Não olhas para as linhas
Dos meus versos
Nem para as palavras
Olhe para o seu sentido
Olhe para o quadro
E não a confusão das linhas
O artista traça linhas
Diversas, diferentes…
Verticais, obliquas, horizontais
Aproximadas, afastadas
Longas, curtas
Entrelaçadas…
Larga no meio espaço branco
Linhas paralelas, linhas divergentes,
Linhas convergentes, escuras
Umas dando relevo, outras sombra
Linhas negras, fundo branco
Linhas brancas, fundo negro...
É assim o quadro da vida humana
Sobre o fundo branco da existência
Linhas de prazeres e dores
Esperanças e desesperos
Amor e ódio
Bondade e inveja
Linhas de formas diversas
Brilhantes e escuras
Todas juntas perfazem o quadro
Da vida humana
O fundo da existência não importa...
As linhas dão sombra e relevo
Profundidade, largura, altura
Beleza e fealdade
Às duas dimensões do quadro
Dão a ilusão da terceira dimensão
Ao quadro de vida e morte
A ilusão de vida eterna
E, o que é importante,
Dão o sentido à vida...
Mas, o papel só não é quadro
Nem as cores, nem as linhas
As variedades de linhas não são quadro
Nem sombra, nem relevo
A confusão, labirinto de linhas, não é quadro
Nem é quadro a ilusão que
Essas coisas produzem
O quadro é tudo no conjunto
Assim é a minha canção.
A minha canção é o quadro
Da minha vida
Da minha vida relacionada
À dos meus amigos e inimigos
Tirai as linhas da canção
Ficarei “Eu”
Tirai a influência dos “Outros”
Será um Erro
Refinai as palavras
Ficará um resíduo
Das minhas palavras
Tirai a minha alma
A minha vida e a minha
Relação com o mundo,
Desaparecerá a minha poesia da minha canção
Ficará o pó das palavras
Leitor, a minha canção
É esquisita, extravagante
Minhas palavras, teu sentido
Meu espelho, tua imagem,
Ou vice versa
Eis a minha canção...
Minha cadência, tues tons,
Meu prazer, tua dor,
Meu ódio, teu amor
Meu pincel, tuas cores
Ou vice versa
Eis a minha canção
Nessa canção vê
Teu retrato, minha imagem
O tecido delicado da vida
Luz e sombra da Alma
Ou vice versa...
Mas se tu deitar fora
A tua simpatia
Para comigo
A poesia desaparecerá
Ficará somente... o papel
Um papel borrado, sujo
De se deitar fora!
Thursday 29 September 2011
Wednesday 28 September 2011
Cyrano Valles - Prelúdio (1976)
Homem!
Sê mais
Do que julgas!
Abarca
Nos teus punhos
Quadriláteros,
Todo esse
Infinito
Que o Céu não descobre!...
Homem!
TU
Microcosmo vivo,
És mais do que julgas!
Entre as estrelas-do-mar
E as estrelas do Céu
Ergues-te
Nas asas da Razão
Para desvendar
O segredo
Dos Deuses!
Homem!
A vida não mais
É do que um passo –
Uma ponte –
De ti depende,
Contigo só
Fica a decisão
De seres livre
Sê mais
Do que julgas!
Abarca
Nos teus punhos
Quadriláteros,
Todo esse
Infinito
Que o Céu não descobre!...
Homem!
TU
Microcosmo vivo,
És mais do que julgas!
Entre as estrelas-do-mar
E as estrelas do Céu
Ergues-te
Nas asas da Razão
Para desvendar
O segredo
Dos Deuses!
Homem!
A vida não mais
É do que um passo –
Uma ponte –
De ti depende,
Contigo só
Fica a decisão
De seres livre
Ou eterno escravo
Da tua humana condição!
Da tua humana condição!
Evágrio Jorge - Vimala Devi e a sua actividade cultural (1970)
A prometido é devido. Anunciei há dias a recepção do último livro de poesias de Vimala Devi, Hologramas e prometi referir-me a ele nestas colunas.
A literatura é o espelho da vida. As duas são inseparáveis como a figura e a imagem ou a figura e a sombra. Qualquer referência a Hologramas será abrupta se não me referir aos dois livros anteriores de Vimala Devi e mesmo ao pouco que sei da sua vida.
Vimala Devi nasceu numa família católica goesa de Britona, na outra margem do rio Mandovi, que espera ser um subúrbio de Pangim logo que se complete, o mais tardar no próximo ano, a mui demorada ponte. Nasceu em 1932. Fez a sua estreia neste jornal e no antigo vespertino “Diário da Noite”. Cerca de 1958 ter-se-ia abalado para Portugal, casada com um escritor português. Em 1960 fez uma viagem ao Brazil para organizar recitais de folclore goês, que também apresentou na RTP e na Emissora Nacional de Radiodifusão de Lisboa. Foi incluída no volume “Goa, Damão e Diu” da “Antologia da Terra Portuguesa”.
Vive presentemente em Londres, fazendo companhia ao seu marido que trabalha na secção portuguesa da BBC. Em Londres teve uma exposição individual de pintura e colabora assiduamente nos programas da BBC.
À parte os seus livros que serão objecto de detida referência mais adiante, Vimala Devi é conhecida de todos quantos escrevem este formoso idioma português pela correspondência individual que manteve com eles, pedindo este e aquele pormenor dos seus escritos para um importante estudo mesológico da literatura indo-portuguesa, de que é co-autora. Pelo grande empenho que ela tomou nessa obra – prometida para breve não há dúvida que ser que será um repositório exaustivo da actividade literária goesa em português.
Toda esta actividade operosa no campo de letras e artes cria jus à nossa admiração e estima. Cá está uma conterrânea colocada noutra conjunção de latitudes e longitudes – geográficas e outras – entretida num trabalho positivo, criador, tanto do benéfico de Goa como de Portugal. Temos que seguir-lhe o exemplo. Temos de fazer aqui em Goa qualquer coisa de positivo para encaminhar o trabalho literário dos poucos poetas, contistas, prosadores que ainda temos, para as grandes revistas e casa editoriais portuguesas do mundo. Temos que encorajar traduções da literatura clássica indiana e dos autores modernos indianos (RK Narayan, Rama Rao, Kamala Markandaya, Nayantura Shgal, Kushwant Singh, Raj Ananda e outros). Será fácil obter editores para essas obras. Já três livros de Kamala Markandaya – ‘Trabalho sem Esperança’, ‘Um Íntimo Furor’ e ‘Um Silêncio do Desejo’ – estão a circular em tradução em Portugal e Brasil há alguns anos.
Outro trabalho que urge é encorajar a nova geração a aprender o português. No meu tempo de estudante os jornais dedicavam páginas para o tirocínio literário da juventude – Gente Nova, Página da Mocidade e Os Novos eram os títulos destas páginas. Publicou-se também uma interessante revista O Académico. Na era pos-libertação, a atracão do Governo e da sociedade há de naturalmente concentrar-se em incrementar o aprendizado do inglês, hindi e marata, tão necessários para o intercâmbio vital com o resto da Índia. Isso não impede que os amigos da língua portuguesa – entre os quais eu sempre me contei – trabalhem em seu prol, nas linhas indicadas. Mas andamos entretidos noutras contradanças... de êxitos nulo.
Não que o Governo não esteja a auxiliar, por muito que pese aos detractores dele. A “All-India Rádio” de Pangim tem um programa literário semanal para o qual os escritores locais são convidados e pagos. A Universidade de Bombaim sempre veio aceitando a língua portuguesa como língua de estudo. Agora o Post-Graduate Centre de Goa – núcleo da futura Universidade de Goa – tem uma Secção de Português. Os vários Colleges ensinam português e se muitos estudantes não se aproveitam desta facilidade, a culpa do excessivo espírito oportunista da nossa gente...
Desculpem-me esta digressão. Reina hoje tal confusão de ideias no nosso meio que se fica obrigado a aproveitar de casa oportunidade para desanuviar as mentes das muitas dúvidas e suspeições que nelas se encastelam...
Fica para a próxima vez a apreciação dos livros de Vimala Devi.
Part 2
O livro de contos ‘Monção’ da Vimala Devi é quase uma versão do seu livro de versos Súria em outra modalidade literária. Nos treze contos que este livro encerra, a vida goesa está retratada com fidelidade – incluindo os hindus e cristãos com as suas inevitáveis castas, e os paklé e os descendentes que desapareceram já do nosso cenário.
O conto ‘O Genro-Comensal’ lembra-nos do interessante romance de Gip, ‘Jacob e Dulce’, com as suas peripécias na cidade de Breda (Bordá). Lança muita luz sobre a forma como se arranjam os casamentos em Goa, começando por indagar a casta dos futuros nubentes, os seus teres e haveres, como se estabelece o genro-comensal (ghor-zanvoim) e como ele tem que sacrificar uma grande parte da sua personalidade em troca dos bens da noiva.
Nattak, Dhruva, Pandmini, A Droga, Fidelidade, estes contos revelam conhecimento da vida e psicologia hindu. A vida dos pescadores também está bem retratada. Na “Recordação do Tio Salú”, um pescador velhinho que morreu no dia seguinte ao Natal, Vimala Devi desabafa mais uma vez a sua saudade pela terra natal:
“Um templo de saudade pode chamar-se a tudo que trago dentro de mim. Gira à minha volta, agora em torvelinho – um torvelinho – um torvelinho que dói – toda a minha infância na velha aldeia à beira do Mandovi, onde o tempo parece que tinha parado e se vivia como mil anos atrás, como sempre.”
E pouco mais alem:
“Boa aldeia, boa gente, bons manducares, pescadores, curumbins, farazes, velhos e velhas, católicos, hindus, rapazinhos de langotim sujo com quem tanta vez joguei a cabra-cega ou os goddés, rostinhos morenos e vivos, que me davam gostosos chinchré dos tamarindos para roer na escola”.
Um outro aspecto desta saudade pela terra natal apresenta-o a escritora no conto “O Futuro e o Passado”, em que Carlos Sequeira, depois de fazer muito dinheiro na África, passa a matutar:
“... Tentou recordar a velha casa, as ruas esburacadas da aldeia, os manducares tristonhos, os curumbins, as suas canções alegres... De que lhe servia ser rico, de que lhe servia de ser uma pessoa importante numa terra que não era a sua, onde não havia ninguém com quem tivesse brincado em criança?...”
É triste comentário à vida dos cristãos de Goa o facto de que a escritora não pode retratar fielmente a sua vida sem trazer à baile o facto de eles estarem divididos em brâmanes, chardós e sudras. No conto “Os filhos de Job”, a forreta de Lavin-bai, quando ligeiramente admoestada pelo Dr. Caxinata sobre os seus deveres sociais, fulmina nestes termos:
- “Defende a dignidade desta gente, esquecendo-se da minha, que é superior. Repare que sou brâmane, como o doutor!...”
Há problemas a que a Libertação põe termo, como o súbita pretensão do descendente Eucaristiano de passar a ser europeu, a excessiva humidade e submissão dos manducares, cujo simples gesto de se sentarem nas cadeiras era ressentido, a exploração da mão de obra (cfr. ‘Vénus e os seus braços’).
No conto ‘A Droga’, um dos protagonistas pergunta enfurecido: “Outra vez a droga! Sempre a droga para finalizar o amor entre uma católica e um hindu!...”
Porque não poderá ser de outra maneira legal, sem vergonhas nem drogas?
Rosa começou a soluçar sobre peito de Caxinata.”
Antes, se não fosse a droga, era a conversão dum dos protagonistas à religião doutro, que era a mais das vezes a religião católica.
Que solução iria a Libertação dar a este problema de boy meets the girls of his liking? A solução ideal seria cada um manter-se na religião que professa e em que acredita. Porque só assim formaremos uma sociedade única, indiana, na base da nossa nacionalidade. Fora de Goa os goeses, tanto hindus como cristãos, já se casam para além de suas sociedades e de suas castas. Os hindus goeses estão casados com panjabis, maisoreanas, maharasatrianas, etc. Os católicos, entre cristãos de outras denominações, sikhs, hindus e mussolmanos. Não levará tempo para o processo se desenvolver com a mesma velocidade portas a dentro...
Chego agora para o último livro de versos de Vimala Devi, Hologramas, Edições Atlântida Editora de Coimbra, o livro é um luxo de produção. Quarenta páginas em papel espesso, capa branca envernizada, mas os poemas são curtos, diminutos, e todos se lêem em cerca de dez minutos.
Mas o carácter do livro é totalmente diferente dos primeiros dois. Já não é a Vimala indiana-goesa, que fala, direi mesmo que nem sequer é a poetisa portuguesa. É um produto de Londres, desse Ocidente estranho hodierno cuja uma manifestação vemos hoje nos visitantes da nossa praia de Calangute.
Kipling dissera que o Oriente e o Ocidente nunca se encontrariam. Com o avanço do Oriente embora lento, nos domínios de Ciência e Tecnologia parecia que o abismo estava prestes a cobrir-se. Mas agora o Ocidente, cansado, parece afastar-se para domínios imprevistos...
Li e reli os poemas. Acho algo difícil compreendê-los. Talvez seja necessário viver-se nos meios que os inspiraram, para se compreender perfeitamente:
Cá vai um exemplo:
Ânsia telemetrica
Do espaço que foi pela curva do orbito do sonho metálico
Transicional
Ciclo nos passos de luz
De Apolo atrofísico
Compreenderam alguma coisa? Pois bem, tentem saborear este outro escolhido também à toa:
Em cada desejo
Subterrâneo mais um dia tenso
Como o desejo sem sexo
Que se mistura com fumo
De estupefaciantes
Cobrindo o vazio triste de néon
Aquém do sonho anfíbio
Que se transmuta em chamas
Podemos compreender vagamente que este tem alguma relação com a filosofia dos hippies.
Algumas criticas já saídas talvez nos ajudem a compreender o livro e a mudança operada na sua autora.
O poeta Mário António escreveu dele o que segue:
“Não é a poetisa de Goa que aqui vemos: simplesmente a poetisa, se se insistir em expressar uma radicação, a poetisa europeia (...) Trata-se de um livro profundamente europeu ou ocidental: percorrem-no – entre dezenas de referências à mitologia ocidental - as linhas de força de mitos que são os que ajudaram a definir a Europa ou a Ocidente, ao mesmo tempo que se propõem alguns dos mitos que são dos que já antecipam o seu futuro”.
O semanário “Debate” escreve que “Hologramas” é resultado de uma experiência de um mundo diverso do que inspirou os seus dois primeiros livros, um mundo, o europeu, no qual se sobrepõe a uma mitologia milenar mas ainda presente, uma mitologia que diremos ser já do futuro.”
E João Gaspar, que tivera palavras encomiásticas para o livro Súria, escreve a respeito do último livro dizendo que Vimala Devi pretende:
“... com base em experiências de poesia inglesa, superar o condicionalimso pós-baudelaireano. Com efeito, é em Hologramas de Vimala Devi, residente em Londres, que se manifesta qualquer coisa como um refluxo de inspiração científica, associação, em breves esquemas métricos, de reacções possivelmente assimiladas a fenómenos físico-psiquicos...”
“... O que tudo prova mais uma vez que o goês é destro na assimilação das culturas alheias e é capaz de mostrar-se livre dos “conceitos atávicos” entre os povos no meio dos quais habita, sejam eles Kanadigas de Maiçore ou os Maharastrianos de Bombaim, os portugueses de Lisboa ou os Londrinos...”
Hats off à gentil senhora goesa que nos meios exigentes de Europa, mantém-se às alturas da sua rica tradição milenária e nunca se deixa de lembrar do seu torrão natal e sua gente.
A literatura é o espelho da vida. As duas são inseparáveis como a figura e a imagem ou a figura e a sombra. Qualquer referência a Hologramas será abrupta se não me referir aos dois livros anteriores de Vimala Devi e mesmo ao pouco que sei da sua vida.
Vimala Devi nasceu numa família católica goesa de Britona, na outra margem do rio Mandovi, que espera ser um subúrbio de Pangim logo que se complete, o mais tardar no próximo ano, a mui demorada ponte. Nasceu em 1932. Fez a sua estreia neste jornal e no antigo vespertino “Diário da Noite”. Cerca de 1958 ter-se-ia abalado para Portugal, casada com um escritor português. Em 1960 fez uma viagem ao Brazil para organizar recitais de folclore goês, que também apresentou na RTP e na Emissora Nacional de Radiodifusão de Lisboa. Foi incluída no volume “Goa, Damão e Diu” da “Antologia da Terra Portuguesa”.
Vive presentemente em Londres, fazendo companhia ao seu marido que trabalha na secção portuguesa da BBC. Em Londres teve uma exposição individual de pintura e colabora assiduamente nos programas da BBC.
À parte os seus livros que serão objecto de detida referência mais adiante, Vimala Devi é conhecida de todos quantos escrevem este formoso idioma português pela correspondência individual que manteve com eles, pedindo este e aquele pormenor dos seus escritos para um importante estudo mesológico da literatura indo-portuguesa, de que é co-autora. Pelo grande empenho que ela tomou nessa obra – prometida para breve não há dúvida que ser que será um repositório exaustivo da actividade literária goesa em português.
Toda esta actividade operosa no campo de letras e artes cria jus à nossa admiração e estima. Cá está uma conterrânea colocada noutra conjunção de latitudes e longitudes – geográficas e outras – entretida num trabalho positivo, criador, tanto do benéfico de Goa como de Portugal. Temos que seguir-lhe o exemplo. Temos de fazer aqui em Goa qualquer coisa de positivo para encaminhar o trabalho literário dos poucos poetas, contistas, prosadores que ainda temos, para as grandes revistas e casa editoriais portuguesas do mundo. Temos que encorajar traduções da literatura clássica indiana e dos autores modernos indianos (RK Narayan, Rama Rao, Kamala Markandaya, Nayantura Shgal, Kushwant Singh, Raj Ananda e outros). Será fácil obter editores para essas obras. Já três livros de Kamala Markandaya – ‘Trabalho sem Esperança’, ‘Um Íntimo Furor’ e ‘Um Silêncio do Desejo’ – estão a circular em tradução em Portugal e Brasil há alguns anos.
Outro trabalho que urge é encorajar a nova geração a aprender o português. No meu tempo de estudante os jornais dedicavam páginas para o tirocínio literário da juventude – Gente Nova, Página da Mocidade e Os Novos eram os títulos destas páginas. Publicou-se também uma interessante revista O Académico. Na era pos-libertação, a atracão do Governo e da sociedade há de naturalmente concentrar-se em incrementar o aprendizado do inglês, hindi e marata, tão necessários para o intercâmbio vital com o resto da Índia. Isso não impede que os amigos da língua portuguesa – entre os quais eu sempre me contei – trabalhem em seu prol, nas linhas indicadas. Mas andamos entretidos noutras contradanças... de êxitos nulo.
Não que o Governo não esteja a auxiliar, por muito que pese aos detractores dele. A “All-India Rádio” de Pangim tem um programa literário semanal para o qual os escritores locais são convidados e pagos. A Universidade de Bombaim sempre veio aceitando a língua portuguesa como língua de estudo. Agora o Post-Graduate Centre de Goa – núcleo da futura Universidade de Goa – tem uma Secção de Português. Os vários Colleges ensinam português e se muitos estudantes não se aproveitam desta facilidade, a culpa do excessivo espírito oportunista da nossa gente...
Desculpem-me esta digressão. Reina hoje tal confusão de ideias no nosso meio que se fica obrigado a aproveitar de casa oportunidade para desanuviar as mentes das muitas dúvidas e suspeições que nelas se encastelam...
Fica para a próxima vez a apreciação dos livros de Vimala Devi.
Part 2
O livro de contos ‘Monção’ da Vimala Devi é quase uma versão do seu livro de versos Súria em outra modalidade literária. Nos treze contos que este livro encerra, a vida goesa está retratada com fidelidade – incluindo os hindus e cristãos com as suas inevitáveis castas, e os paklé e os descendentes que desapareceram já do nosso cenário.
O conto ‘O Genro-Comensal’ lembra-nos do interessante romance de Gip, ‘Jacob e Dulce’, com as suas peripécias na cidade de Breda (Bordá). Lança muita luz sobre a forma como se arranjam os casamentos em Goa, começando por indagar a casta dos futuros nubentes, os seus teres e haveres, como se estabelece o genro-comensal (ghor-zanvoim) e como ele tem que sacrificar uma grande parte da sua personalidade em troca dos bens da noiva.
Nattak, Dhruva, Pandmini, A Droga, Fidelidade, estes contos revelam conhecimento da vida e psicologia hindu. A vida dos pescadores também está bem retratada. Na “Recordação do Tio Salú”, um pescador velhinho que morreu no dia seguinte ao Natal, Vimala Devi desabafa mais uma vez a sua saudade pela terra natal:
“Um templo de saudade pode chamar-se a tudo que trago dentro de mim. Gira à minha volta, agora em torvelinho – um torvelinho – um torvelinho que dói – toda a minha infância na velha aldeia à beira do Mandovi, onde o tempo parece que tinha parado e se vivia como mil anos atrás, como sempre.”
E pouco mais alem:
“Boa aldeia, boa gente, bons manducares, pescadores, curumbins, farazes, velhos e velhas, católicos, hindus, rapazinhos de langotim sujo com quem tanta vez joguei a cabra-cega ou os goddés, rostinhos morenos e vivos, que me davam gostosos chinchré dos tamarindos para roer na escola”.
Um outro aspecto desta saudade pela terra natal apresenta-o a escritora no conto “O Futuro e o Passado”, em que Carlos Sequeira, depois de fazer muito dinheiro na África, passa a matutar:
“... Tentou recordar a velha casa, as ruas esburacadas da aldeia, os manducares tristonhos, os curumbins, as suas canções alegres... De que lhe servia ser rico, de que lhe servia de ser uma pessoa importante numa terra que não era a sua, onde não havia ninguém com quem tivesse brincado em criança?...”
É triste comentário à vida dos cristãos de Goa o facto de que a escritora não pode retratar fielmente a sua vida sem trazer à baile o facto de eles estarem divididos em brâmanes, chardós e sudras. No conto “Os filhos de Job”, a forreta de Lavin-bai, quando ligeiramente admoestada pelo Dr. Caxinata sobre os seus deveres sociais, fulmina nestes termos:
- “Defende a dignidade desta gente, esquecendo-se da minha, que é superior. Repare que sou brâmane, como o doutor!...”
Há problemas a que a Libertação põe termo, como o súbita pretensão do descendente Eucaristiano de passar a ser europeu, a excessiva humidade e submissão dos manducares, cujo simples gesto de se sentarem nas cadeiras era ressentido, a exploração da mão de obra (cfr. ‘Vénus e os seus braços’).
No conto ‘A Droga’, um dos protagonistas pergunta enfurecido: “Outra vez a droga! Sempre a droga para finalizar o amor entre uma católica e um hindu!...”
Porque não poderá ser de outra maneira legal, sem vergonhas nem drogas?
Rosa começou a soluçar sobre peito de Caxinata.”
Antes, se não fosse a droga, era a conversão dum dos protagonistas à religião doutro, que era a mais das vezes a religião católica.
Que solução iria a Libertação dar a este problema de boy meets the girls of his liking? A solução ideal seria cada um manter-se na religião que professa e em que acredita. Porque só assim formaremos uma sociedade única, indiana, na base da nossa nacionalidade. Fora de Goa os goeses, tanto hindus como cristãos, já se casam para além de suas sociedades e de suas castas. Os hindus goeses estão casados com panjabis, maisoreanas, maharasatrianas, etc. Os católicos, entre cristãos de outras denominações, sikhs, hindus e mussolmanos. Não levará tempo para o processo se desenvolver com a mesma velocidade portas a dentro...
Chego agora para o último livro de versos de Vimala Devi, Hologramas, Edições Atlântida Editora de Coimbra, o livro é um luxo de produção. Quarenta páginas em papel espesso, capa branca envernizada, mas os poemas são curtos, diminutos, e todos se lêem em cerca de dez minutos.
Mas o carácter do livro é totalmente diferente dos primeiros dois. Já não é a Vimala indiana-goesa, que fala, direi mesmo que nem sequer é a poetisa portuguesa. É um produto de Londres, desse Ocidente estranho hodierno cuja uma manifestação vemos hoje nos visitantes da nossa praia de Calangute.
Kipling dissera que o Oriente e o Ocidente nunca se encontrariam. Com o avanço do Oriente embora lento, nos domínios de Ciência e Tecnologia parecia que o abismo estava prestes a cobrir-se. Mas agora o Ocidente, cansado, parece afastar-se para domínios imprevistos...
Li e reli os poemas. Acho algo difícil compreendê-los. Talvez seja necessário viver-se nos meios que os inspiraram, para se compreender perfeitamente:
Cá vai um exemplo:
Ânsia telemetrica
Do espaço que foi pela curva do orbito do sonho metálico
Transicional
Ciclo nos passos de luz
De Apolo atrofísico
Compreenderam alguma coisa? Pois bem, tentem saborear este outro escolhido também à toa:
Em cada desejo
Subterrâneo mais um dia tenso
Como o desejo sem sexo
Que se mistura com fumo
De estupefaciantes
Cobrindo o vazio triste de néon
Aquém do sonho anfíbio
Que se transmuta em chamas
Podemos compreender vagamente que este tem alguma relação com a filosofia dos hippies.
Algumas criticas já saídas talvez nos ajudem a compreender o livro e a mudança operada na sua autora.
O poeta Mário António escreveu dele o que segue:
“Não é a poetisa de Goa que aqui vemos: simplesmente a poetisa, se se insistir em expressar uma radicação, a poetisa europeia (...) Trata-se de um livro profundamente europeu ou ocidental: percorrem-no – entre dezenas de referências à mitologia ocidental - as linhas de força de mitos que são os que ajudaram a definir a Europa ou a Ocidente, ao mesmo tempo que se propõem alguns dos mitos que são dos que já antecipam o seu futuro”.
O semanário “Debate” escreve que “Hologramas” é resultado de uma experiência de um mundo diverso do que inspirou os seus dois primeiros livros, um mundo, o europeu, no qual se sobrepõe a uma mitologia milenar mas ainda presente, uma mitologia que diremos ser já do futuro.”
E João Gaspar, que tivera palavras encomiásticas para o livro Súria, escreve a respeito do último livro dizendo que Vimala Devi pretende:
“... com base em experiências de poesia inglesa, superar o condicionalimso pós-baudelaireano. Com efeito, é em Hologramas de Vimala Devi, residente em Londres, que se manifesta qualquer coisa como um refluxo de inspiração científica, associação, em breves esquemas métricos, de reacções possivelmente assimiladas a fenómenos físico-psiquicos...”
“... O que tudo prova mais uma vez que o goês é destro na assimilação das culturas alheias e é capaz de mostrar-se livre dos “conceitos atávicos” entre os povos no meio dos quais habita, sejam eles Kanadigas de Maiçore ou os Maharastrianos de Bombaim, os portugueses de Lisboa ou os Londrinos...”
Hats off à gentil senhora goesa que nos meios exigentes de Europa, mantém-se às alturas da sua rica tradição milenária e nunca se deixa de lembrar do seu torrão natal e sua gente.
Visnum Porobo Sincró - À Nossa Senhora dos Milagres (1972)
Converter um néscio em sábio,
Tornar rico um que padece deveras,
Mudar de sorte, auxiliar os necessitados,
Eis a Milagrosa Senhora Mãe Santíssima,
Ricos e pobres vestidos de fatos domingueiros,
Azafamados seguem a caminho de Templo,
Situado junto a ponte que liga Mapuçá
A Bastorá e lugares circumvizinhos
Hoje o dia da Nossa Senhora dos Milagres,
A amanhã e da sua irmã de Sirigão,
As duas irmãs dentre sete que glorificam
A terra histórica dos nossos antecipados
Operai Senhora o Milagre de Sã Governação.
Tornar rico um que padece deveras,
Mudar de sorte, auxiliar os necessitados,
Eis a Milagrosa Senhora Mãe Santíssima,
Ricos e pobres vestidos de fatos domingueiros,
Azafamados seguem a caminho de Templo,
Situado junto a ponte que liga Mapuçá
A Bastorá e lugares circumvizinhos
Hoje o dia da Nossa Senhora dos Milagres,
A amanhã e da sua irmã de Sirigão,
As duas irmãs dentre sete que glorificam
A terra histórica dos nossos antecipados
Operai Senhora o Milagre de Sã Governação.
Mário Isaac - José Osório de Oliveira e o prefácio do Destino (1955)
O homem de letras que é José Osório de Oliveira nem sempre disporá de tempo suficiente para analisar detidamente os escritos que lhe vão ter às mãos. Só assim se poderá explicar o equívoco que lhe ficou da leitura do meu prefácio ao livro DESTINO de Judit Beatriz de Sousa.
Em artigo para o Serviço de Intercâmbio Cultural da Agência Geral do Ultramar, escreve o conhecido prosador que eu aparentei a goesa com Florbela Espanca e acrescenta que o estabelecimento de tal parentesco é excessivo, reproduzindo em seguida uma passagem do prefácio onde eu chamo à alentejana “irmã mais velha” de Judit.
Mais abaixo, José Osório de Oliveira explica a sua opinião, afirmando:
“Disse que era expressiva a comparação com Florbela porque a autora de Charneca em Flor, apesar das suas faltas de gosto, se ergueu à maior altura da Poesia passional de qualquer tempo e em qualquer língua, ao passo que Judit Beatriz de Sousa, cuja idade incerta do caminho da sua Poesia, hesitante, não só formalmente, mas psicologicamente”
Quem não tenha lido o prefácio de DESTINO a for julhar do seu conteúdo pelas palavras que acabei de transcrever, chegará, de certo, à conclusão de que eu pretenda colocar em presença as alturas atingidas na Poesia (mesmo passional) por aquelas duas mulheres portuguesas, ficando ainda margem para se poder imaginar que atribui a Judit um lugar descabido relativamente ao de Florbela.
Repito que há aqui um equívoco.
Abri o trabalho com ligeiras considerações inspiradas em dois versos de Eugénio de Andrada (Aqui abandonaste as mãos/A tudo o que não cheguei a acontecer...) Dessas linhas vou transcrever aquelas que – juntamente com a “irmã mais velha” – me parecem ter precipitado o juízo de Osório de Oliveira. Disse eu:
“Abandonar as mãos a tudo o que não chega a acontecer – é sina de quem um dia partiu com os olhos carregados de estrelas. O poeta deixa-se conduzir – porque é esse o seu destino – abandona-se à visão permanente e mãe de beleza; e dela, da visão, nasce o sentido e o som dos seus versos. A mão que os escreve é, ainda e sempre, guiada por ‘tudo o que não chega a acontecer
Assim se passou com Florbela Espanca. Outro tanto se dá com Judit Beatriz de Sousa. Simplesmente, se em Florbela parece ter havido males maiors, algo esclarecidos pelas circunstâncias em que deixou a vida, em Judit é apenas o Amor o centro da visão – que mais espaço ocupa e vivamente se mostra.”
A explicaçã de ter glosado aqueles dois versos deve-se ao facto de eles me parecerem bons intérpretes do caso poético de Judit Beatriz de Sousa – a própria poetisa, de resto, se dá ao trabalho de nos esclarecer logo no primeiro poema que intitulou de ‘Prefácio’:
“Amor imaginário... mas talvez
em perspectiva de longo revés...”
E vem a confirmação na ‘Elegia”:
“Meus dedos eram de barro
(ou de terra humedecida);
quiserem prender o sonho,
trazê-lo mais para a Vida.
Mas ai que o sonho se foi
Como fumo de cigarro...
Meus dedos eram de barro”
E como estes e outros desabafos espalhados pelo livro não bastassem para nos convencermos de que Judit “abandonou as mãos a tudo o que não chega a acontecer,” deparamos com a confissão de que nada mais houve que
“a dor
de amar só por amar... só por amar”
resultante de
“aquele meu velho sonho
De querer sonhar contigo.”
Mas acontece que os dois versos de Eugénio de Andrade são de um “Poema a Florbela”. Daqui e só daqui, nasceu a minha referência à poetisa alentejana, convencido como estou de ter ela também “abandonado as mãos a tudo o que não chega a acontecer”.
Aparentadas? Mas não são os poetas ramos do mesmo tronco? Onde há aqui lugar para o “excessivo” de José Osório de Oliveira?
E naquilo que o autor da ‘Explicação de Machado de Assis e de Dom Casmurro’ parece querer concretizar na palavra comparação, limitei-me a apontar um elemento comum à Poesia de Florbela e de Judit: o amor. Repito o que escrevi a este respeito:
“Simplesmente: se em Florbela parece ter havido males maiores, algo esclarecidos pelas circunstâncias em que deixou a vida, em Judit é apenas o amor o centro da visão – que mais espaço ocupa e vivamente se mostra”
Não sei até que ponto será fácil concluir de tudo o que aí fica que pretendi colocar Judit Beatriz de Sousa, já não digo a par, mas até longe ou perto de Florbela Espanca, na hierarquia de valores da Poesia portuguesa, passional ou não. Se houve comparação aquela ‘irmã mais velha’ (em Poesia, claro está) atribui a Florbela uma superioridade mas de que eu nem sei a medida.
José Osório de Oliveira comenta a coisa de modo a fazer criar nos leitores a ideia de um escalonamento errado, deixando de pé a hipótese de eu ter procurado beneficiar a poetisa de Pangim à custa de uma desconsideração à real valia de Vila Viçosa.
Tenho razões para afirmar que houve equivoco. Suponho que uma cuidada leitura das minhas linhas dará ao critico oportunidade de constatar o seu engano.
Mantenho que a poetisa Florbela Espanca é irmã mais velha da poetisa Judit Beatriz de Sousa e não vejo onde esteja o “excesso”.
Em artigo para o Serviço de Intercâmbio Cultural da Agência Geral do Ultramar, escreve o conhecido prosador que eu aparentei a goesa com Florbela Espanca e acrescenta que o estabelecimento de tal parentesco é excessivo, reproduzindo em seguida uma passagem do prefácio onde eu chamo à alentejana “irmã mais velha” de Judit.
Mais abaixo, José Osório de Oliveira explica a sua opinião, afirmando:
“Disse que era expressiva a comparação com Florbela porque a autora de Charneca em Flor, apesar das suas faltas de gosto, se ergueu à maior altura da Poesia passional de qualquer tempo e em qualquer língua, ao passo que Judit Beatriz de Sousa, cuja idade incerta do caminho da sua Poesia, hesitante, não só formalmente, mas psicologicamente”
Quem não tenha lido o prefácio de DESTINO a for julhar do seu conteúdo pelas palavras que acabei de transcrever, chegará, de certo, à conclusão de que eu pretenda colocar em presença as alturas atingidas na Poesia (mesmo passional) por aquelas duas mulheres portuguesas, ficando ainda margem para se poder imaginar que atribui a Judit um lugar descabido relativamente ao de Florbela.
Repito que há aqui um equívoco.
Abri o trabalho com ligeiras considerações inspiradas em dois versos de Eugénio de Andrada (Aqui abandonaste as mãos/A tudo o que não cheguei a acontecer...) Dessas linhas vou transcrever aquelas que – juntamente com a “irmã mais velha” – me parecem ter precipitado o juízo de Osório de Oliveira. Disse eu:
“Abandonar as mãos a tudo o que não chega a acontecer – é sina de quem um dia partiu com os olhos carregados de estrelas. O poeta deixa-se conduzir – porque é esse o seu destino – abandona-se à visão permanente e mãe de beleza; e dela, da visão, nasce o sentido e o som dos seus versos. A mão que os escreve é, ainda e sempre, guiada por ‘tudo o que não chega a acontecer
Assim se passou com Florbela Espanca. Outro tanto se dá com Judit Beatriz de Sousa. Simplesmente, se em Florbela parece ter havido males maiors, algo esclarecidos pelas circunstâncias em que deixou a vida, em Judit é apenas o Amor o centro da visão – que mais espaço ocupa e vivamente se mostra.”
A explicaçã de ter glosado aqueles dois versos deve-se ao facto de eles me parecerem bons intérpretes do caso poético de Judit Beatriz de Sousa – a própria poetisa, de resto, se dá ao trabalho de nos esclarecer logo no primeiro poema que intitulou de ‘Prefácio’:
“Amor imaginário... mas talvez
em perspectiva de longo revés...”
E vem a confirmação na ‘Elegia”:
“Meus dedos eram de barro
(ou de terra humedecida);
quiserem prender o sonho,
trazê-lo mais para a Vida.
Mas ai que o sonho se foi
Como fumo de cigarro...
Meus dedos eram de barro”
E como estes e outros desabafos espalhados pelo livro não bastassem para nos convencermos de que Judit “abandonou as mãos a tudo o que não chega a acontecer,” deparamos com a confissão de que nada mais houve que
“a dor
de amar só por amar... só por amar”
resultante de
“aquele meu velho sonho
De querer sonhar contigo.”
Mas acontece que os dois versos de Eugénio de Andrade são de um “Poema a Florbela”. Daqui e só daqui, nasceu a minha referência à poetisa alentejana, convencido como estou de ter ela também “abandonado as mãos a tudo o que não chega a acontecer”.
Aparentadas? Mas não são os poetas ramos do mesmo tronco? Onde há aqui lugar para o “excessivo” de José Osório de Oliveira?
E naquilo que o autor da ‘Explicação de Machado de Assis e de Dom Casmurro’ parece querer concretizar na palavra comparação, limitei-me a apontar um elemento comum à Poesia de Florbela e de Judit: o amor. Repito o que escrevi a este respeito:
“Simplesmente: se em Florbela parece ter havido males maiores, algo esclarecidos pelas circunstâncias em que deixou a vida, em Judit é apenas o amor o centro da visão – que mais espaço ocupa e vivamente se mostra”
Não sei até que ponto será fácil concluir de tudo o que aí fica que pretendi colocar Judit Beatriz de Sousa, já não digo a par, mas até longe ou perto de Florbela Espanca, na hierarquia de valores da Poesia portuguesa, passional ou não. Se houve comparação aquela ‘irmã mais velha’ (em Poesia, claro está) atribui a Florbela uma superioridade mas de que eu nem sei a medida.
José Osório de Oliveira comenta a coisa de modo a fazer criar nos leitores a ideia de um escalonamento errado, deixando de pé a hipótese de eu ter procurado beneficiar a poetisa de Pangim à custa de uma desconsideração à real valia de Vila Viçosa.
Tenho razões para afirmar que houve equivoco. Suponho que uma cuidada leitura das minhas linhas dará ao critico oportunidade de constatar o seu engano.
Mantenho que a poetisa Florbela Espanca é irmã mais velha da poetisa Judit Beatriz de Sousa e não vejo onde esteja o “excesso”.
Manuel Ferreira - “É necessário reunir os intelectuais goeses.” (1954)
Quando partimos de Goa, começava a andar no ar uma ideia pela qual sempre nos debatemos aí, porque nunca deixamos de acreditar nas virtudes incontestáveis das suas possibilidades: um círculo da cultura ou qualquer coisa desta género. Atentas às dificuldades de aproximação entre os intelectuais goeses ou aqueles simplesmente dados aos problemas culturais, uma organização daquelas seria o ponto fulcral para esse desiderato.
Os intelectuais, os homens para quem a vida não é unicamente o futebol e o colóquio estéril da esquina do bar, precisam de estar ligados, já por espírito de conservação, já por necessidade de se poderem realizar totalmente no dia a dia das suas preocupações e melhores ambições.
Esta ligação, este contacto vital e inadiável, pode fazer-se por dois processos: ligação simplesmente espiritual, ligação directa.
Ligação simplesmente espiritual quando obtida através de revistas de colaboração própria em publicações literárias próprias. Ligação directa através de organismo ou organismos culturais, onde a presença directa, real é vínculo poderoso que, às vezes, leva a grandes iniciativas que é o laboratório dos estímulos sinceros e do braço generoso.
Ora não possuindo Goa uma revista literária, que fosse, a um tempo, repositório das fermentações intelectuais goeses e de ligação entre os mesmos, necessitam os artistas e os escritores dessa terra, mais do que em qualquer outra, de se reunirem à volta de uma associação independente sem tutelas nem capelinhas.
Aí, se trocariam impressões; aí, se debateriam problemas; aí, se agitariam a estética e a doutrina artística e literária; e, logo, essa associação, se transformaria em casa de cultura e um ponto de origem para o levantamento cultural de Goa.
Nada, neste momento, se nos afigura de tanta importância na vida intelectual dos goeses, para sua aproximação, para um contacto estreito, solidário e necessário, como a criação de um organismo que tendesse à reunião dos escritores, jornalistas, artistas e intelectuais.
Os indivíduos mais activos poderiam intentar na efectivação de qualquer coisa nesse género, pois encontrariam, de certo, e apesar da indiferença de muitos, bastantes elementos e considerável apoio para irem para a frente e lançarem as bases de um trabalho com largo futuro.
Que a ideia de um Círculo de Cultura não tenha morrido são os nosso desejos e daqui, de longe, e sempre perto, daremos entusiasticamente a nossa adesão, embora tenhamos a consciência de que ela não tenha interesse real ou possa pesar, a não ser por vir de quem apagadamente, mas sinceramente, procurou durante alguns anos, servir a cultura de Goa ou em Goa.
Os intelectuais, os homens para quem a vida não é unicamente o futebol e o colóquio estéril da esquina do bar, precisam de estar ligados, já por espírito de conservação, já por necessidade de se poderem realizar totalmente no dia a dia das suas preocupações e melhores ambições.
Esta ligação, este contacto vital e inadiável, pode fazer-se por dois processos: ligação simplesmente espiritual, ligação directa.
Ligação simplesmente espiritual quando obtida através de revistas de colaboração própria em publicações literárias próprias. Ligação directa através de organismo ou organismos culturais, onde a presença directa, real é vínculo poderoso que, às vezes, leva a grandes iniciativas que é o laboratório dos estímulos sinceros e do braço generoso.
Ora não possuindo Goa uma revista literária, que fosse, a um tempo, repositório das fermentações intelectuais goeses e de ligação entre os mesmos, necessitam os artistas e os escritores dessa terra, mais do que em qualquer outra, de se reunirem à volta de uma associação independente sem tutelas nem capelinhas.
Aí, se trocariam impressões; aí, se debateriam problemas; aí, se agitariam a estética e a doutrina artística e literária; e, logo, essa associação, se transformaria em casa de cultura e um ponto de origem para o levantamento cultural de Goa.
Nada, neste momento, se nos afigura de tanta importância na vida intelectual dos goeses, para sua aproximação, para um contacto estreito, solidário e necessário, como a criação de um organismo que tendesse à reunião dos escritores, jornalistas, artistas e intelectuais.
Os indivíduos mais activos poderiam intentar na efectivação de qualquer coisa nesse género, pois encontrariam, de certo, e apesar da indiferença de muitos, bastantes elementos e considerável apoio para irem para a frente e lançarem as bases de um trabalho com largo futuro.
Que a ideia de um Círculo de Cultura não tenha morrido são os nosso desejos e daqui, de longe, e sempre perto, daremos entusiasticamente a nossa adesão, embora tenhamos a consciência de que ela não tenha interesse real ou possa pesar, a não ser por vir de quem apagadamente, mas sinceramente, procurou durante alguns anos, servir a cultura de Goa ou em Goa.
Tuesday 20 September 2011
Frei Manuel Cristo - Raridade do romance na literatura indo-portuguesa (1958)
Como é do conhecimento público, a Agência Geral do Ultramar, que tão apreciáveis serviços vem prestando à cultura portuguesa, estabeleceu no intuito de incentivar o interesse dos estudiosos pelos variados problemas ultramarinas, um concurso anual de literatura sob estas quatro modalidades: poesia, novelística, história e ensaio.
Haverá um ou dois meses anunciou a imprensa que os júris constituídos para julgamento dos trabalhos que concorreram para o certame do ano findo, conferiram prémios a obras seleccionadas entre dezenas de produções apresentadas ao concurso.
Louvando esta bela iniciativa da Agência do Ultramar, um jornalista metropolitano, depois de verificar que quase todos os escritores que se candidatam para os prémios, se ocupam, sobretudo, no domínio ficcionista, somente dos costumes e paisagens de África, estranhava que continuassem esquecidos os assuntos do Oriente português, mormente da Índia, dos quais trataram com carinho e reconhecida objectividade os escritores quinhentistas.
Deplorava ainda que Goa, sem embargo do seu numeroso escol de escritores e intelectuais, não tivesse chegado a conquistar até aqui, pelo menos na literatura de ficção num um prémio e terminava por concluir pela manifesta inferioridade das produções de escritores goeses na novelística.
E vamos lembrar-nos passados alguns anos, do juízo do escritor alguns anos, do juízo do escritor, não é porque nos mova o empenho de contrastar a todo o transe a opinião que, aliás, com alguma reserva, não teríamos dúvida de subscrever.
Um lanço rápido de vista pela literatura luso-indiana basta para apurar que entre tantos géneros cultivados pelos indo-portugueses, o romance é que tem tido pouca fortuna. Podemos até afirmar que, excepção feita de Os Brâmanes, de Francisco Luís Gomes não se descobre na nossa literatura, um romance digno deste nome.
Parece-nos que não é difícil explicar a razão do fenómeno que só à primeira vista, se afigura estranho.
Para se criar uma obra de arte como a novela, o conto, o drama, requer-se da parte do autor uma notável dose de imaginação criadora, capacidade emotiva, ou seja, sensibilidade e o senso estético, dum lado; e doutro, um estilo próprio servido por uma opulência vocabular e fraseológica.
E o goês possui o que se chama temperamento artístico, não é feliz todavia na forma em que não tendo podido assenhorear-se da língua, principalmente se sempre viveu nesta terra cujo idioma é diferente do portuês, não se acha capaz de desenvolver um conflito intimo com a riqueza e simplicidade com que faria um escritor da metrópole, que bebeu a língua com o leito materno.
Nós pertencemos àquela classe de “povos” que, no dizer do Prof. Rodrigues Lapa na sua obra A politica do idioma e as universidades, “têm uma alma dilacerada e confusa: são aqueles que, pelos acasos da história, da história feita pelos grandes homens, são obrigados a falar duas ou mais línguas: uma, a verdadeira que se mamou dos seios maternos, a outra que é imposta oficalmente pelo conquistador.”
Se uma obra de arte que se imponha pelo seu real valor, não sai da pena do goês, é porque ela não pode ser elaborada somente, com o auxílio da gramática e do dicionário dessa língua, uma tal obra deve sair espontânea da alma e só podemos exprimir-nos espontaneamente no idioma que as nossas mães nos ensinaram.
Haverá um ou dois meses anunciou a imprensa que os júris constituídos para julgamento dos trabalhos que concorreram para o certame do ano findo, conferiram prémios a obras seleccionadas entre dezenas de produções apresentadas ao concurso.
Louvando esta bela iniciativa da Agência do Ultramar, um jornalista metropolitano, depois de verificar que quase todos os escritores que se candidatam para os prémios, se ocupam, sobretudo, no domínio ficcionista, somente dos costumes e paisagens de África, estranhava que continuassem esquecidos os assuntos do Oriente português, mormente da Índia, dos quais trataram com carinho e reconhecida objectividade os escritores quinhentistas.
Deplorava ainda que Goa, sem embargo do seu numeroso escol de escritores e intelectuais, não tivesse chegado a conquistar até aqui, pelo menos na literatura de ficção num um prémio e terminava por concluir pela manifesta inferioridade das produções de escritores goeses na novelística.
E vamos lembrar-nos passados alguns anos, do juízo do escritor alguns anos, do juízo do escritor, não é porque nos mova o empenho de contrastar a todo o transe a opinião que, aliás, com alguma reserva, não teríamos dúvida de subscrever.
Um lanço rápido de vista pela literatura luso-indiana basta para apurar que entre tantos géneros cultivados pelos indo-portugueses, o romance é que tem tido pouca fortuna. Podemos até afirmar que, excepção feita de Os Brâmanes, de Francisco Luís Gomes não se descobre na nossa literatura, um romance digno deste nome.
Parece-nos que não é difícil explicar a razão do fenómeno que só à primeira vista, se afigura estranho.
Para se criar uma obra de arte como a novela, o conto, o drama, requer-se da parte do autor uma notável dose de imaginação criadora, capacidade emotiva, ou seja, sensibilidade e o senso estético, dum lado; e doutro, um estilo próprio servido por uma opulência vocabular e fraseológica.
E o goês possui o que se chama temperamento artístico, não é feliz todavia na forma em que não tendo podido assenhorear-se da língua, principalmente se sempre viveu nesta terra cujo idioma é diferente do portuês, não se acha capaz de desenvolver um conflito intimo com a riqueza e simplicidade com que faria um escritor da metrópole, que bebeu a língua com o leito materno.
Nós pertencemos àquela classe de “povos” que, no dizer do Prof. Rodrigues Lapa na sua obra A politica do idioma e as universidades, “têm uma alma dilacerada e confusa: são aqueles que, pelos acasos da história, da história feita pelos grandes homens, são obrigados a falar duas ou mais línguas: uma, a verdadeira que se mamou dos seios maternos, a outra que é imposta oficalmente pelo conquistador.”
Se uma obra de arte que se imponha pelo seu real valor, não sai da pena do goês, é porque ela não pode ser elaborada somente, com o auxílio da gramática e do dicionário dessa língua, uma tal obra deve sair espontânea da alma e só podemos exprimir-nos espontaneamente no idioma que as nossas mães nos ensinaram.
Friday 16 September 2011
Lino Abreu - Minha terra cobiçada (1964)
Já outrora, de Além-Gates,
Ó Terra de mim sonhada
Em meus sonhos encantados,
Reis e sultões, em cobiça ardendo,
E de tesouros sem fim carregados,
- Hostes imperiais, enlouquecendo,
Da raça do tigre,
Fio nos aços, adagas no olhar,
Em pó envoltos de uma longa estrada,
Te vinham à porta bater!
Formosa Noiva, frágil, solitária,
Foste por eles cobiçada!
E, de Além-mares,
Ébrios da tua fama,
E ávidos de te ver,
Marinheiros que à Morte
Rente navegavam, sem a temer,
- Impávidos triremes, caravelas,
Ao vento afeitos e ao mar,
Ao sol e às estrelas
Te vieram as praias adorar!
Bela princesa, rica e decantada
Foste por eles cobiçada!
Ó velho ninho meu, que de um a serra,
E, do outro lado, o mar recorta,
- Tecido do berilo das colinas,
Que são deusas,
E dos cristais dos rios.
Que são baladas,
Não ouves agora, não,
Já de novo bater à tua porta,
E por ti gritar também,
Do Gigante a voz, como o trovão?...
Mas sossega!... Ninguém!
Vinda de Além-Gates,
E só a Cobiça que de novo bate.
E não
A Razão!
Ó Terra de mim sonhada
Em meus sonhos encantados,
Reis e sultões, em cobiça ardendo,
E de tesouros sem fim carregados,
- Hostes imperiais, enlouquecendo,
Da raça do tigre,
Fio nos aços, adagas no olhar,
Em pó envoltos de uma longa estrada,
Te vinham à porta bater!
Formosa Noiva, frágil, solitária,
Foste por eles cobiçada!
E, de Além-mares,
Ébrios da tua fama,
E ávidos de te ver,
Marinheiros que à Morte
Rente navegavam, sem a temer,
- Impávidos triremes, caravelas,
Ao vento afeitos e ao mar,
Ao sol e às estrelas
Te vieram as praias adorar!
Bela princesa, rica e decantada
Foste por eles cobiçada!
Ó velho ninho meu, que de um a serra,
E, do outro lado, o mar recorta,
- Tecido do berilo das colinas,
Que são deusas,
E dos cristais dos rios.
Que são baladas,
Não ouves agora, não,
Já de novo bater à tua porta,
E por ti gritar também,
Do Gigante a voz, como o trovão?...
Mas sossega!... Ninguém!
Vinda de Além-Gates,
E só a Cobiça que de novo bate.
E não
A Razão!
Victor Orlando - Carne à venda (1956)
From the column “Ouvindo todo e qualquer”
Subtitle: O balcão é a cama; o preço não depende do peso; a balança é o relógio; há fregueses de todos os feitiso: bons, maus, nem bons nem maus.
Preamble: Com esta entrevista iniciamos a série em epigrafe. Tentaremos assim, fugir às normas ditadas por aquela forma de jornalismo que, começando por ser de luva calçada, descamba em jornalismo de banalidades, abstraindo-se do seu papel fundamental – de servir o público – para assumir o de louvaminhas e beija-pés.
Todo e qualquer será aqui entrevistado. Exporá o seu caso. Revelará os seus problemas, ao mesmo tempo lançando o seu repto à sociedade que para a existência desses problemas concorre com o seu total desprezo pelo mais fraco.
Não esquecemos que a sociedade é, em ponto maior, o que cada um de nós é. O ladrão que rouba a mulher que se prostitui, a criança que desanda, têm, todos, em cada um de nós, um conivente, um co-autor dos seus desmandos, pois a cada um de nós cumpria proporcionar-lhes meios de vida decentes, não levando o nosso amor próprio ao ponte de o tornar prejudicial aos interesses alheios!
Todo e qualquer aqui dirá da sua justiça!
A entrevistada é uma mulher que é filha duma mãe. Não tem pai. Não sabe quem é seu pai e não pode sabê-lo. Para dizer a verdade, não quer sabê-lo – quando se cai sobre um monte de pedras nunca se descobre qual foi a que mais magoou; quando se é filha de “Naiquina” nunca se sabe quem é o pai!
Ela tem nome. E tem marido. O nome não revelo e o marido é o coqueiro à frente da sua casa. Nasceu por acidente mas a sua vida não é acidente. Faz parte da tradição. Sua mãe casou-se com um coqueiro. Sua avó também. O ritual é velho.
O coqueiro é o marido simbólico dessas mulheres que mudam de amante como quem muda de camisa. Coqueiro e “Naiquina” casam-se em pitoresca cerimónia antes da “Naquina” ser mulher. Nesse dia a mulher planta o marido – O Coqueiro – e deixa-o à sua sorte. Faz o mesmo o Coqueiro e abandona a mulher aos azares da vida. Não se melindra com nada. Não sabe o que seja ciúmes.
A entrevistada conserva em sua casa retratos de personagens importantes que para a sua alcova entraram. Descreve-lhes os gostos e as predilecções a, ao falar, comove-se e chora com aquela facilidade que a sua vida difícil torna possível. Mas é possível que tenha saudades dos seus dias de prosperidade. Não sei como era a casa há vinte anos. Agora, o tecto deixa atravessar-se por réstias de sol, o chão é húmido, aquele antro mete nojo.
A um canto, uma bicicleta que de bicicleta só tem o quadro, o guiador e o guarda-lama. A um outro, uma bacia de ferro esmaltada, com mais ferro do que esmalte. Encostada a uma parede, uma cama sem lençol, com uma esteira de palha mais infecta do que um mictório publico. Por todos os lados, retratos de artistas do cinema indiano, pin-ups já estafadas recolhidas dos cestos de lixo que pelos modos, nada ofendem os deuses que também naquelas paredes tem os seus retratos.
Tem nome, como disse. Tem marido, como expliquei. E tem filhos: duas filhas que já ganham e dois rapazes ainda pequenos que dormem no chão do quarto único da sua casa miserável. Esses dois rapazes nasceram para ser vadios: serão vadios. A sua família sabe-o perfeitamente. Seus tios são vadios. Esses dois rapazes dormem no chão da alcova da sua mãe. A vida, para eles, não contem segredos – não chão se permanecem, dormindo ou fingindo dormir, enquanto dura a noite negra.
Pergunto à entrevistada:
- Como encara a vida?
Responde-me:
- É o que vê. Os sábados são horríveis. E os domingos pior ainda. Tenho um amante que me bate se lhe não dou quanto dinheiro quer para se embebedar.
- E a saúde? – perguntei.
A pergunta ofendeu-a. Da sua saúde depende a prosperidade. E eu tinha-a ultrajado.
- O que é que o sr .julga? Nunca tive a mais pequenina coisa sequer! Julga que sou como a... ou como a.. ? Muito se engana!
E ela foi continuando o seu discurso. Jurando que tinha óptima saúde. Que nunca tinha tido a mais pequenina coisa sequer.
A entrevista tinha de terminar ali. E terminou. E saí daquele talho de carne humana. Ali o balcão é a cama. E paga-se a carne como se a usa. Pesa-se-a com o relógio. Quando mais tempo, mais o preço. E fregueses não faltam. Chova ou faça sol, assim é.
Quando regressei à cidade encontrei a como a deixara. Nas ruas gente de todos os tamanhos. E aquele garoto, com cara de inocente, que comprava doces, três por uma tanga, na praça dos automóveis – não garanto, mas juro – era o garoto que nervoso, confundindo, vi fugir quando me viu enquanto eu aprendia numa casa miserável que o coqueiro tem mais esta utilidade de ser marido paciente de mulheres desgraçadas.
Subtitle: O balcão é a cama; o preço não depende do peso; a balança é o relógio; há fregueses de todos os feitiso: bons, maus, nem bons nem maus.
Preamble: Com esta entrevista iniciamos a série em epigrafe. Tentaremos assim, fugir às normas ditadas por aquela forma de jornalismo que, começando por ser de luva calçada, descamba em jornalismo de banalidades, abstraindo-se do seu papel fundamental – de servir o público – para assumir o de louvaminhas e beija-pés.
Todo e qualquer será aqui entrevistado. Exporá o seu caso. Revelará os seus problemas, ao mesmo tempo lançando o seu repto à sociedade que para a existência desses problemas concorre com o seu total desprezo pelo mais fraco.
Não esquecemos que a sociedade é, em ponto maior, o que cada um de nós é. O ladrão que rouba a mulher que se prostitui, a criança que desanda, têm, todos, em cada um de nós, um conivente, um co-autor dos seus desmandos, pois a cada um de nós cumpria proporcionar-lhes meios de vida decentes, não levando o nosso amor próprio ao ponte de o tornar prejudicial aos interesses alheios!
Todo e qualquer aqui dirá da sua justiça!
A entrevistada é uma mulher que é filha duma mãe. Não tem pai. Não sabe quem é seu pai e não pode sabê-lo. Para dizer a verdade, não quer sabê-lo – quando se cai sobre um monte de pedras nunca se descobre qual foi a que mais magoou; quando se é filha de “Naiquina” nunca se sabe quem é o pai!
Ela tem nome. E tem marido. O nome não revelo e o marido é o coqueiro à frente da sua casa. Nasceu por acidente mas a sua vida não é acidente. Faz parte da tradição. Sua mãe casou-se com um coqueiro. Sua avó também. O ritual é velho.
O coqueiro é o marido simbólico dessas mulheres que mudam de amante como quem muda de camisa. Coqueiro e “Naiquina” casam-se em pitoresca cerimónia antes da “Naquina” ser mulher. Nesse dia a mulher planta o marido – O Coqueiro – e deixa-o à sua sorte. Faz o mesmo o Coqueiro e abandona a mulher aos azares da vida. Não se melindra com nada. Não sabe o que seja ciúmes.
A entrevistada conserva em sua casa retratos de personagens importantes que para a sua alcova entraram. Descreve-lhes os gostos e as predilecções a, ao falar, comove-se e chora com aquela facilidade que a sua vida difícil torna possível. Mas é possível que tenha saudades dos seus dias de prosperidade. Não sei como era a casa há vinte anos. Agora, o tecto deixa atravessar-se por réstias de sol, o chão é húmido, aquele antro mete nojo.
A um canto, uma bicicleta que de bicicleta só tem o quadro, o guiador e o guarda-lama. A um outro, uma bacia de ferro esmaltada, com mais ferro do que esmalte. Encostada a uma parede, uma cama sem lençol, com uma esteira de palha mais infecta do que um mictório publico. Por todos os lados, retratos de artistas do cinema indiano, pin-ups já estafadas recolhidas dos cestos de lixo que pelos modos, nada ofendem os deuses que também naquelas paredes tem os seus retratos.
Tem nome, como disse. Tem marido, como expliquei. E tem filhos: duas filhas que já ganham e dois rapazes ainda pequenos que dormem no chão do quarto único da sua casa miserável. Esses dois rapazes nasceram para ser vadios: serão vadios. A sua família sabe-o perfeitamente. Seus tios são vadios. Esses dois rapazes dormem no chão da alcova da sua mãe. A vida, para eles, não contem segredos – não chão se permanecem, dormindo ou fingindo dormir, enquanto dura a noite negra.
Pergunto à entrevistada:
- Como encara a vida?
Responde-me:
- É o que vê. Os sábados são horríveis. E os domingos pior ainda. Tenho um amante que me bate se lhe não dou quanto dinheiro quer para se embebedar.
- E a saúde? – perguntei.
A pergunta ofendeu-a. Da sua saúde depende a prosperidade. E eu tinha-a ultrajado.
- O que é que o sr .julga? Nunca tive a mais pequenina coisa sequer! Julga que sou como a... ou como a.. ? Muito se engana!
E ela foi continuando o seu discurso. Jurando que tinha óptima saúde. Que nunca tinha tido a mais pequenina coisa sequer.
A entrevista tinha de terminar ali. E terminou. E saí daquele talho de carne humana. Ali o balcão é a cama. E paga-se a carne como se a usa. Pesa-se-a com o relógio. Quando mais tempo, mais o preço. E fregueses não faltam. Chova ou faça sol, assim é.
Quando regressei à cidade encontrei a como a deixara. Nas ruas gente de todos os tamanhos. E aquele garoto, com cara de inocente, que comprava doces, três por uma tanga, na praça dos automóveis – não garanto, mas juro – era o garoto que nervoso, confundindo, vi fugir quando me viu enquanto eu aprendia numa casa miserável que o coqueiro tem mais esta utilidade de ser marido paciente de mulheres desgraçadas.
Lia Teles e Aguiar - A meu pai (1982)
Velha cidade de Goa
A dourada!
Jaz encantada
E adormecida
Entre as sombras
De verdes palmares
À beira do Mandovi
A sonhar
Com a glória passada
Uma alma apaixonada
Dorme a seu lado
Também a sonhar
Tentando decifrar
Os mistérios do seu passado
Não poderá essa alma
Repousar calma
Longe de ti, o Cidade Velha
Menina dos seus olhos!
Cidade dos seus sonhos!
Dorme, nas ruínas gloriosas
De igrejas, capelas
Conventos e palácios
Dorme em paz!
Que só nela a tua alma
Poderá repousar calma
Eternamente a sonhar.
A dourada!
Jaz encantada
E adormecida
Entre as sombras
De verdes palmares
À beira do Mandovi
A sonhar
Com a glória passada
Uma alma apaixonada
Dorme a seu lado
Também a sonhar
Tentando decifrar
Os mistérios do seu passado
Não poderá essa alma
Repousar calma
Longe de ti, o Cidade Velha
Menina dos seus olhos!
Cidade dos seus sonhos!
Dorme, nas ruínas gloriosas
De igrejas, capelas
Conventos e palácios
Dorme em paz!
Que só nela a tua alma
Poderá repousar calma
Eternamente a sonhar.
Álvaro Silveira - A viúva (1982)
Há quem chame à mulher ente perverso
Atacando-a, por vezes, sem razão
A mulher é, no mundo, um vivo clarão
É flor encantadora do Universo.
Do marido a vida sempre embalou
Com o sorriso de viva inspiração
A viúva tem só meio coração
Outra metade, o negro manto a levou.
Ela que foi a estrela do seu lar
Torna-se um ente sofredor da humanidade
Solitária, a boiar no vasto mar.
Temos que ampará-la com amizade
Como o nosso ente familiar
E rehabilitá-la com benignidade.
Atacando-a, por vezes, sem razão
A mulher é, no mundo, um vivo clarão
É flor encantadora do Universo.
Do marido a vida sempre embalou
Com o sorriso de viva inspiração
A viúva tem só meio coração
Outra metade, o negro manto a levou.
Ela que foi a estrela do seu lar
Torna-se um ente sofredor da humanidade
Solitária, a boiar no vasto mar.
Temos que ampará-la com amizade
Como o nosso ente familiar
E rehabilitá-la com benignidade.
Mário Cabral e Sá - O baile (1962)
Chegou a hora. A hora das mensagens que se lêem nos olhos. Das palavras que se não falam. Um a um todos os convivas se levantam. Há despedidas. Os convites de convenção, “para o lanche, amanhã à tarde”. Há olhares que se desviam, outros que se cruzam e se fixam. Os papás mordem charutos e dão palmadinhas nas costas das meninas dos compadres. As meninas examinam os semblantes dos filhos casadoiros de outrem, inscrevem apontamentos, na sua mente, sobre o que viram e não viram e magicam artes de conquistar o José Olívio – novo, filho único, uma nada estrábico mas rico. Que mais se quer?... Se a Annette tem namoro? Que o desfaça. Amor e cabana, sim senhores, muito bonito, mas é para outra gente... Há os últimos apertos das mãos e a revolta dos insubmissos.
Levanta-te, “Balalaica”. Chegou a hora. Hoje tens trabalho. Há cadeiras por arrumar. O chão por limpar. Urinóis por desentupir. E talvez ainda haja para ti restos de comida e cerveja choca nos fundos dos copos, esquecidos por baixo das cadeiras.
Levanta-te, também tu. Bem sei que não pudeste dormir. Mas sai da cama. Agora ou nunca! O papel está na caixa, ao canto esquerdo da secretaria. A caneta na algibeira do paletó de teu pai. Deixa o selo, o sobrescrito e a direcção por minha conta.
“Não sei por onde começar. Mas já o deves adivinhar. Afinal...”
“Ontem, como sabes, houve baile. A mamã não atendeu a nenhuma das mil desculpas que havíamos inventado para que nessa noite, até que enfim, mais uma vez, umas horas juntos. Sós, em casa, enquanto os meus pais estivessem no baile. Absolutamente sós. Eu e tu... A mamã insistiu e o papá quase me bateu. Que era filha de gente de bem. Que esse baile podia decidir o meu futuro! Maldito baile e maldito o futuro que ele decidiu!
“Desde as cinco da manhã de hoje, estou noiva. Essa terrível desgraça que antecipávamos, enfim deu-se! À porta da saída, os meus pais e os pais do Albano discutiram os últimos pormenores. Depois, no carro, disseram-me que estava noiva. Que o “rapaz” era uma jóia de homem – apesar do cretinismo que abunda nas suas faces gordas de querubim vesgo em férias terrenas. Que o “rapaz” é rico. Que o “rapaz” é filho único. Que o “rapaz”... que o “rapaz”, mil vezes maldito, é o meu futuro marido.
“Não quero esforçar-me em imaginar as tuas reacções à esta carta. Se muito já sofro de pensar em ti daria em doida. Antes desse! Mas talvez ainda nos vejamos. Não sei. Mas quanto não daria eu – oh, se pudesse! – para que isso fosse possível. Mesmo que haja infernos nesta vida e noutra.
“Sei que poderia e deveria ser mais forte. Que tudo devia arriscar pelo amor que nos une e agora nos separa. Desculpa-me Victor. Fui fraca. Como naquela noite em em que melhor nos conhecêssemos... Tu és bom. Tu és um homem diferente dos outros homens. Por isso continuarei a ser tua.
Hoje como sempre.
Tua
Annette”
Pois bem, Victor, aqui tens a carta. Sou testemunha da tua mágoa. Do desmoronar dos edifícios de felicidade que havias arquitectado. Por isso, estarei presente na hora da tua reabilitação. Na vida vencem os insubmissos.
E tu, “Balalaica” continua a varrer. Limpo o pó e os vómitos no bacio. Procura a dona do fio de ouro que apanhaste preso à borda do cortinado. E isso que tens na mão e esticas e largas, como se fisga fosse, é uma liga com que as Senhoras prendem as meias à coxa. Deita-a no lixo ou brincas com ela se quiseres. Diverte-te à custa da Dama Nobre que se descuidou...
Levanta-te, “Balalaica”. Chegou a hora. Hoje tens trabalho. Há cadeiras por arrumar. O chão por limpar. Urinóis por desentupir. E talvez ainda haja para ti restos de comida e cerveja choca nos fundos dos copos, esquecidos por baixo das cadeiras.
Levanta-te, também tu. Bem sei que não pudeste dormir. Mas sai da cama. Agora ou nunca! O papel está na caixa, ao canto esquerdo da secretaria. A caneta na algibeira do paletó de teu pai. Deixa o selo, o sobrescrito e a direcção por minha conta.
“Não sei por onde começar. Mas já o deves adivinhar. Afinal...”
“Ontem, como sabes, houve baile. A mamã não atendeu a nenhuma das mil desculpas que havíamos inventado para que nessa noite, até que enfim, mais uma vez, umas horas juntos. Sós, em casa, enquanto os meus pais estivessem no baile. Absolutamente sós. Eu e tu... A mamã insistiu e o papá quase me bateu. Que era filha de gente de bem. Que esse baile podia decidir o meu futuro! Maldito baile e maldito o futuro que ele decidiu!
“Desde as cinco da manhã de hoje, estou noiva. Essa terrível desgraça que antecipávamos, enfim deu-se! À porta da saída, os meus pais e os pais do Albano discutiram os últimos pormenores. Depois, no carro, disseram-me que estava noiva. Que o “rapaz” era uma jóia de homem – apesar do cretinismo que abunda nas suas faces gordas de querubim vesgo em férias terrenas. Que o “rapaz” é rico. Que o “rapaz” é filho único. Que o “rapaz”... que o “rapaz”, mil vezes maldito, é o meu futuro marido.
“Não quero esforçar-me em imaginar as tuas reacções à esta carta. Se muito já sofro de pensar em ti daria em doida. Antes desse! Mas talvez ainda nos vejamos. Não sei. Mas quanto não daria eu – oh, se pudesse! – para que isso fosse possível. Mesmo que haja infernos nesta vida e noutra.
“Sei que poderia e deveria ser mais forte. Que tudo devia arriscar pelo amor que nos une e agora nos separa. Desculpa-me Victor. Fui fraca. Como naquela noite em em que melhor nos conhecêssemos... Tu és bom. Tu és um homem diferente dos outros homens. Por isso continuarei a ser tua.
Hoje como sempre.
Tua
Annette”
Pois bem, Victor, aqui tens a carta. Sou testemunha da tua mágoa. Do desmoronar dos edifícios de felicidade que havias arquitectado. Por isso, estarei presente na hora da tua reabilitação. Na vida vencem os insubmissos.
E tu, “Balalaica” continua a varrer. Limpo o pó e os vómitos no bacio. Procura a dona do fio de ouro que apanhaste preso à borda do cortinado. E isso que tens na mão e esticas e largas, como se fisga fosse, é uma liga com que as Senhoras prendem as meias à coxa. Deita-a no lixo ou brincas com ela se quiseres. Diverte-te à custa da Dama Nobre que se descuidou...
Wednesday 14 September 2011
Alfredo Bragança - Desilusão (1968)
É tudo desilusão,
Nem arroz, nem pão.
É língua a arder Troas
Na Índia...
A Índia em pedaços,
A língua é tudo,
Pois não!
Muita politica,
Estômagos vazios,
Enquanto uns poucos tubarões
Se desfazem
Em gargalhadas satânicas.
As cinzas de Nehru e Shastri
Recusam-se
A comisturar com a terra,
E alimentar a seara
Que gera o pão.
Pão que não há.
Açúcar também não.
Viva a Liberdade
Apertando o cinturão.
Jesus Cristo
Não desceu da Cruz,
Não, não,
Pobre da Humanidade
Suspensa sem luz,
Em perene incerteza.
Tudo isto,
Sem cor, sem luz,
Sem arroz, sem pão,
É desilusão.
Nem arroz, nem pão.
É língua a arder Troas
Na Índia...
A Índia em pedaços,
A língua é tudo,
Pois não!
Muita politica,
Estômagos vazios,
Enquanto uns poucos tubarões
Se desfazem
Em gargalhadas satânicas.
As cinzas de Nehru e Shastri
Recusam-se
A comisturar com a terra,
E alimentar a seara
Que gera o pão.
Pão que não há.
Açúcar também não.
Viva a Liberdade
Apertando o cinturão.
Jesus Cristo
Não desceu da Cruz,
Não, não,
Pobre da Humanidade
Suspensa sem luz,
Em perene incerteza.
Tudo isto,
Sem cor, sem luz,
Sem arroz, sem pão,
É desilusão.
Laxmanrao Sardessai - Um conflito (1965)
Sou sensível aos sofrimentos
Dos corações doridos...
E então, o meu coração,
Pelo contágio se torna dorido
E sofre....
Revolto-me contra a injustiça
Injustiça nas casas e nos templos
Na repartições públicas
E em todas as esferas da sociedade
E então eu sofro
Sofro quando um pobre doente,
Por carência de meios, morre.
Sofro, quando vejo um estudante pobre
Frequentar a escola galgando,
Na chuva ou no sol, longas distâncias,
Sofro quando um poderoso batcar
Absorve alguns coqueiros
Do proprietário vizinho
Sofro, quando um comerciante
Calcando, toda a moralidade se locupleta,
À custa do mercado negro,
Sofro e não faço nada!
As minhas forças não chegam
Para atenuar dores alheias
Nem para atalhar a onda
Devoradora do crime legalizado
E assim todos os sofrimentos acumulados
Vão ajuntar mais uma unidade
À caudalosa corrente de corações doridas!
Dos corações doridos...
E então, o meu coração,
Pelo contágio se torna dorido
E sofre....
Revolto-me contra a injustiça
Injustiça nas casas e nos templos
Na repartições públicas
E em todas as esferas da sociedade
E então eu sofro
Sofro quando um pobre doente,
Por carência de meios, morre.
Sofro, quando vejo um estudante pobre
Frequentar a escola galgando,
Na chuva ou no sol, longas distâncias,
Sofro quando um poderoso batcar
Absorve alguns coqueiros
Do proprietário vizinho
Sofro, quando um comerciante
Calcando, toda a moralidade se locupleta,
À custa do mercado negro,
Sofro e não faço nada!
As minhas forças não chegam
Para atenuar dores alheias
Nem para atalhar a onda
Devoradora do crime legalizado
E assim todos os sofrimentos acumulados
Vão ajuntar mais uma unidade
À caudalosa corrente de corações doridas!
Juliana Cordeiro Monteiro - Eterno sonho (1965)
Que me diz,
Risonho, o sonho?
- Sou a esperança,
Que acalenta
As almas sedentas
Por um porvir feliz.
- Sou a urna de ilusões,
Frágil como o cristal,
A baloiçar no espaço etéreo,
Para fazer rir e chorar
Até o homem mais sério.
- Quem me procura,
Infatigável, confiante,
Será meu amante,
Mas não me acha nunca.
Contudo,
Não sei porquê,
Também sonhei
Uma vez na vida
E nessa paisagem apetecida
Poisei a vista gulosa,
E o coração em pista
De um bem
Que jamais achei.
Não seria isso sonho,
Se, alguma vez,
Eu pudesse navegar
Nas ondas amorosas
Desse mar de rosas,
Que eram, talvez,
Para que eu, louca,
As namorasse de longe
Com águas na boca.
Mas, ó credulidade de monja,
Que a idade
Não fez esmorecer!
Pois, mil vezes desiludida,
E neste entardecer
Da minha vida,
Nos escombros
Dos meus sonhos desfeitos,
Sonho agora, com efeito,
Mais ainda
Do que sonhei outrora...
Risonho, o sonho?
- Sou a esperança,
Que acalenta
As almas sedentas
Por um porvir feliz.
- Sou a urna de ilusões,
Frágil como o cristal,
A baloiçar no espaço etéreo,
Para fazer rir e chorar
Até o homem mais sério.
- Quem me procura,
Infatigável, confiante,
Será meu amante,
Mas não me acha nunca.
Contudo,
Não sei porquê,
Também sonhei
Uma vez na vida
E nessa paisagem apetecida
Poisei a vista gulosa,
E o coração em pista
De um bem
Que jamais achei.
Não seria isso sonho,
Se, alguma vez,
Eu pudesse navegar
Nas ondas amorosas
Desse mar de rosas,
Que eram, talvez,
Para que eu, louca,
As namorasse de longe
Com águas na boca.
Mas, ó credulidade de monja,
Que a idade
Não fez esmorecer!
Pois, mil vezes desiludida,
E neste entardecer
Da minha vida,
Nos escombros
Dos meus sonhos desfeitos,
Sonho agora, com efeito,
Mais ainda
Do que sonhei outrora...
Benedito Dias - Índia, o país das maravilhas (1983)
A VIDA deixa de ter interesse
Se for despida de um forte querer;
Cá vou narrando factos da infância
Que trincão me pediu para escrever.
ÍNDIA – Civilização milenária,
Com Espiritualidade e Certeza
Poderá vencer todas forças do Mundo
Mas nunca a força da Natureza!
Com arte e competência da gente
Emergirá da condição adversa:
Mas quando derreter o Himalaia
Toda ela ficará submersa!...
Uma vez pergntou ao “Santo”
Que da Terra não era um bastardo;
“qual é a sua pátria ou nação?!”
com que ele ficou triste e pasmado.
E respondeu-lhe numa bela canção: ela tem forma dum grande triangulo que antes parece um bom coração encerrado num pequeno rectângulo!
Se for despida de um forte querer;
Cá vou narrando factos da infância
Que trincão me pediu para escrever.
ÍNDIA – Civilização milenária,
Com Espiritualidade e Certeza
Poderá vencer todas forças do Mundo
Mas nunca a força da Natureza!
Com arte e competência da gente
Emergirá da condição adversa:
Mas quando derreter o Himalaia
Toda ela ficará submersa!...
Uma vez pergntou ao “Santo”
Que da Terra não era um bastardo;
“qual é a sua pátria ou nação?!”
com que ele ficou triste e pasmado.
E respondeu-lhe numa bela canção: ela tem forma dum grande triangulo que antes parece um bom coração encerrado num pequeno rectângulo!
RV Pandit - Espiga (1962)
A espiga
Abana a cabeça?
Diz: não, não?
Nada receis.
Há-de recusar
Pouco tempo...
E depois
Há-de vergar
Há-de vergar
E cair
No regaço
De alguém
E depois?
Há-de dançar
Na peneira
Banhar na volli
E rir
Na panela
E depois...
Há-de entrar
Voluntariamente
No corpo de alguém
Para lhe matar a fome!!
Alfredo Bragança - O grande poeta RV Pandit (1968)
Alguns dias depois da estrondosa aclamação que R.V. Pandit, o poeta festejado de Goa, recebeu com uma condecoração honorífica das Filipinas, passo a falar dele no que mais me impressionou na sua poesia de alto recorte literário.
R.V. Pandit, autor de quatro livros em inglês e sete em Konkani, tendo também deixado gravados os seus pensamentos em artigos em marata e inglês focando temas de actualidade social e cultural. Redigiu com proficiência a revista marata Bharati em 1953. Obteve o grau de Bacharelato, e apesar de ser estudante de ciências, bem cedo revelou o seu pendor pelas letras. Já versejava em inglês aos 15 anos. Divulgou ao depois os seus poemas em marata. Porém, só mais tarde sob a mais profunda influência dos grandes pensadores como Tagore e Kakasaheb Kalelkar é que Pandit descobriu-se, e em 1954 principiou a dar expressão plástica aos sentimentos, pensamentos e anseios de grande poeta que é na nossa língua-mãe Konkani.
RV Pandit é, sem sombra de dúvida, um “grande” poeta. É grande porque é autor de muitas obras? Não. É grande porque os seus poemas foram vertidos para hindi, kanada, inglês e português ou porque escreveu em algumas delas? Não. Pandit é grande porque é pequeno. E ser pequeno é inteirar-se dos sentimentos e anseios dos pequenos, amá-los a pugnar pelos mesmos.
A paz que o “Gauddó” procura em vão através das longínquas Nações Unidas, como se patenteia no seu poemeto “Hanv Ek Ihan Munis” (Sou um Homem Pequeno) ou a tranquilidade interna que ele próprio anseia, só pode consegui-los no bem-estar dos pequenos. No mesmo poemeto volta a bater na mesma tecla: não obstante toda a sorte de correntes e esforços para nivelar as diferenças, tudo se condensa na diferença principal – de o opressor contra o oprimido. Dum lado, os arranha-céus, e doutro os “zhopddis” da Índia, os “slums” da Inglaterra, os “ghettos” da América e as “favelas” do Brasil.
Tudo isto indica que o Pandit não está a sonhar na Torre de Marfim, nem tão pouco a inspirar-se nos livros. Ele é grande porque é formado pela Universidade da Vida. Como poeta ele penetra no âmago da vida dos pobrezinhos, sente o seu coração palpitar pelos humildes que bradam pela codeia de duro pão. Refereindo-se ao poemeto “Hanv Ek Ihan Munis”, diz o Hugh McKinley que escreveu uma longa apreciação literária no “Athens Daily Post”, que o tal poemeto “actua como uma bomba napalm sobre as nossas ilusões e afastamento da responsabilidade activa”; e condensando a sua critica literária, acrescenta: ‘nos versos do Sr. Pandit temos uma expressão quente destes temas que criam a vida: o lar, a família, o amor conjugal, a ordem e a glória da natureza.”
A personalidade do R.V. Pandit cresce com raízes no solo. Ela cheira à terra vermelha. Os seus poemas são plantas regadas com o suor dos “gauddé.” O seu coração pulsa pelo sofrimento dos “Kunbis” e
(segue na 2a pagina)
Dos pobres campesinos. Ele vê tudo sob o prisma do realismo nu da existência. Mesmo a sua imaginação não libra voos como a dos bardos românticos. A sua imaginação é bem térrea. Eis o motivo por que a sua poesia é inspirada, em grande parte, na cultura folclórica de provérbios e superstições. Não só ele ausculta os sentimentos e pensamentos dos “gauddés”, mas identifica-se com eles ainda na expressão. A sua colectânea de poemas “Mujem Guit Gauddeanchem” é toda simplicidade, despida de ornamentos artificias. E a simplicidade é grandeza, escreveu algures o Victor Hugo. O Pandit canta noutro passo que a grandeza da palha reside no seu crescer por si mesmo à chuva e ao sol.
Quando vemos o “Bhatkar-Saukar”, sr. Pandit ao volante do seu carro e morando no Altinho, a primeira pergunta que nos aflora nos lábios: “É o mesmo Pandit que se identifica com os “gauddé”? Sim, “ecce homo”. Contudo Pandit não verseja na Torre de Marfim. Algumas vezes por semana, o Pandit vai comisturar-se com os seus co-aldeanos, a arraia-miúda em Palém de Siridão. Não se sente à vontade longe deles.
O amor aos humildes abarca toda a humanidade, e o apelo dos seus poemas é universal. Na sua cadência se sente o rítmico bater do coração que geme e sofre por uma dura côdea de pão. Eis o espírito de fraternidade que extende o seu círculo dum canto a outro do mundo:
“Tum ani Hanv,
Dogui bhav bhav,
Bhashek lagun
Dusman zaliat”
Noutro poema, “Hem Mhujem Ghor”, o espírito universitária de poeta canta “hoje e cá, amanhã lá, depois não sei onde”.
Os poemas de Garcia Lorca constituem uma tela em que se projecta fielmente o panorama da Espanha. Onde está a Espanha, lá está o imortal Lorca. Enquanto viver a Goan (Koncão) lá estará o Pandit sempre vivo na memória Pandit também pinta com palavras o cenário soberbo de riachos, mangueiras e coqueiros. Porém, não cantou como Lorca que a Morte é sombra da Vida, Lorca que morreu tragicamente na Guerra Civil da Espanha em 1936 com apenas 38 primaveras. Pandit conta hoje 50 anos.
A fé inabalável nos destinos da humanidade leva-o a arrancar os seguintes versos chamejantes cheios de visão profética:
“Aiz nam faleam
Tumkam amchi yad zatoli
...
Ami tumche bhavuch
Tumche prem korpi.
...
Ani tea dissa
Soglo sonsvar – hem ek rashtr
Sogle rong, kelle gore,
Hanchi ekutch zat – mnnis zat
Ekuch dhorm – mnnis dhorm
Oxem tumkam distolem –
Tea dissachi hanv vatt polle tam”
Outro poema em que anuncia que tudo se faz por Deus, rescende à grinalda de Tagore a Deus enquanto noutro passo o poeta não deixa de se insurgir contra o formalismos, como no-lo atesta “Fatrachi Puza” (Adoração à Pedra). Acho que devia lançar ao limbo de obscuridade poucas poesias de pouco quilate como “Mudoi” (O Capital de Amor) e “Nova Torecham Kalliz” (Nova Espécie de Coração). Porém, o seu verso livre é admirável, lembrando-nos sempre do insigne poeta da democracia Walt Whitman. Que mais poesias de povo venham à luz da pena dum dos poetas mais representativos de Goa de todos os tempos, R. V. Pandit.
R.V. Pandit, autor de quatro livros em inglês e sete em Konkani, tendo também deixado gravados os seus pensamentos em artigos em marata e inglês focando temas de actualidade social e cultural. Redigiu com proficiência a revista marata Bharati em 1953. Obteve o grau de Bacharelato, e apesar de ser estudante de ciências, bem cedo revelou o seu pendor pelas letras. Já versejava em inglês aos 15 anos. Divulgou ao depois os seus poemas em marata. Porém, só mais tarde sob a mais profunda influência dos grandes pensadores como Tagore e Kakasaheb Kalelkar é que Pandit descobriu-se, e em 1954 principiou a dar expressão plástica aos sentimentos, pensamentos e anseios de grande poeta que é na nossa língua-mãe Konkani.
RV Pandit é, sem sombra de dúvida, um “grande” poeta. É grande porque é autor de muitas obras? Não. É grande porque os seus poemas foram vertidos para hindi, kanada, inglês e português ou porque escreveu em algumas delas? Não. Pandit é grande porque é pequeno. E ser pequeno é inteirar-se dos sentimentos e anseios dos pequenos, amá-los a pugnar pelos mesmos.
A paz que o “Gauddó” procura em vão através das longínquas Nações Unidas, como se patenteia no seu poemeto “Hanv Ek Ihan Munis” (Sou um Homem Pequeno) ou a tranquilidade interna que ele próprio anseia, só pode consegui-los no bem-estar dos pequenos. No mesmo poemeto volta a bater na mesma tecla: não obstante toda a sorte de correntes e esforços para nivelar as diferenças, tudo se condensa na diferença principal – de o opressor contra o oprimido. Dum lado, os arranha-céus, e doutro os “zhopddis” da Índia, os “slums” da Inglaterra, os “ghettos” da América e as “favelas” do Brasil.
Tudo isto indica que o Pandit não está a sonhar na Torre de Marfim, nem tão pouco a inspirar-se nos livros. Ele é grande porque é formado pela Universidade da Vida. Como poeta ele penetra no âmago da vida dos pobrezinhos, sente o seu coração palpitar pelos humildes que bradam pela codeia de duro pão. Refereindo-se ao poemeto “Hanv Ek Ihan Munis”, diz o Hugh McKinley que escreveu uma longa apreciação literária no “Athens Daily Post”, que o tal poemeto “actua como uma bomba napalm sobre as nossas ilusões e afastamento da responsabilidade activa”; e condensando a sua critica literária, acrescenta: ‘nos versos do Sr. Pandit temos uma expressão quente destes temas que criam a vida: o lar, a família, o amor conjugal, a ordem e a glória da natureza.”
A personalidade do R.V. Pandit cresce com raízes no solo. Ela cheira à terra vermelha. Os seus poemas são plantas regadas com o suor dos “gauddé.” O seu coração pulsa pelo sofrimento dos “Kunbis” e
(segue na 2a pagina)
Dos pobres campesinos. Ele vê tudo sob o prisma do realismo nu da existência. Mesmo a sua imaginação não libra voos como a dos bardos românticos. A sua imaginação é bem térrea. Eis o motivo por que a sua poesia é inspirada, em grande parte, na cultura folclórica de provérbios e superstições. Não só ele ausculta os sentimentos e pensamentos dos “gauddés”, mas identifica-se com eles ainda na expressão. A sua colectânea de poemas “Mujem Guit Gauddeanchem” é toda simplicidade, despida de ornamentos artificias. E a simplicidade é grandeza, escreveu algures o Victor Hugo. O Pandit canta noutro passo que a grandeza da palha reside no seu crescer por si mesmo à chuva e ao sol.
Quando vemos o “Bhatkar-Saukar”, sr. Pandit ao volante do seu carro e morando no Altinho, a primeira pergunta que nos aflora nos lábios: “É o mesmo Pandit que se identifica com os “gauddé”? Sim, “ecce homo”. Contudo Pandit não verseja na Torre de Marfim. Algumas vezes por semana, o Pandit vai comisturar-se com os seus co-aldeanos, a arraia-miúda em Palém de Siridão. Não se sente à vontade longe deles.
O amor aos humildes abarca toda a humanidade, e o apelo dos seus poemas é universal. Na sua cadência se sente o rítmico bater do coração que geme e sofre por uma dura côdea de pão. Eis o espírito de fraternidade que extende o seu círculo dum canto a outro do mundo:
“Tum ani Hanv,
Dogui bhav bhav,
Bhashek lagun
Dusman zaliat”
Noutro poema, “Hem Mhujem Ghor”, o espírito universitária de poeta canta “hoje e cá, amanhã lá, depois não sei onde”.
Os poemas de Garcia Lorca constituem uma tela em que se projecta fielmente o panorama da Espanha. Onde está a Espanha, lá está o imortal Lorca. Enquanto viver a Goan (Koncão) lá estará o Pandit sempre vivo na memória Pandit também pinta com palavras o cenário soberbo de riachos, mangueiras e coqueiros. Porém, não cantou como Lorca que a Morte é sombra da Vida, Lorca que morreu tragicamente na Guerra Civil da Espanha em 1936 com apenas 38 primaveras. Pandit conta hoje 50 anos.
A fé inabalável nos destinos da humanidade leva-o a arrancar os seguintes versos chamejantes cheios de visão profética:
“Aiz nam faleam
Tumkam amchi yad zatoli
...
Ami tumche bhavuch
Tumche prem korpi.
...
Ani tea dissa
Soglo sonsvar – hem ek rashtr
Sogle rong, kelle gore,
Hanchi ekutch zat – mnnis zat
Ekuch dhorm – mnnis dhorm
Oxem tumkam distolem –
Tea dissachi hanv vatt polle tam”
Outro poema em que anuncia que tudo se faz por Deus, rescende à grinalda de Tagore a Deus enquanto noutro passo o poeta não deixa de se insurgir contra o formalismos, como no-lo atesta “Fatrachi Puza” (Adoração à Pedra). Acho que devia lançar ao limbo de obscuridade poucas poesias de pouco quilate como “Mudoi” (O Capital de Amor) e “Nova Torecham Kalliz” (Nova Espécie de Coração). Porém, o seu verso livre é admirável, lembrando-nos sempre do insigne poeta da democracia Walt Whitman. Que mais poesias de povo venham à luz da pena dum dos poetas mais representativos de Goa de todos os tempos, R. V. Pandit.
Wednesday 7 September 2011
Alfredo Bragança - Hino Nacional da Índia: Jana Gana Mana (1962)
Tu és quem comanda o espírito do povo,
Tu, ó Dispensador do destino da Índia.
Teu nome desperta o coração do Punjab, do Sind,
Guzerate e Marata, de Drávida, Orissa e Bengala;
Re-ecoa nos montes dos Vindias e Himalaias,
Funde-se nas ondas musicais do Jamuna e do Ganges,
Desaguando nas ondas valsantes do Oceano Índico.
Eles imploram-te bênçãos e cantam-te louvores:
A ti, ó Dispensador do destino da Índia,
Vitória, Vitória, Vitória!
Tua voz, noite e dia, é proclamada de região em região,
Convocando-nos, hindus, budistas, siques, jainas,
Parses, muçulmanos e cristãos, em volta do teu trono.
Ao teu santuário surgem oferendas do Oriente e Ocidente,
Para serem tecidas numa grinalda de amor.
Tu fundes os corações dos povos na harmonia duma só vida;
A Ti, ó Dispensador do destino da Índia,
Vitória, Vitória, Vitória!
Ó eterno Condutor que guias o carro da história humana,
Soçobrada de grandeza e decadência das nações,
Em que o homem é o eterno peregrino adante.
Em meio de aflições e terrores,
Soa tua trombeta, ó nosso Salvador em vicissitudes e tristezas;
A Ti, ó Dispensador do destino da Índia
Vitória, Vitória, Vitória!
Quando na longa, terrível noite do denso negrume
A Pátria continuava ainda no torpor,
Teus braços maternais a sustentaram,
Seu olhar vigilante se inclinou para o seu rosto,
Até que ela se rompesse dos negros sonhos maléficos:
A Ti, ó Dispensador do destino da Índia,
Vitória, Vitória, Vitória!
Desponta a madrugada, o sol beija a fronte dos montes do Oriente.
Trinam os pássaros, a brisa matinal traz frescura orvalhada de vida nova.
Beijada dos raios de oiro do teu amor,
Desperta a Índia e dobra a cabeça a teus pés:
A Ti, ó Rei dos reis, a Ti, ó Dispensador do destino da Índia
Vitória, Vitória, Vitória!
Tu, ó Dispensador do destino da Índia.
Teu nome desperta o coração do Punjab, do Sind,
Guzerate e Marata, de Drávida, Orissa e Bengala;
Re-ecoa nos montes dos Vindias e Himalaias,
Funde-se nas ondas musicais do Jamuna e do Ganges,
Desaguando nas ondas valsantes do Oceano Índico.
Eles imploram-te bênçãos e cantam-te louvores:
A ti, ó Dispensador do destino da Índia,
Vitória, Vitória, Vitória!
Tua voz, noite e dia, é proclamada de região em região,
Convocando-nos, hindus, budistas, siques, jainas,
Parses, muçulmanos e cristãos, em volta do teu trono.
Ao teu santuário surgem oferendas do Oriente e Ocidente,
Para serem tecidas numa grinalda de amor.
Tu fundes os corações dos povos na harmonia duma só vida;
A Ti, ó Dispensador do destino da Índia,
Vitória, Vitória, Vitória!
Ó eterno Condutor que guias o carro da história humana,
Soçobrada de grandeza e decadência das nações,
Em que o homem é o eterno peregrino adante.
Em meio de aflições e terrores,
Soa tua trombeta, ó nosso Salvador em vicissitudes e tristezas;
A Ti, ó Dispensador do destino da Índia
Vitória, Vitória, Vitória!
Quando na longa, terrível noite do denso negrume
A Pátria continuava ainda no torpor,
Teus braços maternais a sustentaram,
Seu olhar vigilante se inclinou para o seu rosto,
Até que ela se rompesse dos negros sonhos maléficos:
A Ti, ó Dispensador do destino da Índia,
Vitória, Vitória, Vitória!
Desponta a madrugada, o sol beija a fronte dos montes do Oriente.
Trinam os pássaros, a brisa matinal traz frescura orvalhada de vida nova.
Beijada dos raios de oiro do teu amor,
Desperta a Índia e dobra a cabeça a teus pés:
A Ti, ó Rei dos reis, a Ti, ó Dispensador do destino da Índia
Vitória, Vitória, Vitória!
Clara de Menezes - Inverno (1979)
Raios riscam o céu violentamente
Começa o Inverno em Goa dourada,
A atmosfera de nuvens saturada
Despacha à terra chuva persistente.
Viceja muita flor magnificente
Nos campos e jardins de nomeada,
Anda na várzea gente atarefada
Em trazer arroteadas febrilmente
Em breve, o arroz semeado vai crescendo
E os peitos, de alegria estremecendo
Confiados em colheita abundante.
E finalmente a foice impiedosa
Corta a seara, cena grandiosa,
Que torna o nosso Inverno deslumbrante.
Começa o Inverno em Goa dourada,
A atmosfera de nuvens saturada
Despacha à terra chuva persistente.
Viceja muita flor magnificente
Nos campos e jardins de nomeada,
Anda na várzea gente atarefada
Em trazer arroteadas febrilmente
Em breve, o arroz semeado vai crescendo
E os peitos, de alegria estremecendo
Confiados em colheita abundante.
E finalmente a foice impiedosa
Corta a seara, cena grandiosa,
Que torna o nosso Inverno deslumbrante.
Mário Cabral e Sá - O baile (1962)
Chegou a hora. A hora das mensagens que se lêem nos olhos. Das palavras que se não falam. Um a um todos os convivas se levantam. Há despedidas. Os convites de convenção, “para o lanche, amanhã à tarde”. Há olhares que se desviam, outros que se cruzam e se fixam. Os papás mordem charutos e dão palmadinhas nas costas das meninas dos compadres. As meninas examinam os semblantes dos filhos casadoiros de outrem, inscrevem apontamentos, na sua mente, sobre o que viram e não viram e magicam artes de conquistar o José Olívio – novo, filho único, uma nada estrábico mas rico. Que mais se quer?... Se a Annette tem namoro? Que o desfaça. Amor e cabana, sim senhores, muito bonito, mas é para outra gente... Há os últimos apertos das mãos e a revolta dos insubmissos.
Levanta-te, “Balalaica”. Chegou a hora. Hoje tens trabalho. Há cadeiras por arrumar. O chão por limpar. Urinóis por desentupir. E talvez ainda haja para ti restos de comida e cerveja choca nos fundos dos copos, esquecidos por baixo das cadeiras.
Levanta-te, também tu. Bem sei que não pudeste dormir. Mas sai da cama. Agora ou nunca! O papel está na caixa, ao canto esquerdo da secretaria. A caneta na algibeira do paletó de teu pai. Deixa o selo, o sobrescrito e a direcção por minha conta.
“Não sei por onde começar. Mas já o deves adivinhar. Afinal...”
“Ontem, como sabes, houve baile. A mamã não atendeu a nenhuma das mil desculpas que havíamos inventado para que nessa noite, até que enfim, mais uma vez, umas horas juntos. Sós, em casa, enquanto os meus pais estivessem no baile. Absolutamente sós. Eu e tu... A mamã insistiu e o papá quase me bateu. Que era filha de gente de bem. Que esse baile podia decidir o meu futuro! Maldito baile e maldito o futuro que ele decidiu!
“Desde as cinco da manhã de hoje, estou noiva. Essa terrível desgraça que antecipávamos, enfim deu-se! À porta da saída, os meus pais e os pais do Albano discutiram os últimos pormenores. Depois, no carro, disseram-me que estava noiva. Que o “rapaz” era uma jóia de homem – apesar do cretinismo que abunda nas suas faces gordas de querubim vesgo em férias terrenas. Que o “rapaz” é rico. Que o “rapaz” é filho único. Que o “rapaz”... que o “rapaz”, mil vezes maldito, é o meu futuro marido.
“Não quero esforçar-me em imaginar as tuas reacções à esta carta. Se muito já sofro de pensar em ti daria em doida. Antes desse! Mas talvez ainda nos vejamos. Não sei. Mas quanto não daria eu – oh, se pudesse! – para que isso fosse possível. Mesmo que haja infernos nesta vida e noutra.
“Sei que poderia e deveria ser mais forte. Que tudo devia arriscar pelo amor que nos une e agora nos separa. Desculpa-me Victor. Fui fraca. Como naquela noite em em que melhor nos conhecêssemos... Tu és bom. Tu és um homem diferente dos outros homens. Por isso continuarei a ser tua.
Hoje como sempre.
Tua
Annette”
Pois bem, Victor, aqui tens a carta. Sou testemunha da tua mágoa. Do desmoronar dos edifícios de felicidade que havias arquitectado. Por isso, estarei presente na hora da tua reabilitação. Na vida vencem os insubmissos.
E tu, “Balalaica” continua a varrer. Limpo o pó e os vómitos no bacio. Procura a dona do fio de ouro que apanhaste preso à borda do cortinado. E isso que tens na mão e esticas e largas, como se fisga fosse, é uma liga com que as Senhoras prendem as meias à coxa. Deita-a no lixo ou brincas com ela se quiseres. Diverte-te à custa da Dama Nobre que se descuidou...
Levanta-te, “Balalaica”. Chegou a hora. Hoje tens trabalho. Há cadeiras por arrumar. O chão por limpar. Urinóis por desentupir. E talvez ainda haja para ti restos de comida e cerveja choca nos fundos dos copos, esquecidos por baixo das cadeiras.
Levanta-te, também tu. Bem sei que não pudeste dormir. Mas sai da cama. Agora ou nunca! O papel está na caixa, ao canto esquerdo da secretaria. A caneta na algibeira do paletó de teu pai. Deixa o selo, o sobrescrito e a direcção por minha conta.
“Não sei por onde começar. Mas já o deves adivinhar. Afinal...”
“Ontem, como sabes, houve baile. A mamã não atendeu a nenhuma das mil desculpas que havíamos inventado para que nessa noite, até que enfim, mais uma vez, umas horas juntos. Sós, em casa, enquanto os meus pais estivessem no baile. Absolutamente sós. Eu e tu... A mamã insistiu e o papá quase me bateu. Que era filha de gente de bem. Que esse baile podia decidir o meu futuro! Maldito baile e maldito o futuro que ele decidiu!
“Desde as cinco da manhã de hoje, estou noiva. Essa terrível desgraça que antecipávamos, enfim deu-se! À porta da saída, os meus pais e os pais do Albano discutiram os últimos pormenores. Depois, no carro, disseram-me que estava noiva. Que o “rapaz” era uma jóia de homem – apesar do cretinismo que abunda nas suas faces gordas de querubim vesgo em férias terrenas. Que o “rapaz” é rico. Que o “rapaz” é filho único. Que o “rapaz”... que o “rapaz”, mil vezes maldito, é o meu futuro marido.
“Não quero esforçar-me em imaginar as tuas reacções à esta carta. Se muito já sofro de pensar em ti daria em doida. Antes desse! Mas talvez ainda nos vejamos. Não sei. Mas quanto não daria eu – oh, se pudesse! – para que isso fosse possível. Mesmo que haja infernos nesta vida e noutra.
“Sei que poderia e deveria ser mais forte. Que tudo devia arriscar pelo amor que nos une e agora nos separa. Desculpa-me Victor. Fui fraca. Como naquela noite em em que melhor nos conhecêssemos... Tu és bom. Tu és um homem diferente dos outros homens. Por isso continuarei a ser tua.
Hoje como sempre.
Tua
Annette”
Pois bem, Victor, aqui tens a carta. Sou testemunha da tua mágoa. Do desmoronar dos edifícios de felicidade que havias arquitectado. Por isso, estarei presente na hora da tua reabilitação. Na vida vencem os insubmissos.
E tu, “Balalaica” continua a varrer. Limpo o pó e os vómitos no bacio. Procura a dona do fio de ouro que apanhaste preso à borda do cortinado. E isso que tens na mão e esticas e largas, como se fisga fosse, é uma liga com que as Senhoras prendem as meias à coxa. Deita-a no lixo ou brincas com ela se quiseres. Diverte-te à custa da Dama Nobre que se descuidou...
Vicente Correia-Afonso - Novas Lições (1979)
Cessa tudo o que
A musa antiga canta
Que valor mais alto
Se alevanta...”
Canta ó poeta
Em voz sonora
A toda a hora
Toca a trombeta
Canta, ó bardo,
A melodia,
De noite e dia
Manhã e tarde...
Música sem fim...
Ó meu Camões!
Novas lições
Canta, pois sim?
Dizes que não!
Rezas! Então....
Chora, pois vi
Que és tacanho;
Vozes de antanho
Cantam por ti.
A musa antiga canta
Que valor mais alto
Se alevanta...”
Canta ó poeta
Em voz sonora
A toda a hora
Toca a trombeta
Canta, ó bardo,
A melodia,
De noite e dia
Manhã e tarde...
Música sem fim...
Ó meu Camões!
Novas lições
Canta, pois sim?
Dizes que não!
Rezas! Então....
Chora, pois vi
Que és tacanho;
Vozes de antanho
Cantam por ti.
Tuesday 6 September 2011
Visnum Porobo Sincró - Renumeração (1972)
Todo o trabalho feito condignamente
Precise de ser devidamente pago
Pois é lícito receber o salário.
É praxe seguida em todo o mundo;
E isto tem a sua razão plausível.
Para viver é preciso alimentar-se;
Não haja dúvida nisso; o pão é pois
O principal factor que contribui
Para a manutenção do ser humano.
Não há duvida nisso, pois é axioma
Inúmeras vezes comprovado e apurado.
Sem pão que é essencial fonte vital
Não se deve diminuir o seu valor;
É essa a razão de exigir renumeração!!!
Precise de ser devidamente pago
Pois é lícito receber o salário.
É praxe seguida em todo o mundo;
E isto tem a sua razão plausível.
Para viver é preciso alimentar-se;
Não haja dúvida nisso; o pão é pois
O principal factor que contribui
Para a manutenção do ser humano.
Não há duvida nisso, pois é axioma
Inúmeras vezes comprovado e apurado.
Sem pão que é essencial fonte vital
Não se deve diminuir o seu valor;
É essa a razão de exigir renumeração!!!
Judit Beatriz de Sousa - Compensação (1962)
O meu olhar tristíssimo poisou
No teu perfil distante,
Longamente,
Como asa suave
Ferida em pleno azul.
O meu olhar deseleou
A tua imagem vaga, sem contornos...
- O que amei foi tanto! E há tanto tempo
Eu tenho as mãos tão cheias de abandonos....
No teu perfil distante,
Longamente,
Como asa suave
Ferida em pleno azul.
O meu olhar deseleou
A tua imagem vaga, sem contornos...
- O que amei foi tanto! E há tanto tempo
Eu tenho as mãos tão cheias de abandonos....
Monday 5 September 2011
Manohar Sardessai - Terra (1964)
Goeses! Eis que é chegada a hora
De a nossa salvaguardar.
Minam-na malfeitores? Embora!
Nós a havemos de reconquistar!
Vós sois os robles cheios de vigor,
Vós sois as colunas da união,
Se se esfriar agora o vosso ardor
Do novo homem qual será a situação?
Vós sois os príncipes da acção,
As primícias do bom desejo.
Que com a vossa iluminada mão
Talheis um futuro benfazejo!
Sopra um vento de loucura
Que ameaça todo o bem arrasar.
Do peito fazendo uma armadura,
A tenra planta há que resguardar.
Ó Terra-rubra, mãe sem par!
Quantos golpes te açoitaram no passado.
Nos teus lábios quando veremos bailar
Um sorriso puro e imaculado?
Da luta nunca mesmo desistiremos!
Voltar cobardemente para trás? Jamais!
No nosso séquito arrastaremos
Legiões de homens, mais e mais!
Tradução livre de Ganv Asa Zoddchelo
De a nossa salvaguardar.
Minam-na malfeitores? Embora!
Nós a havemos de reconquistar!
Vós sois os robles cheios de vigor,
Vós sois as colunas da união,
Se se esfriar agora o vosso ardor
Do novo homem qual será a situação?
Vós sois os príncipes da acção,
As primícias do bom desejo.
Que com a vossa iluminada mão
Talheis um futuro benfazejo!
Sopra um vento de loucura
Que ameaça todo o bem arrasar.
Do peito fazendo uma armadura,
A tenra planta há que resguardar.
Ó Terra-rubra, mãe sem par!
Quantos golpes te açoitaram no passado.
Nos teus lábios quando veremos bailar
Um sorriso puro e imaculado?
Da luta nunca mesmo desistiremos!
Voltar cobardemente para trás? Jamais!
No nosso séquito arrastaremos
Legiões de homens, mais e mais!
Tradução livre de Ganv Asa Zoddchelo
Cyrano Valles - Redenção (1977)
Profetas
Pregando
Sonhos de glória
Prometendo
Nossa eterna redenção
Vem e vão:
Nunca nos dão
Vinho e pão
Fazer o bem
Sem olhar a quem
Receber o mal
Sem se queixar a ninguém
Sofrer em silêncio
(O silêncio é divino!)
Eis a nossa sorte banal!
Involuntários fantoches
De suma e divina comedia
Antes de Gomorra e Sodoma
Depois de Nagasáqui e Hiroshima,
Até quando...?
Mais não, meu valente!
Até marchar p’ra frente
É só mais olhar p’ra trás!
Sem jau sem razão convincente -
Para que mais estátuas de sal!
Safa! Seremos sempre escravos,
Mercenários lazarentos dos tiranetes
Ou dos seus vendilhões de rabanetes?
Não! Não e não meus bravos!
Cada dia que passa e jamais volta
É preciso fomentar
A revolta íntima e suprema
Contra homens falsos
E deuses espúrios –
É preciso transmudar
As nossas lágrimas em vinho
Em flores, fruta e pão
Os espinhos e as pedras
Do nosso quotidiano Calvário –
Eis a nossa REDENÇÃO!
Pregando
Sonhos de glória
Prometendo
Nossa eterna redenção
Vem e vão:
Nunca nos dão
Vinho e pão
Fazer o bem
Sem olhar a quem
Receber o mal
Sem se queixar a ninguém
Sofrer em silêncio
(O silêncio é divino!)
Eis a nossa sorte banal!
Involuntários fantoches
De suma e divina comedia
Antes de Gomorra e Sodoma
Depois de Nagasáqui e Hiroshima,
Até quando...?
Mais não, meu valente!
Até marchar p’ra frente
É só mais olhar p’ra trás!
Sem jau sem razão convincente -
Para que mais estátuas de sal!
Safa! Seremos sempre escravos,
Mercenários lazarentos dos tiranetes
Ou dos seus vendilhões de rabanetes?
Não! Não e não meus bravos!
Cada dia que passa e jamais volta
É preciso fomentar
A revolta íntima e suprema
Contra homens falsos
E deuses espúrios –
É preciso transmudar
As nossas lágrimas em vinho
Em flores, fruta e pão
Os espinhos e as pedras
Do nosso quotidiano Calvário –
Eis a nossa REDENÇÃO!
J. Soares de Almeida - O Balcão (1955)
Relíquia duma arquitectura ancestral, o balcão ainda se vê escancarado à entrada de muitas casas tanto modestas como solarengas da velha terra de Goa. Ainda em certas construções novas, onde a modernidade se mescla com a tradição, lá está o balcão amigo na planta, anexo à fechada da casa, com as suas duas colonatas de estilo anónimo, um banco de pedra com encosto, de cada lado, e entre eles um espaço bem largo onde às vezes os miúdos jogam à bola, e tendo ao fundo a porta principal que dá para o interior da casa propriamente dita. É uma feição arquitectónica que há muito se gravara na alma do povo – um desafogo tanto material como espiritual. Serve de ante-câmara onde os moços de recado esperam; de abrigo aos mendigos que na canícula do sol pedem ismola e, cansados, pedem licença para se sentarem no balcão. É um suplemente da moradia, muito útil, principalmente quando a zaragata dos garotos deita a casa para baixo: “Vão lá brincar no balcão!” – berra-lhes a mãe, brandindo a chinela. Às vezes torna-se o doce refúgio dos pescadores, com seu cigarro e jornal, quando ouve a trovoada da mulher ribombar pelos quartos por alguma infracção de matrimónio que ele cometeu e não sabe bem qual foi.
No estio ou na monção, em todos os tempos que Deus nos deu, o balcão lá está logo à porta, pronto a acolher à sombra do seu velho tecto algum membro da família que busca meditação em silêncio sob golfadas do fresco, ou então a família inteira para um ameno cavaqueio no tédio da tarde. Ir para o balcão é ao mesmo tempo não estar encafuado entre as quatro paredes da casa nem perambular pela estrada fora a gramar poeira. Aquilo é, para melhor dizer, um meio-termo nu, valha a semelhança, uma ponte de suspensão entre a casa e a rua. Botá-se lá com um olho para dentro e ver se os gaios partem a louça e o outro para fora a ver quem passa.
Dentro da casa tudo se espalha pelos quartos, pela sala de jantar, pela cozinha, mas no balcão, e pelas tardes, quer sejam de calor ou de chuva, os elementos dispersos da família se convergem como num núcleo cerrado, e até a criada lá aparece pondo a última nota de solidariedade familiar. Mas o balcão não é apenas o centro de reunião da família em peso. É qualquer coisa de mais caloroso e complexo. É o parlamento íntimo onde se trocam os pensamentos do dia, se desabafam as impressões mais recônditas e se ventilam os mais variados problemas desde o arroz que se cozinhou ao meio-dia, à icterícia que teve a D. Bantácia.
- “Aquilo é desleixo”, disse a D. Ana que, sentada no balcão, remendava os calções dos miúdos.
- “Mas é pena, mãe, uma mulher com tantos filhos e sem meios, estar assim acamada”, apiedou-se a filha.
- “Parece que ela bebia, a desavergonhada”, anotou a avó, puxando ou óculos para cima do nariz.
- “Olha, o melhor remédio para a icterícia é uma queimadela”, instruiu a avó. Todos concordaram e calaram-se; quando o avó abre a boca, é o mestre que fala.
Botava quase toda a família sentada no balcão, aonde iam espraiar-se regularmente depois do chá da tarde. D. Ana com seus pais já velhos, a sua filha,
(segue na segunda página)
os garotos e a criada. O marido, o atarefado Esperdião, ficara lá dentro remexendo nos papeis e livros: o filho mais velho fora flanar, e um outro fora ao cinema. Eram exepções.
- “Falando da icterícia” – ia a continuar a mãe da D. Ana, a velhota da D. Maria, quando a criada, prestada no degrau de balcão, com os ouvidos atentos à conversa e os olhos abertos para a rua, soltou o brado de alerta: “Aí vem a bhai Etelvina”. Todos os passos se alongaram para a direcção indicada. Repolhuda e forte, D. Etelvina avançou para o balcão, arfando como um fole.
- “Muitas boas tardes. Ai que calor lá fora. Vocês todos aqui no balcão a receberem fresco, hein?”
Boas tardes, soaram as vozes. Insuportável calor, concordaram.
- “Afinal, pensaste em nos vir ver” – disse sorrindo D. Ana.
- “Ai, minha Ana, se tu soubesses os afazeres que tive por esses dias! A minha cunhada Eustacia com a maldita icterícia, o marido transferido e os filhos a Deus dará; tive de acudir, coitada, está toda amarela”.
-“É pena realmente, disse a velha D. Maria. Conheci a Eustacia desde pequena; boa rapariga, esplêndida dona de casa.”
- “Não levaram o médico?”
- O dr. Pinto, como sempre, disse que era coisa ligeira e receitou umas poções”
- “Antes levassem o dr. Couto” aventurou-se D. Ana.
-“Eu não sei porquê, tenho mais fé no dr. Aires”, disse a filha.
-“O dr. Aires? Credo, nem me fales nele!” opôs-se a avó, a D. Maria. “Ele já está matando a mulher do regedor. A meu ver não há por aqui melhor médico do que o dr. Sousa”
-“Para essas maleitas, minha senhora, apostrofou a avó, ajeitando-se e tossindo, levem sempre o dr. Veiga; deixa a curada em dois dias”
- “O dr. Sousa curou a icterícia da D. Rita” insistiu a avó.
- “Ah, é verdade!” voltou a falar a D. Etelvina. Então não sabem que a D. Rita se separou do marido? E uma desgraça que anda a bradar por ali fora.
Ali espantaram-se as bocas.
- Mas diziam que ele era muito bom, amigo de família...
- Saía à mãe, disse a D. Maria do alto da sua experiência, ajeitando os óculos. Conheci a mãe por muitos anos; era uma grande genuda.
Alguns pares de olhos fitaram-se na D. Etelvina que remexeu o seu corpanzil no fundo da cadeira. D. Ana lembrou-se que o seu marido estava em casa e suspirou de alívio. É assunto espinhoso, pensaram, e D. Ana deu volta à conversa.
- E onde pára a sobrinha da Rita, a fafia da Amélia? Diziam que se ia casar com um oficial de diligências qualquer e de quem não me lembro o nome.
- Ah, já sei, é o tal Pereira, ajuntou a D. Etelvina. Mas ele ganha pouco e alem disso é um estroinas, amigo da pinha e um jogador inveterado. Vai ser uma infelicidade. Não sei como os pais consentiram.
- Bem feito! São orgulhosas, justificou a filha da D Ana.
Uma breve pausa pairou sobre o balcão. A brisa parecia adormecer as mentes; a tarde ia fora tinha já perdido as cintilações do sol e uma claridade parda descia sobre a terra, aumentado o coaxar das gralhas que recolhiam para a noite. D. Ana, sem perder o movimento da agulha, deu ordem à criada para meter as galinhas na capoeira e ver-se os gatos tinham mexido com as panelas. D. Maria mandou trazer os comprimidos para os seus achaques.
- “Boas tardes D. Ana, boas tardes a todos”, soou a voz da Márcia, da banda da rua.
-“Entre Márcia, entre. Há quanto tempo que a não vemos”, disse D. Ana, jubilante por ter mais uma visita e mais um membro no seu concílio.
-“Vestido novo? Lindo modelo” comentou a filha de D. Ana quando a Márcia entrou com os seus 18 anos floridos e o seu vestido novo que fazia realçar as linhas graciosas do seu jovem corpo.
-“Sim, é novo... D. Etelvina por aqui? Estão a passar uma bela tarde aqui no balcão.”
-“Sente-se, Márcia. Então, como foi o baptizado do filho da Carlota?” perguntou-lhe D. Ana, abrindo um novo rumo para a conversa.
-“Foi uma sensaboria; esperava que houvesse dança, mas nada, apenas tocaram um velho gramofone rouquenho e houve uns poucos serviços... a empada, então não se podia comer, estava dura. Pouca gente.”
-“Mas não sei que fez a Carlota com todo o dinheiro que tem!” opina D. Etelvina.
-“É agarrada, não deixa escapar um ceitil” reforçou a D. Ana.
-“Não festejar o baptizado dum filho como se deve! Oh, conde estamos nós!” zangou-se a D. Maria, lembrando-se dos tempos que já lá foram “Aqui, quando do baptizado da minha Ana, foi uma festa, mas que festa”.
-“Mais de 100 hospedes”, lembrou-se a avô com saudades, acendendo um charuto.
-“Diz a criada da Carlota que comem miseravelmente, uma míngua – e onde rola tanto dinheiro!”
-“Deus dá nozes a quem não tem dentes”, suspirou D. Ana.
-“Com herança, eu vou seguindo” levantou-se a Márcia. “A mãe está incomodada e eu não posso demorar”.
-“Que vestido tão desengraçado” disse a filha da D. Ana, seguindo a Márcia com os olhos quando a outra já se encontrava fora do alcance da voz. “A saia, então, está muito curta.”
-“É uma namoriqueira que não há outra igual”, acrescentou D. Etelvina.
-“É boa linguareira” interpelou D. Ana. “A mãe, principalmente, tem a mania de dizer mal de todas filhas e não vê a trave que tem no olho”.
Fez-se um intervalo; cessou por instantes o fio dos pensamentos e descansaram as línguas. A filha de D. Ana folheava o catálogo de modas: a velha D. Maria, com os óculos pousados na ponta do nariz, continuou o seu crochet, a D. Ana mirava as calções das miúdos a ver se restava algum entre rasgão, e o avô pigarreava de quando em quando, lento o seu jornal. O balcão emudecera-se repentinamente, mas foi apenas um instante, como a aberta traiçoeira numa noite de monção.
-“Ai vai a Rosália com o marido” rosnou a voz da D. Etelvina pelas traves do balcão.
D. Maria ajeitou os óculos e olhou para a rua, D. Ana voltou a cabeça para ver o casal, a filha esguichou o pescoço, o avô abaixou o jornal, a observar a novidade, e até a criada, a Joaquina ergueu-se sobre as calcanhares a ver se os conhecia.
-“Creio que vieram de licença para o Natal” observou D. Ana.
-“São muito orgulhosos. Fizeram algum dinheiro e andam com cara de quem todos lhe devem e ninguém lhes paga.
-“A mãe da Rosália anda por aqui quase a mendigar”
-“Desde que ela se casou com aquele engenheiro e deixou os trapos em que vivia nem se importa da pobre da mãe. Olha a atrevida, a deslavada!”
- “Semelhantes filhas que nunca tivessem nascido”, resmungou a D. Maria. Depois voltando-se para o marido: “Oh, António, era melhor que recolhesses, pois já sopra um vento frio”
-“E mais a mais que o papá está constipado” reforçou a D. Ana.
-“Eu também vou seguindo, que já está escuro”, disse a D. Etelvina levando-se e despedindo-se “Tivemos uma tarde muito agradável. Quando vou a casa da Amália, santo Deus, não a posso aturar; ela fala sempre da vida alheia; tem uma língua de palmo e meio. É uma critica horrível!”
-“Há pessoas assim”, disse a D. Ana. “Apareça mais vezes. Etelvina”. Alguns pares de olhos seguiram-na pela rua abaixo. Houve um rastro de paz, um fugidio vislumbre de silêncio.
-“Quando aquela mulher dá na língua não há meio de parar” observou a D. Maria, vendo a sombra da Etelvina apagar-se ao longe.
-“Gosta cortar na pele de todos” confirmou a D. Ana, debruçando as calções que passajara. “Não tem nada a fazer em casa a anda a palrar todo o santo dia.”
-“A D. Etelvina sempre invejou o bem alheio”, disse a filha, bocejando “Lembra-se, mãe, como ela críticos do vestido novo que usei no domingo passado, e disse-me que não enterrasse tanto em modas?”
-“Jaquina”, gritou a D. Ana “acenda as luzes e leve as cadeiras para dentro”.
O breu da noite espalhara-se pelo balcão, confundindo as coisas. O avó recolheu e mais os seus pigarros, e um a um meterem-se todos pela casa dentro. No fundo bruxoleavam as candeias, dispersava-se a família pelos quartos e pelos seus últimos afazeres do dia. O balcão ficou vazio quedou-se em profundo silêncio mergulhado nas trevas. No seu banco de pedra ficou apenas rosnando o gato da família enovelado num canto.
Foi uma tarde agradável pois não foi? Sabia-o muito bem o balcão mudo confidente daqueles desabafos íntimos daquelas confidências cochichadas em família e que ele recolhia na sua velha mudez de pedra e cal. Ali no seio daquele balcão vetusto tratou-se da icterícia da D. Eustacia, debateu-se a separação da D. Rita e o marido, a Márcia tornou-se numa namoriqueira delambida e a Rosália com o marido foram votados ao inferno pela pecado de orgulho. O balcão assistia a todos esses julgamentos passados em família na macieza das tardes. Ah e quantos julgamentos mais não soaram pelas suas velhas traves! Jazem ali encerradas confidências familiares de gerações, ruínas das pessoas que foram vitimas imbeles das conversas balcoeiras por todo aquele ror de anos, desde que um antepassado da família de grilhão de oiro e bigodes retorcidos erguem aquela casa e bradem ao mestre pedreiro: ‘´Não se esqueça de me fazer um balcão bem largo e espaçoso com bancos de pedra cimentada, onde toda a família se possa sentar”.
Fechou-se o portão da casa rangendo sobre os gansos. O balcão ficou isolado da residência aberta a rua e às carícias da noite. Uma mendiga sem eira vergada sobre uma vara tosca, farta das noites ao relento, aproximou-se de balcão deixou a vara e o alforge num canto e descansou com alívio sobre o seu banco de pedra.
No estio ou na monção, em todos os tempos que Deus nos deu, o balcão lá está logo à porta, pronto a acolher à sombra do seu velho tecto algum membro da família que busca meditação em silêncio sob golfadas do fresco, ou então a família inteira para um ameno cavaqueio no tédio da tarde. Ir para o balcão é ao mesmo tempo não estar encafuado entre as quatro paredes da casa nem perambular pela estrada fora a gramar poeira. Aquilo é, para melhor dizer, um meio-termo nu, valha a semelhança, uma ponte de suspensão entre a casa e a rua. Botá-se lá com um olho para dentro e ver se os gaios partem a louça e o outro para fora a ver quem passa.
Dentro da casa tudo se espalha pelos quartos, pela sala de jantar, pela cozinha, mas no balcão, e pelas tardes, quer sejam de calor ou de chuva, os elementos dispersos da família se convergem como num núcleo cerrado, e até a criada lá aparece pondo a última nota de solidariedade familiar. Mas o balcão não é apenas o centro de reunião da família em peso. É qualquer coisa de mais caloroso e complexo. É o parlamento íntimo onde se trocam os pensamentos do dia, se desabafam as impressões mais recônditas e se ventilam os mais variados problemas desde o arroz que se cozinhou ao meio-dia, à icterícia que teve a D. Bantácia.
- “Aquilo é desleixo”, disse a D. Ana que, sentada no balcão, remendava os calções dos miúdos.
- “Mas é pena, mãe, uma mulher com tantos filhos e sem meios, estar assim acamada”, apiedou-se a filha.
- “Parece que ela bebia, a desavergonhada”, anotou a avó, puxando ou óculos para cima do nariz.
- “Olha, o melhor remédio para a icterícia é uma queimadela”, instruiu a avó. Todos concordaram e calaram-se; quando o avó abre a boca, é o mestre que fala.
Botava quase toda a família sentada no balcão, aonde iam espraiar-se regularmente depois do chá da tarde. D. Ana com seus pais já velhos, a sua filha,
(segue na segunda página)
os garotos e a criada. O marido, o atarefado Esperdião, ficara lá dentro remexendo nos papeis e livros: o filho mais velho fora flanar, e um outro fora ao cinema. Eram exepções.
- “Falando da icterícia” – ia a continuar a mãe da D. Ana, a velhota da D. Maria, quando a criada, prestada no degrau de balcão, com os ouvidos atentos à conversa e os olhos abertos para a rua, soltou o brado de alerta: “Aí vem a bhai Etelvina”. Todos os passos se alongaram para a direcção indicada. Repolhuda e forte, D. Etelvina avançou para o balcão, arfando como um fole.
- “Muitas boas tardes. Ai que calor lá fora. Vocês todos aqui no balcão a receberem fresco, hein?”
Boas tardes, soaram as vozes. Insuportável calor, concordaram.
- “Afinal, pensaste em nos vir ver” – disse sorrindo D. Ana.
- “Ai, minha Ana, se tu soubesses os afazeres que tive por esses dias! A minha cunhada Eustacia com a maldita icterícia, o marido transferido e os filhos a Deus dará; tive de acudir, coitada, está toda amarela”.
-“É pena realmente, disse a velha D. Maria. Conheci a Eustacia desde pequena; boa rapariga, esplêndida dona de casa.”
- “Não levaram o médico?”
- O dr. Pinto, como sempre, disse que era coisa ligeira e receitou umas poções”
- “Antes levassem o dr. Couto” aventurou-se D. Ana.
-“Eu não sei porquê, tenho mais fé no dr. Aires”, disse a filha.
-“O dr. Aires? Credo, nem me fales nele!” opôs-se a avó, a D. Maria. “Ele já está matando a mulher do regedor. A meu ver não há por aqui melhor médico do que o dr. Sousa”
-“Para essas maleitas, minha senhora, apostrofou a avó, ajeitando-se e tossindo, levem sempre o dr. Veiga; deixa a curada em dois dias”
- “O dr. Sousa curou a icterícia da D. Rita” insistiu a avó.
- “Ah, é verdade!” voltou a falar a D. Etelvina. Então não sabem que a D. Rita se separou do marido? E uma desgraça que anda a bradar por ali fora.
Ali espantaram-se as bocas.
- Mas diziam que ele era muito bom, amigo de família...
- Saía à mãe, disse a D. Maria do alto da sua experiência, ajeitando os óculos. Conheci a mãe por muitos anos; era uma grande genuda.
Alguns pares de olhos fitaram-se na D. Etelvina que remexeu o seu corpanzil no fundo da cadeira. D. Ana lembrou-se que o seu marido estava em casa e suspirou de alívio. É assunto espinhoso, pensaram, e D. Ana deu volta à conversa.
- E onde pára a sobrinha da Rita, a fafia da Amélia? Diziam que se ia casar com um oficial de diligências qualquer e de quem não me lembro o nome.
- Ah, já sei, é o tal Pereira, ajuntou a D. Etelvina. Mas ele ganha pouco e alem disso é um estroinas, amigo da pinha e um jogador inveterado. Vai ser uma infelicidade. Não sei como os pais consentiram.
- Bem feito! São orgulhosas, justificou a filha da D Ana.
Uma breve pausa pairou sobre o balcão. A brisa parecia adormecer as mentes; a tarde ia fora tinha já perdido as cintilações do sol e uma claridade parda descia sobre a terra, aumentado o coaxar das gralhas que recolhiam para a noite. D. Ana, sem perder o movimento da agulha, deu ordem à criada para meter as galinhas na capoeira e ver-se os gatos tinham mexido com as panelas. D. Maria mandou trazer os comprimidos para os seus achaques.
- “Boas tardes D. Ana, boas tardes a todos”, soou a voz da Márcia, da banda da rua.
-“Entre Márcia, entre. Há quanto tempo que a não vemos”, disse D. Ana, jubilante por ter mais uma visita e mais um membro no seu concílio.
-“Vestido novo? Lindo modelo” comentou a filha de D. Ana quando a Márcia entrou com os seus 18 anos floridos e o seu vestido novo que fazia realçar as linhas graciosas do seu jovem corpo.
-“Sim, é novo... D. Etelvina por aqui? Estão a passar uma bela tarde aqui no balcão.”
-“Sente-se, Márcia. Então, como foi o baptizado do filho da Carlota?” perguntou-lhe D. Ana, abrindo um novo rumo para a conversa.
-“Foi uma sensaboria; esperava que houvesse dança, mas nada, apenas tocaram um velho gramofone rouquenho e houve uns poucos serviços... a empada, então não se podia comer, estava dura. Pouca gente.”
-“Mas não sei que fez a Carlota com todo o dinheiro que tem!” opina D. Etelvina.
-“É agarrada, não deixa escapar um ceitil” reforçou a D. Ana.
-“Não festejar o baptizado dum filho como se deve! Oh, conde estamos nós!” zangou-se a D. Maria, lembrando-se dos tempos que já lá foram “Aqui, quando do baptizado da minha Ana, foi uma festa, mas que festa”.
-“Mais de 100 hospedes”, lembrou-se a avô com saudades, acendendo um charuto.
-“Diz a criada da Carlota que comem miseravelmente, uma míngua – e onde rola tanto dinheiro!”
-“Deus dá nozes a quem não tem dentes”, suspirou D. Ana.
-“Com herança, eu vou seguindo” levantou-se a Márcia. “A mãe está incomodada e eu não posso demorar”.
-“Que vestido tão desengraçado” disse a filha da D. Ana, seguindo a Márcia com os olhos quando a outra já se encontrava fora do alcance da voz. “A saia, então, está muito curta.”
-“É uma namoriqueira que não há outra igual”, acrescentou D. Etelvina.
-“É boa linguareira” interpelou D. Ana. “A mãe, principalmente, tem a mania de dizer mal de todas filhas e não vê a trave que tem no olho”.
Fez-se um intervalo; cessou por instantes o fio dos pensamentos e descansaram as línguas. A filha de D. Ana folheava o catálogo de modas: a velha D. Maria, com os óculos pousados na ponta do nariz, continuou o seu crochet, a D. Ana mirava as calções das miúdos a ver se restava algum entre rasgão, e o avô pigarreava de quando em quando, lento o seu jornal. O balcão emudecera-se repentinamente, mas foi apenas um instante, como a aberta traiçoeira numa noite de monção.
-“Ai vai a Rosália com o marido” rosnou a voz da D. Etelvina pelas traves do balcão.
D. Maria ajeitou os óculos e olhou para a rua, D. Ana voltou a cabeça para ver o casal, a filha esguichou o pescoço, o avô abaixou o jornal, a observar a novidade, e até a criada, a Joaquina ergueu-se sobre as calcanhares a ver se os conhecia.
-“Creio que vieram de licença para o Natal” observou D. Ana.
-“São muito orgulhosos. Fizeram algum dinheiro e andam com cara de quem todos lhe devem e ninguém lhes paga.
-“A mãe da Rosália anda por aqui quase a mendigar”
-“Desde que ela se casou com aquele engenheiro e deixou os trapos em que vivia nem se importa da pobre da mãe. Olha a atrevida, a deslavada!”
- “Semelhantes filhas que nunca tivessem nascido”, resmungou a D. Maria. Depois voltando-se para o marido: “Oh, António, era melhor que recolhesses, pois já sopra um vento frio”
-“E mais a mais que o papá está constipado” reforçou a D. Ana.
-“Eu também vou seguindo, que já está escuro”, disse a D. Etelvina levando-se e despedindo-se “Tivemos uma tarde muito agradável. Quando vou a casa da Amália, santo Deus, não a posso aturar; ela fala sempre da vida alheia; tem uma língua de palmo e meio. É uma critica horrível!”
-“Há pessoas assim”, disse a D. Ana. “Apareça mais vezes. Etelvina”. Alguns pares de olhos seguiram-na pela rua abaixo. Houve um rastro de paz, um fugidio vislumbre de silêncio.
-“Quando aquela mulher dá na língua não há meio de parar” observou a D. Maria, vendo a sombra da Etelvina apagar-se ao longe.
-“Gosta cortar na pele de todos” confirmou a D. Ana, debruçando as calções que passajara. “Não tem nada a fazer em casa a anda a palrar todo o santo dia.”
-“A D. Etelvina sempre invejou o bem alheio”, disse a filha, bocejando “Lembra-se, mãe, como ela críticos do vestido novo que usei no domingo passado, e disse-me que não enterrasse tanto em modas?”
-“Jaquina”, gritou a D. Ana “acenda as luzes e leve as cadeiras para dentro”.
O breu da noite espalhara-se pelo balcão, confundindo as coisas. O avó recolheu e mais os seus pigarros, e um a um meterem-se todos pela casa dentro. No fundo bruxoleavam as candeias, dispersava-se a família pelos quartos e pelos seus últimos afazeres do dia. O balcão ficou vazio quedou-se em profundo silêncio mergulhado nas trevas. No seu banco de pedra ficou apenas rosnando o gato da família enovelado num canto.
Foi uma tarde agradável pois não foi? Sabia-o muito bem o balcão mudo confidente daqueles desabafos íntimos daquelas confidências cochichadas em família e que ele recolhia na sua velha mudez de pedra e cal. Ali no seio daquele balcão vetusto tratou-se da icterícia da D. Eustacia, debateu-se a separação da D. Rita e o marido, a Márcia tornou-se numa namoriqueira delambida e a Rosália com o marido foram votados ao inferno pela pecado de orgulho. O balcão assistia a todos esses julgamentos passados em família na macieza das tardes. Ah e quantos julgamentos mais não soaram pelas suas velhas traves! Jazem ali encerradas confidências familiares de gerações, ruínas das pessoas que foram vitimas imbeles das conversas balcoeiras por todo aquele ror de anos, desde que um antepassado da família de grilhão de oiro e bigodes retorcidos erguem aquela casa e bradem ao mestre pedreiro: ‘´Não se esqueça de me fazer um balcão bem largo e espaçoso com bancos de pedra cimentada, onde toda a família se possa sentar”.
Fechou-se o portão da casa rangendo sobre os gansos. O balcão ficou isolado da residência aberta a rua e às carícias da noite. Uma mendiga sem eira vergada sobre uma vara tosca, farta das noites ao relento, aproximou-se de balcão deixou a vara e o alforge num canto e descansou com alívio sobre o seu banco de pedra.
Friday 2 September 2011
Mariana Juliana Cordeiro Monteiro - Protesto (1962)
Tu, que me deste o ser,
Ao calor do teu seio
Não me abortes o viver
Que do Amor me veio!
Porque me não deixas ver
O raio doirado do Sol
Sentir, ao anoitecer,
O conchego do teu colo?
Ouvir os passarinhos
Ao despertar da manhã
E ao mimo dos teus beijinhos,
Chamar-te: mamã, mamã!
Por falta de guarida
Não me deixas mal.
Tenho, como tu, o direito à vida,
E um alma imortal.
Por uma côdea de pão
Não te vás desesperar...
Terás a tua ração
Se souberes trabalhar
Não me mates, que horror!
À mingua de um bago de arroz,
Cresçam searas em flor
Pelas mãos que Deus nos pôs.
E nas névoas de amanhã,
Quem sabe lá
Se no teu glorioso afã
Não surgirá
Dos farrapos do teu manto
Um génio, um santo?
Ao calor do teu seio
Não me abortes o viver
Que do Amor me veio!
Porque me não deixas ver
O raio doirado do Sol
Sentir, ao anoitecer,
O conchego do teu colo?
Ouvir os passarinhos
Ao despertar da manhã
E ao mimo dos teus beijinhos,
Chamar-te: mamã, mamã!
Por falta de guarida
Não me deixas mal.
Tenho, como tu, o direito à vida,
E um alma imortal.
Por uma côdea de pão
Não te vás desesperar...
Terás a tua ração
Se souberes trabalhar
Não me mates, que horror!
À mingua de um bago de arroz,
Cresçam searas em flor
Pelas mãos que Deus nos pôs.
E nas névoas de amanhã,
Quem sabe lá
Se no teu glorioso afã
Não surgirá
Dos farrapos do teu manto
Um génio, um santo?
RV Pandit - Mãos em toda a parte (1968)
Tens pernas?
Caminhos em toda a parte.
És iroso?
Tens costas em toda a parte.
Veneno?
Traição em toda a parte.
Tens amor?
Mãos em toda a parte.
Caminhos em toda a parte.
És iroso?
Tens costas em toda a parte.
Veneno?
Traição em toda a parte.
Tens amor?
Mãos em toda a parte.
RV Pandit - Para quê? (1969)
(Canção do agonizante)
O noivo tem a noiva
O corpo desposou a morte
Os festejos, o trabalho,
O amor, as formalidades
Para quê?
Nada mais é preciso
Nem luzes, nem ornamentos
Os dias de vida já passaram
Agora são as noites escuras
Foi se tudo nada resta
Onde persistem as relações?
Deixai-me dormir, bem dormido
Deixai-me tudo esquecer
Deixai-me no cemitério, na fria terra
Eu nada quero de vós
Nem isso, nem aquilo
Nem vossa memória
Nem os vossos lamentos
Não quero missas nem exéquias
Na vida tudo ganhei
Nada mais desejo
Não quero nem casa nem os bens
Nem os manjares deliciosos...
Nada desejo nessa hora
Nada, nada, nada...!
O noivo tem a noiva
O corpo desposou a morte
Os festejos, o trabalho,
O amor, as formalidades
Para quê?
Nada mais é preciso
Nem luzes, nem ornamentos
Os dias de vida já passaram
Agora são as noites escuras
Foi se tudo nada resta
Onde persistem as relações?
Deixai-me dormir, bem dormido
Deixai-me tudo esquecer
Deixai-me no cemitério, na fria terra
Eu nada quero de vós
Nem isso, nem aquilo
Nem vossa memória
Nem os vossos lamentos
Não quero missas nem exéquias
Na vida tudo ganhei
Nada mais desejo
Não quero nem casa nem os bens
Nem os manjares deliciosos...
Nada desejo nessa hora
Nada, nada, nada...!
Telo de Mascarenhas - A primavera chegou (1978)
Quantos anos eu faço?
Não sei; eu não os conto
Por muitas vicissitudes eu passo
Sem me deixar vencer
Pelo desespero ou vontade de morrer.
Sei que nasci
Com a chegada da Primavera;
(Não consultei o Registo;
Disse-mo minha Mãe).
Por isso,
Toda a gente espera
Que eu dê flor e fruto.
Sou como uma árvore plantada
Neste nosso sagrado torrão natal;
Sou como uma árvore açoitada
Por vendavais agrestes
Que não vingam em mim desraigar.
Não sei; eu não os conto
Por muitas vicissitudes eu passo
Sem me deixar vencer
Pelo desespero ou vontade de morrer.
Sei que nasci
Com a chegada da Primavera;
(Não consultei o Registo;
Disse-mo minha Mãe).
Por isso,
Toda a gente espera
Que eu dê flor e fruto.
Sou como uma árvore plantada
Neste nosso sagrado torrão natal;
Sou como uma árvore açoitada
Por vendavais agrestes
Que não vingam em mim desraigar.
Eduardo Pereira de Andrade - Doutor Telo de Mascarenhas (1978)
Dotado duma robusta e farta inteligência
Orgulho ardente dessa nossa amada Mãe Pátria,
Unindo filha saudoso poeta Nascimento Mendonça,
Teve maior pendor por essa língua de Camões.
Ousadia que o premiou ainda no seu cativeiro,
Rascunhar seus poemas de desespero e consolação.
Todos de nome já sobejamente conhecem
Este vulto goês que na história marcou.
Lutando com fervor intempéries vida sofrida
Orientou seu fim politico que afinal alcançou.
Depois do cativeiro no forte Caxias sofrido,
Eis o aqui destemido seio seus conterrâneos.
Marchava ele sempre com seu ideal bem firme,
Alcançar cedo ou tarde seu desideratum esperado,
Surgindo qual astro com seu jornal “Ressurge Goa”,
Clamou bem alto qual será nosso ambicionado futuro.
Abraços fraternais jamais lhe podiam faltar,
Recheado como vinha com fins mais altruístas.
Era pois essa aquela sempre desejada vitória
Não como num grande caos em que tudo ora corre.
Haja pois quem vele pelos nossos interesses vitais,
Afirmar mundo personalidade e intelectualidade goesa,
Salientando esta minúscula parcela de GOA DOIRADA.
Orgulho ardente dessa nossa amada Mãe Pátria,
Unindo filha saudoso poeta Nascimento Mendonça,
Teve maior pendor por essa língua de Camões.
Ousadia que o premiou ainda no seu cativeiro,
Rascunhar seus poemas de desespero e consolação.
Todos de nome já sobejamente conhecem
Este vulto goês que na história marcou.
Lutando com fervor intempéries vida sofrida
Orientou seu fim politico que afinal alcançou.
Depois do cativeiro no forte Caxias sofrido,
Eis o aqui destemido seio seus conterrâneos.
Marchava ele sempre com seu ideal bem firme,
Alcançar cedo ou tarde seu desideratum esperado,
Surgindo qual astro com seu jornal “Ressurge Goa”,
Clamou bem alto qual será nosso ambicionado futuro.
Abraços fraternais jamais lhe podiam faltar,
Recheado como vinha com fins mais altruístas.
Era pois essa aquela sempre desejada vitória
Não como num grande caos em que tudo ora corre.
Haja pois quem vele pelos nossos interesses vitais,
Afirmar mundo personalidade e intelectualidade goesa,
Salientando esta minúscula parcela de GOA DOIRADA.
Cyrano Valles - Promessa (1967)
Virei, um dia,
Bater à tua porta
Viandante cansado
D’errar pelos agrestes
Caminhos da vida
Virei em silêncio
Qual sopro
De suave brisa marinha
Levar-te
Para a viagem derradeira.
Iremos juntos
Semear nossos sonhos
Por entre as estrelas perdidas
Nas brumas da Eternidade.
Bater à tua porta
Viandante cansado
D’errar pelos agrestes
Caminhos da vida
Virei em silêncio
Qual sopro
De suave brisa marinha
Levar-te
Para a viagem derradeira.
Iremos juntos
Semear nossos sonhos
Por entre as estrelas perdidas
Nas brumas da Eternidade.
Visnum Porobo Sincró - “Swami Vivekanand" (1963)
Deslumbraste ó Mestre, com sã doutrina,
Os sábios de discursos feitos em assembleia!
Perplexos foram todos, excepção nenhuma.
Aplaudiram em uníssono, “profeta eia’.
Estudante predilecto, querido de todos,
Trabalhou incansável no martírio.
Descuidando o físico, gozos esquecidos,
Renunciando a vida mundana,
Torna-se Sannyasi na tenra idade,
Indo à procura da Verdade,
Andou o mundo, galgou distâncias enormes,
Único fim de propalar a sã, doutrina.
De encaminhar a alma para a Verdade!
Os sábios de discursos feitos em assembleia!
Perplexos foram todos, excepção nenhuma.
Aplaudiram em uníssono, “profeta eia’.
Estudante predilecto, querido de todos,
Trabalhou incansável no martírio.
Descuidando o físico, gozos esquecidos,
Renunciando a vida mundana,
Torna-se Sannyasi na tenra idade,
Indo à procura da Verdade,
Andou o mundo, galgou distâncias enormes,
Único fim de propalar a sã, doutrina.
De encaminhar a alma para a Verdade!
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