congresso Provincial de Goa. Foi eleito presidente deste organismo em tenra idade. Foi também escolhido para sócio do Instituto Vasco da Gama.

No tempo da ditadura, Menezes Bragança serviu-se do jornal Pracasha para atacar o governo bem como para criar a consciência livre no nosso povo. Racionalismo, ciência e democracia, era os ideais que o norteavam. Batia-se por eles com denodo, mas nunca se rebaixou-se aos ataques pessoais. Era admirador de Jesus, o doce rabi de Galileia, mas não aceitava a Igreja com a única e genuína depositária da doutrina. Insurgia-se conta a injustiça, fosse ele afligida num pobre ou num padre. Era de opinião que devíamos aceitar todas as coisas boas de Europa e também que devíamos prestar atenção aos novos ventos que sopravam da Índia.

Menezes Bragança pugnou valentemente pelos direitos do povo goês. Batendo-se pel República Democrática, tornou-se jus à gratidão da maioria hindu da nossa população, que até então vivia espezinhada. Quando o Governo português fugia de nos outorgar a prometida autonomia administrativa, propôs a abstenção das urnas. Finalmente quando Dr. Salazar brindou-nos com os epítetos de indígenas e assimilados e arrogou à Nação Portuguesa o direito “de possuir e colonizar domínios ultramarinos”, propôs no Conselho de Governo a seguinte moção:

“A Índia Portuguesa não renuncia ao direito que têm os povos, de atingirem a plenitude de sua individualidade, até virem a constituir-se unidades capazes de dirigir os seus destinos, visto ser um direito originário, da sua essência orgânica.”

Uma vintena de anos passados sobre esta moção, a Índia Portuguesa ganhou o direito originário de liberdade. Foi este o maior tributo à sua obra.

Lino Abreu - Os Goeses (1966)

Já se suponha escrava a alma goesa,
De luta incapaz, já sem hombridade,
Na masmorra do Ócio eterna presa,
Jamais sonhando a sua liberadade.

Deita então a cobiça na “Fraqueza”
Olhar que não conhece a saciedade:
“Tão só! E p’ra mais tão fraca a Princesa!”
Fácil é tê-la toda a eternidade!”

Mas não tarda ela a ver o claro dia
Romper nos que julgava escuros céus,
E a “fraqueza” tornar-se em valentia:

Bravos viu lendo ao mundo feitos seus
E onde pensava bravas não havia
Quantas Joanas d’Arc! Quantas, meu Deus!

Sunday 7 October 2012

Versos de RV Pandit (1963)

“O Meu Rico Amigo”

O meu corpo
É despido
De roupas...

E
São farrapos
As poucas roupas
Que visto.

Não me despreza,
Por isso.
Pela Pobreza
Das minhas roupas.

O sol me veste
Com tecidos de oiro...
E a Lua
Com tecidos de seda
Cor de pérola...

De cobrir o corpo
Dia e noite
Com tais tecidos
Deus me deu
A grande fortuna!

Deus me deu
E só a mim,
Não se esqueça.

“Um faísca só”

A lâmpada
Está
Cheia de azeite...

O pavio
Imerso no azeite...

Está
Tudo pronto
Para receber a Luz.

Mas...

Entre o azeite
E o pavio
Falta a faísca
Que os há de incendiar
Escuridão em toda a parte

Assim
Entre o corpo social
E o pavio do seu coração
Para humanizar a sociedade
Falta só uma faísca

Sem ele...
Nunca haverá luz

Tradução do original concani por Mucunda Quelecar.

Mucunda Quelecar - Um Acontecimento no Mundo Literário de Goa (1968)


Viram a luz da publicidade, no dia 25 do corrente mês, cinco livros de poesias do poeta goês, RV Pandit.

Exprimir em palavras o que o génio dum poeta sentiu e traduziu na sua linguagem é talvez uma das tarefas mais difíceis que há; “é preciso ser-se um Milton” diz-se. Para apreciar o poeta RV Pandit não tenho senão uma qualidade: é ser goês e amar Goa como ele.

O sr. Pandit escreveu os versos não tendo em mira a publicidade, mas simplesmente para o desabafo do seu temperamento de artista, extremamente sensível ao mundo que o rodeia. Ele acalentou durou dez anos essas manifestações que traduziam a sua alma de poeta. Acontecimentos posteriores fizeram com que o poeta achasse necessário e oportuno que os seus versos saíssem à luz da publicidade!

Os cincos livros do poeta RV Pandit marcam uma época na vida da literatura e pensamento goeses. Em si, esses livros representam uma revolução na vida goesa. O sr. RV Pandit é um goês no mais íntimo das suas fibras e quando ele fala, é Goa que fala pela sua boca.

O sr. Pandit identifica-se com tudo o que Goa possui. Não há objecto, forma ou feição que lhe tenha escapado. É admirável a sua penetração em todos os detalhes da vida goesa. Tal penetração só é possível a quem ama entranhadamente a sua terra.

O sr. Pandit é goês e é revolucionário. Os seus versos atestam o facto de que ele atravessa todas as convenções literárias e sociais para atingir a verdade latente em que se vê.

No prefácio a um dos livros “Ailem toshem gailem” (I sang as it came, Eu canto como me apraz) diz o poeta laureado Baqui Borcar: o poeta Pandit, ao contrário doutro poetas não respeita a tradição. Quando eu li os versos de Pandit fiquei perdido numa floresta mas quando avancei fiquei encantado com a majestade natural dela. Essa era a voz do aborígene goês que até hoje não tivera uma oportunidade de se exprimir.

Lembrei-me de Walt Whitman, os versos de Pandit tem um estro, uma imaginação, uma revolta, uma ironia e uma tendência marcada para o sublime”.

Uma característica desse poeta é o seu anseio pela justiça social e o seu humanitarismo.

Outro livro seu aparece sob o título “Mogem Utor Gaudiachem (A Mminha fala dum Gaudó). O autor está tão identificado com a vida dum gaudó que ele exprime tudo o que essa entidade goesa representa. O gaudó é filho da terra, a sua base de sustenção.

Mas a sociedade não o considera, e todavia ele é imortal e passa por todas as vicissitudes sociais sem se alterar.

Sou um gaúdo – diz o poeta. Os outros são grande gente, mas eu sou um gaudó desprezível. Mas há uma coisa em mim. Podeis esmagar-me! Mas não fico pulverizado. Sou o mesmo homem, hoje e amanhã.”

Falando dele diz outro poeta goês Dr. Manohar Sar Dessai: “RV Pandit fala a linguagem dum gaudó. Ele é o filho aborígene de Goa. Goa tem passado por vários regimes políticos, várias mudanças económicas, mas o gaudó tem-se conservado firme. Ele é a base da nossa sociedade. Tem uma vitalidade inexaurível.”

Outros três livros são: Uitalem tem rup dhartalem (Form that will remain), Dharturechem Kavan (Song of the Earth) e Chandraval (Phases of the Moon). Todos esses cinco livros representam o génio versátil e polifacetada do artista e poeta que é o sr. RV Pandit.

Eles não só assentaram um marco miliário na literatura goesa na sua língua mas quando a língua de Goa for reconhecida no mundo, haverá para a nossa terra um prémio internacional.

Laxmanrao Sardessai - Não Desanimes (1965)


Não desanimes, rapaz,
Porque os teus maiores estão
Desanimados e retirados.
O ideal que arde
Nos teus olhos e lábios,
Vale muito mais
Do que a sabedoria e erudição
Que são como os ventos
Que passam.
Enquanto o teu ideal
É como a semente
Às vezes, invisível
Que no solo grela, germina
E lança raízes fundas.
Não desanimes, rapaz!