Friday 16 September 2011

Victor Orlando - Carne à venda (1956)

From the column “Ouvindo todo e qualquer”

Subtitle: O balcão é a cama; o preço não depende do peso; a balança é o relógio; há fregueses de todos os feitiso: bons, maus, nem bons nem maus.

Preamble: Com esta entrevista iniciamos a série em epigrafe. Tentaremos assim, fugir às normas ditadas por aquela forma de jornalismo que, começando por ser de luva calçada, descamba em jornalismo de banalidades, abstraindo-se do seu papel fundamental – de servir o público – para assumir o de louvaminhas e beija-pés.

Todo e qualquer será aqui entrevistado. Exporá o seu caso. Revelará os seus problemas, ao mesmo tempo lançando o seu repto à sociedade que para a existência desses problemas concorre com o seu total desprezo pelo mais fraco.

Não esquecemos que a sociedade é, em ponto maior, o que cada um de nós é. O ladrão que rouba a mulher que se prostitui, a criança que desanda, têm, todos, em cada um de nós, um conivente, um co-autor dos seus desmandos, pois a cada um de nós cumpria proporcionar-lhes meios de vida decentes, não levando o nosso amor próprio ao ponte de o tornar prejudicial aos interesses alheios!

Todo e qualquer aqui dirá da sua justiça!

A entrevistada é uma mulher que é filha duma mãe. Não tem pai. Não sabe quem é seu pai e não pode sabê-lo. Para dizer a verdade, não quer sabê-lo – quando se cai sobre um monte de pedras nunca se descobre qual foi a que mais magoou; quando se é filha de “Naiquina” nunca se sabe quem é o pai!

Ela tem nome. E tem marido. O nome não revelo e o marido é o coqueiro à frente da sua casa. Nasceu por acidente mas a sua vida não é acidente. Faz parte da tradição. Sua mãe casou-se com um coqueiro. Sua avó também. O ritual é velho.

O coqueiro é o marido simbólico dessas mulheres que mudam de amante como quem muda de camisa. Coqueiro e “Naiquina” casam-se em pitoresca cerimónia antes da “Naquina” ser mulher. Nesse dia a mulher planta o marido – O Coqueiro – e deixa-o à sua sorte. Faz o mesmo o Coqueiro e abandona a mulher aos azares da vida. Não se melindra com nada. Não sabe o que seja ciúmes.

A entrevistada conserva em sua casa retratos de personagens importantes que para a sua alcova entraram. Descreve-lhes os gostos e as predilecções a, ao falar, comove-se e chora com aquela facilidade que a sua vida difícil torna possível. Mas é possível que tenha saudades dos seus dias de prosperidade. Não sei como era a casa há vinte anos. Agora, o tecto deixa atravessar-se por réstias de sol, o chão é húmido, aquele antro mete nojo.

A um canto, uma bicicleta que de bicicleta só tem o quadro, o guiador e o guarda-lama. A um outro, uma bacia de ferro esmaltada, com mais ferro do que esmalte. Encostada a uma parede, uma cama sem lençol, com uma esteira de palha mais infecta do que um mictório publico. Por todos os lados, retratos de artistas do cinema indiano, pin-ups já estafadas recolhidas dos cestos de lixo que pelos modos, nada ofendem os deuses que também naquelas paredes tem os seus retratos.

Tem nome, como disse. Tem marido, como expliquei. E tem filhos: duas filhas que já ganham e dois rapazes ainda pequenos que dormem no chão do quarto único da sua casa miserável. Esses dois rapazes nasceram para ser vadios: serão vadios. A sua família sabe-o perfeitamente. Seus tios são vadios. Esses dois rapazes dormem no chão da alcova da sua mãe. A vida, para eles, não contem segredos – não chão se permanecem, dormindo ou fingindo dormir, enquanto dura a noite negra.

Pergunto à entrevistada:

- Como encara a vida?

Responde-me:

- É o que vê. Os sábados são horríveis. E os domingos pior ainda. Tenho um amante que me bate se lhe não dou quanto dinheiro quer para se embebedar.

- E a saúde? – perguntei.

A pergunta ofendeu-a. Da sua saúde depende a prosperidade. E eu tinha-a ultrajado.

- O que é que o sr .julga? Nunca tive a mais pequenina coisa sequer! Julga que sou como a... ou como a.. ? Muito se engana!

E ela foi continuando o seu discurso. Jurando que tinha óptima saúde. Que nunca tinha tido a mais pequenina coisa sequer.

A entrevista tinha de terminar ali. E terminou. E saí daquele talho de carne humana. Ali o balcão é a cama. E paga-se a carne como se a usa. Pesa-se-a com o relógio. Quando mais tempo, mais o preço. E fregueses não faltam. Chova ou faça sol, assim é.

Quando regressei à cidade encontrei a como a deixara. Nas ruas gente de todos os tamanhos. E aquele garoto, com cara de inocente, que comprava doces, três por uma tanga, na praça dos automóveis – não garanto, mas juro – era o garoto que nervoso, confundindo, vi fugir quando me viu enquanto eu aprendia numa casa miserável que o coqueiro tem mais esta utilidade de ser marido paciente de mulheres desgraçadas.

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