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Monday, 15 July 2013

José Rangel - O Poeta e o Amor (à volta do livro 'Destino' de Judite Beatriz de Sousa) (1955)

A poesia é a quintessência do do sentimento humano. E ela a intérprete fiel e sagrada de toda a gama de sentimentos que palpitam na alma humana.

Nos seus versos, que têm, por vezes, a extensão dum sorriso ou duma lágrima, todo um mundo de volúpia e sofrimento, de anseios que arroubam, de desilusões que ferem.

Se na prosa, o homem pode elevar às alturas a sua arte, é na poesia que ela se sublime, quando tocada pela asa de espiritualidade, por aquela unção religiosa que a envolve por vezes, dum halo e misticismo...

O poeta é um ser superior, por que ultra-sensível. Qualquer sentimento, o mais banal, vibra nele com uma intensidade dolorosa, e se constela dum manto de estrelas, que espargem poalhas de luz, cujo brilho, não ilumina, muita vez, os olhos prosaicos, porque a distância que os separa é imensa...

É por isso, que o poeta é considerado um ser à margem das realidades tangíveis da vida e é apodado de sonhador...

Não! O poeta não vive de quimeras. Mas arrancando da realidade a sua própria carne que lateja e uiva, tece-lhe uma grinalda de flores, envolve-a de um manto diáfano de fantasia, para cobrir a nudez forte da verdade... E como o olhar humano não é bom psicólogo, e vê as coisas pela rama, isso o leva a julgar que o mundo do poeta é fictício, ilusório...

O poeta é um iluminado. Com aquela visão profunda que perscruta a alma dos homens e das coisas, ele ausculta em pequenos nadas da vida, o mistério que vive nele.

Que tem de extraordinário, um sorriso que se entreabre cândido e meigo ou um suspiro que se evola choroso e compungido? É tão banal! Mas o poeta entrevê através a névoa que os cobre, almas que ora se banham de alegria, em que há sonhos doirados que se corporizaram, promessas ridentes que se cumpriram, ora estremecem de amargura e dor, ante sonhos desfeitos, esperanças desfolhadas..

E como estas pequenas emoções, têm reflexo invulgar na sua alma, elas carreiam para o seu estro, pérolas, que lhe servirão, para tecer o seu poema.

Como todo o ser humano, o poeta também tem o seu ideal, de que faz o móvel da sua vida, dando-lhe todo o calor da sua alma fremente, e o iluminando daquela luz interior tão suave e tão bela que vive imaculada no sacrário do seu coração.

Mas o seu ideal, é por vezes, incompreendido. Ele sofre com isso. A sua alma amarfanha-se de dor, que lhe anavalha a alma.

Mas, é o próprio sofrimento que o eleva àqueles édenes de beleza a que o seu coração aspira, onde vive uma paz serena e luminosa, que dulcifica a alma e santifica a dor. É ele que cria as estrofes mais belas e mais sentidas.

Diversos sentimentos fazem vibrar a lira do poeta. Mas nenhum deles arranca dela acordes tão maviosos, como esse sentimento subtil e indefinível, que tendo a razão de ser em si próprio, viva do seu próprio sangue que lhe dá cada vez nova seiva; o Amor.

Sentimento dos mais elevados, que fremem na alma do poeta ele exala-o e o transfigura, tornando-o um ser diferente dele próprio.

Sentimento universal, que caldeia no mesmo cadinho, almas nos pares, a palpitarem do mesmo anseio, ele vive de braço dado com a Dor, quando este anseio vive isolado e incompreendido, quando a chama que ilumina uma alma, ao revés de aquecer outras almas só depara com gélida frieza...

O poeta, então, não procura apagar esta chama, mas fazendo dela a lâmpada a alumiar-lhe o estro, vai arrancando do seu alaúde, as mais sentidas endechas. E só depois de extravasado, às vezes duma forma irregular e impulsiva, todo o fogo que arde na sua alma e restar dele só cinzas e o olor duma saudade, é que o poeta depõe por momentos a sua lira, para a retomar e qual paladino do seu coração, continuar a trilhar por outras veredas, à busca de novos rumos para o seu Ideal...

Vem estas considerações ao bico da pena, á propósito do livro de poemas, que a jovem poetisa Judite Beatriz de Sousa acaba de dar à luz da publicidade.

Poetisa de alto quilate, que tem feito a nossa admiração pelos seus versos prenhes de beleza, de há muito esperávamos, que de dispersiva que era a sua lira, ela se enfeixasse num livro de versos, que espelhasse a sua verdadeira, alma de Artista e Mulher.

E cá temos agora “serena, clara, carinhosa, palpitante de viva emoção e humana beleza” a cantar aquilo que na sua alma mais vibrou: o Amor.

Seguindo a máxima de imortal Goethe “faz da tua dor um poema”, ela dá-nos hoje, poemas de admirável contextura, em que a elevação do pensamento e sentimento se alia à singeleza da frase e onde estua uma alma superior, qeu amou, com aquela acrisolada paixão que só os artistas podem ter e por isso mesmo sofreu e hoje se entrega à tristeza e ao abandono.

“O que amei foi tanto e há tanto tampo

Eu tenho as mãos cheias de abandonos...

E todo o mistério de dramas ocultos

A doer os meus olhos tarjados de mágoa”

Estes poemas constituem um longo estendal de amarguras, cuja leitura nos faz comungar do mesmo sentimento que a torturou, mais parecendo que é a nossa alma que neles suspira de dor...

“O meu poema é a minha grande dor

Porque é a mesma dor de toda a gente!”

Só os compreenderá, quem os possa sentir na sua carne e no seu sangue, ou parafraseando Júlio Dantas, é preciso lê-los com aquela mesma ternura com que foram escritos, para beijar a mão que os traçou.

Nestes poemas, sobressai, não só a beleza dos versos mas principalmente a beleza da alma da Mulher, embora eles nos dêem só uma parte dessa alma, pois as palavras por mais eloquentes que sejam, nunca podem traduzir à justa todo um rosário de anseios suspensos, lutas inglórias, e negros desesperos que se agitam na alma humana e os melhores poemas são aqueles que nunca se puderam escrever...

Fernando Namora, p poeta do “Mar de Sargaços” teve este desabafo doloroso, no final dum dos seus versos: “Ah! Covardes versos: nada dizeis do que sinto!”

Nos seus versos, a autora parece seguir a corrente modernista, em que “cada um vive consigo, entrega-se livremente à sua revelação, manifesta-se de acordo com o seu temperamento” e “o “único elo que os liga a todos entre si é o desejo de sinceridade, de quererem ser inteiramente eles, de cada um procurar um seus versos dar-nos a sua maneira própria de sentir, de pensar e de dizer”, sem se sujeitar a cânones estereotipados a que um poeta nunca pode confinar-se, renovação essa que, iniciada por Eugénio de Castro, continuada por António Nobre e ampliada por Mário de Sá-Carneiro e Fernando Pessoa, tem hoje poetas de gema num José Régio, Mário Dionísio, Fernanda de Castro, Mário Beirão, José Gomes Ferreira e outros.

Irmã gémea na poesia de Florbela Espanca (a que a comparou Mário Issac que prefacia o livro), essa “filha da charneca erma e selvagem que é o Alentejo, a Soror Saudade como lhe chamou o poeta Américo Durão, embora os ambientes de ambos sejam diferentes, elas se tocam e se irmanam porque viveu nelas o mesmo sentimento amalgamado de lágrimas.

Não pretendemos, com estas palavras, bordar considerações críticas à volta da sua alma, que não temos fôlego para tanto, mas tão somente, focando à verdadeira luz à sua alma de Mulher e o sentimento que nela germinou e tão bem frutificou, dar-lhe a nossa plena adesão espiritual, a quem cantou com tanta beleza é verdade, sentimentos que não são nossos.

Este livro é o primeiro passo na senda íngreme e dolorosa que é a glória. Temos a certeza que Judite Beatriz de Sousa, com a grandeza do seu espírito e a sinceridade do seu coração, saberá lutar contra todas as vicissitudes e ganhará a palma de glória que é a suprema aspiração de todos os artistas.

Monday, 24 September 2012

A História de Cinco Inéditos (1954)

Talento e Modestia
Entrámos no edifício sem sabermos em que repartição trabalhava Judit Beatriz de Sousa. Deparamos com o Sr. José Souto que nos resolveu o problema, num gesto elegante que não podíamos deixar de trazer a público – foi ele mesmo a chamar a poetisa.

Já na frente daquele sorriso modesto um tanto ou quanto místico que nos embaraça, vimo-nos impossibilitados de expor imediatamente o que nos levara ali porque a nossa interlocutora atacou diversos assuntos ligados às letras e nós fomos na onde do entusiasmo que percorreu os gestos e as frases de JUDIT.

Falou-se do movimento poético em Portugal, dos mais representativos valores da nossa poesia de hoje, da necessidade de contesto permanente com os bons poetas, da forma e dos temas (disse-nos que está a procurar novos), dos Jogos Florais de Goa, etc.

E a propósito deste certame, a poetisa declarou-nos que, por princípio, não gostava de concorrer. Lá terá as suas razões que achamos de mau gosto discutir.

E quando finalmente notamos que estávamos a roubar tempo de que a “funcionária dos Correios” precisava, lançamos, então o nosso pedido: queríamos um poema para o Número de Pascoa.

Olhou-nos, naquele modo simples e desprendido que define um temperamento e respondeu: “não sei se estarei à altura de qualquer coisa digna dum número especial, mas vou tentar satisfazer o seu desejo”.

Aquelas palavras saíram com tanta sinceridade, tão naturalmente, que nos impressionaram. É que na verdade é difícil alguém pensar tão mal de si como esta talentosa artífice do sonho. Felizmente para nós a poetisa não tem razão. A demonstrá-lo está este poema que Judit intitulou:

Poema da Rua
Eu ando sozinha
Amparada à minha sombra
Na rua.

Há tanta gente na rua
Mas a minha sombra
Continua
Amparando aquela que sou eu.

Tanta gente conhecida
Que agora na minha Vida
É como areia fugida
Por entre os dedos...

Olham-me e dizem segredos:
- “Sexta-Feira de Paixão
Uma sábia distraída...
É uma interrogação...
Parece que está na lua...”
Sei lá que mais, aqui, alem,
Murmura quando me vê
Esta gente que vai e vem
Na Rua
No vaivém da Vida
Envelhecendo...

De longe veio um Poema
Alberto Barros e Sá anda por terras distantes, curtindo entre os solavancos da existência, uma saudade teimosa da sua querida Goa – desta mulher bonita que um dia adormeceu encostada ao Gates, ouvindo as lendas que o mar lhe contava, sôfrego do seu corpo dengoso e quente.

Não pudemos, por isso, tratar directamente da pretensão de “O Heraldo” com o goês que retratou a sua alma lírica nas páginas de O Destino – livro que ainda não apareceu em letra de Imprensa mas que se encontra pronto a seguir para a tipografia.

Felizmente há sempre alguém que se dispõe a colaborar, caso contrário não teríamos podido incluir nestes inéditos o poema que aí vai, cuja publicação foi autorizada pelo autor, através de pessoa amiga.

Tem, assim, o sabor de lembrança que se manda de longe, já que se não pode vir. Um aceno amigo que o homem do cais atira ao viajante desconhecido.

Daqui enviamos a Barros e Sá tudo o que nos é dado pelo seu gesto: a nossa gratidão e a nossa amizade. E que a poesia continue a guiá-lo nos caminhos da beleza, embora a quiséssemos menos subjectiva que nesta.

Visão
Sonhei em vão
Um sonho lindo
Que é feito dele?

Esvaiu-se
Quando sobressaltado
Me Levantei

Vi, vi no fantasma
Negro das trevas
Além, além
Os canteiros sinistros
Dum cemitério
Flores murchas
Flores amareladas
O vento agreste
Assobiando
Por entre lúgubres
Ciprestes

Súbito
Um estrondo
Neve que cai
Acompanhando
A celestial visão
Da minha bem amada,
Partiste, partiste
Sem um adeus
Sem uma palavra
Um beijo não pode
Selar a eterna jornada

Tanto abraçar-te, ó visão
Ó visão esmagadora
E eis que me foges
Um sonho.
Nem tudo morreu ainda...
Um silêncio que vem morrer à porta, avisa-nos de que naquela casa se trabalha religiosamente, sem alardes nem cartazes.

Vencido o primeiro lanço de escada, o ambiente começou de infiltrar-se nas nossas intenções e, sem darmos por isso, achamo-nos frente à ideia de que não tínhamos o direito de desviar o tempo dum homem que, embora vencendo um ordenado, estava a contribuir naquilo que andava ao seu alcance, para uma obra marcadamente humanitária como é esta de valer a todos para quem a vida reservou o pior bocado – o bocado dos desgraçados.

Mas as circunstâncias impunham-se e lá fomos subindo e depois cortando à esquerda, para irmos para ao fundo dum corredor envidraçado, local onde Alfredo Lobato de Faria queima uma grande parte das suas horas, de caneta em punho.

Um aperto de mão. Duas palavras sobre o calor. O autor de Sombras acabou de preencher uma papeleta que tinha sob o domínio do aparo e acomodou-se no seu lugar, a saber ao que íamos.

Agradeceu-nos a lembrança que tivermos do seu “modesto nome” e prometeu-nos ajude.

Entretanto, vieram mais uns minutos de conversas quase inteiramente preenchidos pela palavra fluente e sentida do poeta. A análise do ambiente literário goês deixou-nos inteirados quanto ao carinho que estas coisas merecem a Lobato de Faria. E nós que temos a veleidade de nos supormos interessados num progresso cultural desta terra, aprendemos ali, na serenidade daquele santo, que nem tudo está perdido – pelo menos enquanto restar uma dedicação como a do poeta de

Sintetizando
Homem que vais por este mundo fora
Que queres ser tu mais, intelectual profundo
Ou simples afectivo, pobre embora?
Que queres ser, pois, cérebro facundo
Onde esplendem ideias luminosas,
Ou coração que em noites silenciosas
Chora a dor dos que penam neste Vale?

Que queres ser, qual é tua ambição?
Um Compte, Galileu, “divino” Antero,
São Francisco de Assis, Camões, Pascal,
Miguel Ângelo, Newton genial?
Que queres ser, qual é o teu ideal?

Um Intervalo na Prosa
Onze da manhã. No quartel da policia vai um movimento intenso. Horas de expediente que são iguais em toda a parte onde a burocracia entrou com todo o seu cortejo de impressos e assinaturas, verbetes e ofícios, participações e relatórios, autos e despachos, etc.

Indagamos do paradeiro de Leopoldo Menezes. A praça a quem nos dirigimos tomou a posição correcta de “sentido” e chamou um camarada – o que nos havia de conduzir à presença do poeta.

Fomos encontrar a nossa “vítima” num grupo discutindo qualquer assunto de serviço que, pelos vistos, estava a preocupar aquela meia dúzia de elementos, tal a vivacidade que púnhamos na troca de frases.

Interrompemos Leopolod que nos acolheu com um ar saudável de quem não faz força para ser cortês.

Finas as habituais cerimónias do “então, como vai, passou bem?”. Quisemos saber o que tinha produzido nos últimos tempos.

Que pouco, em verso. Na prosa é que estava a empregar o presentemente as suas horas vagas: duas obras de carácter histórico sobre Goa.

Foi quase um balde de água fria. A um poeta que está em época de prosa não se devem pedir favores de género que levamos engatilhado. E se não descobríssemos o jogo. Se disséssemos que tínhamos ido ali para saber novidades sobre os trabalhos literários do nosso amigo? Era talvez o melhor. Mas, assim, o Número da Páscoa não contaria com a sua colaboração!... Isso, de maneira nenhuma. Reunimos forças e “Eu vim aqui para lhe pedir um poema inédito”. Leopoldo Menezes perguntou-nos a que se destinava a produção. Satisfeita a sua curiosidade, acedeu.

Afinal, tinha sido mais fácil do que pensávamos. É que os verdadeiros poetas, trazem sempre na alma a beleza suficiente para conceber dois sonetos, sem que seja preciso quebrar a continuidade doutra empresa. E a prova aí vai.

Sonhar

Oh! Como é bom sonhar, embora uma mentira,
Ser sol e ser luar, uma estrela cadente,
Teu escravo, mulher, cantando uma lira,
O amor que me destrói matando lentamente!

Oh! Como é bom sonhar um sonho que delira
Como um beijo de hurí sensual e fremente,
Morremos a queimar sós numa ardente pira,
Num amplexo fatal que a morte nunca sente!

Oh! Como é bom sonhar, ser tudo e não ser nada,
Pigmeu ou titã, ser apenas pó de estrada,
Vento forte que obumbra ou um raio de luz!

Oh! Como é bom sonhar, ter o aroma da flor,
Viver só para amar, viver só có o amor,
Morrer no cadafalso ou aos pés duma cruel.
Nem Sempre o Sonho é Possível

Alberto de Menezes Rodrigues era, até há bem pouco, um desconhecido para nós – até ao dia em que nós informaram de que na tipografia Sadananda estava a imprimir-se um livro de versos – “Arroios” – cujo autor vivia em Goa Velha e trabalhava em Pangim, como oficial da Fazenda.

Tivemos mais tarde ocasião de falar ao poeta e de lhe exprimir a nossa satisfação por vermos mais um filho de Goa a procrar o caminho das letras.

Era, portanto, uma porta que não deixaria de se abrir para nos acolher. E não hesitamos.

Grupos apressados entram e saem, num movimento descomendado, ao sabor do tempo disponível e da urgência dos assuntos. Cá fora, as sete letras, enormes e inalteráveis, lá vão atirando para cima do contribuinte todo o vigor da sua presença “Paga!”.

Após um série de perguntas e respostas provocadas pela nosso desejo de encontro com o autor de “Arroios” chegamos a uma sala espaçosa, de semi-penumbra, onde um grupo de funcionários se entregava aos papeis que tinha sob os olhos, numa concentração que era quase volúpia.

Alberto de Menezes Bragança não estava, de momento, mas não tardaria. Efectivamente, poucos minutos decorridos, eis-nos a lançar o golpe de misericórdia. O nosso interlocutor “parou” admiravelmente este “bote dos cem luzes”. Nem pestanejou. Levou as mãos ao rosto, num gesto de quem vai pensar, e disse-nos que não lhe era possível produzir um poema para a data que nós queríamos. No entanto, como lhe custava deixar de nos ser agradável, extrairia um do livro que tinha no prelo. É esse que inserimos abaixo e que não nos parece mal esolhido.

Aquela melodia...
E abrindo a porta envidraçada
Que dava para o terraço,
Um jovem alto e formoso
Avançou, vagaroso,
Até à balaustrada.
A casa era branca e cercada
De altivos coqueiros
E tinha, à sua frente,
Um jardim virante,
Que espalhava no ambiente
Aroma suave e fino,
Ele trazia na mão um violino
E havia muita tristeza
Nos seus lindos olhos.
Àquela hora silenciosa,
Em que ia alta a noite,
A Lua subia majestosa
Pelos caminhos azuis do céu,
Derramando, com profusão,
Argêntea claridade.
O mancebo ergueu os olhos para o alto,
Em calma contemplação.
Depois os poisou sobre as plantas floridas,
Aspirando, com serenidade,
As fragrâncias que elas rescendiam
E, por fim, começou a tocar...
Uma música melodiosa
Ressoava agora no ar.
Era triste, mas tão harmoniosa
Que não parecia deste mundo,
Mas das longínquas regiões do Azul.
Aquelas notas vibrantes
Eram a expressão sublime
Da dor
Que amargurava a vida
Do moço tocador.
A Natureza, em silêncio,
Escutava-as embevecida.
Havia murmúrios das flores,
Em baixo, no jardim.
Uma rosa, comovida,
Virando-se para o cravo vizinho,
Estas palavras lhes soltam aos ouvidos
De mansinho:
“Que harmonia é essa
Que me enleva e domina?
Em toda a minha vida,
Música não ouvi
Tão amena e divina!”
E o cravo lhe cochichou,
Tristemente sorrindo:
“Na serenidade maravilhosa
Daquele semblante
Eu vejo nítidos reflexos
Dum sofrimento incessante,
Que dilacera essa alma formosa.
Mas escutamos com atenção.
Pois agora a melodia
Tem não sei quê de magia.”
Nesse momento vibrou no ar
Um anseio enternecido:
“Eu quisera reclinar-me
Sobre aquele peito dolorido,
Para lhe aliviar o amargor
Com o meu suave olor!”
Era a voz dum mogarim
Que alvejava no jardim.
Com efeito, o violino
Era sublime, sublime,
Que maviosidade ele espalhava
Naquele ameno recinto!
O arco ligeiro
Agora deslizava
Apenas sobre a prima,
Num arranco impressionante,
Soberbo culminante!
E chegou, afinal, o momento
Em que o exímio violinista
Cessou de tocar.
Depois, mansamente,
Se recolheu ao seu aposento.

Instantes após,
Na amplidão enluarada,
Uma voz maviosa
Tremente, ressoou
Da trepadeira
Das cinco chagas
Que crescia viçosa,
Enroscando-se às balaustradas,
Do alvo terraço,
Uma flor graciosa
Desatou a falar:
“Eu vi de parte o violinista
Moço formosos, cujo olhar
Era triste, mas fascinantes
Eu escutei, com muita emoção,
Qual comovida amante,
O brando arfar
Daquele triste peito.
Algumas pétalas minhas
Quase que tocaram
Nas suas vestes branquinhas,
Ouvi, ó esbeltas flores,
Atentamente,
O que vos vou agora contar!
Precisamente no instante
Em que ele cessou de tocar,
Do seu olho direito
Uma lágrima brilhante
Eu vi brotar,
Que, logo depois,
Resvalando rapidamente
Pela face ebúrnea,
No meu seio tombou.
Ai, que comoção
Nesse momento senti!
Julguei que me rebentava
O coração, 
Eu recolhi, com grande ternura,
Essa lágrima ardente e pura,
Dádiva generosa
Que o Eterno enviou
Para avaliar a dor
Daquela alma desditosa.
Mas que vendaval feroz
Passou por aquele coração,
Na primavera da vida,
Nessa linda idade
De sonhos e ambições?
Ai longe de mim a intenção
De perscrutar
O segredo que oculta
A tremenda desventura
Que o tortura!
Ó lágrima silenciosa!
Lágrima cristalina!
A ti que és a coroa gloriosa
Do desventurado tocador
E que agora tremeluzes formosa
Na minha corola virginal,
Eu te contemplo, com intenso amor!
Bendita sejas tu, bendita sejas,
Ó lágrima ideal!”

Thursday, 1 March 2012

Guilherme de Melo - A Estreia Literária de Uma Poetisa Goesa (1952)

Através de Armindo Santos, nosso camarada da Imprensa moçambicana, recentemente chegado a Goa onde se encontra em serviço militar, foi-nos dado ler uma interessante crítica de Guilherme de Melo – jovem e apreciado jornalista Laurentino – ao livro “Destino” da nossa conterrânea Judite Beatriz de Sousa.

Essa crítica - publicada, com o título acima, na edição de 24 de Janeiro findo do “Notícias”, importante diário de Lourenço Marques – não só pela honestidade da sua concepção, mas também, e especialmente, por dizer respeito a um livro da outrora de uma goesa, merece ficar registada nesta página semanal de “O Heraldo”, da qual, aliás Beatriz Judite de Sousa, foi apreciada colaboradora.

Por tal motivo, passamos a transcrever com a devida vénia essa crítica do nosso prezado colega de Moçambique.


Com o lacónico e, ao mesmo tempo, incomensurável título de Destino – ou não concordais que pode, nesta simples palavra, saber todo um universo de sonhos e de esperanças, de lutas e desesperos, de alegrias e de lágrimas? – acaba Judite Beatriz de Sousa de trazer para as mãos do Mundo o seu primeiro livro de poemas.

Se outro valor não tivera, com efeito, esta pequena obra de estreia, ainda assim merecia que a ela dedicássemos um pouco de atenção e interesse, quanto mais não fosse pelas circunstâncias pouco vulgares que envolvem o seu aparecimento: Judit Beatriz de Sousa nasceu na velha e portuguesíssima Goa e jamais da sua terra natal saiu. Assim, como muito bem aponta Mário Isaac no curto prefácio à coletânea dos poemas: “não sofreu, portanto, a influência do tão discutado meio ambiente e, se juntarmos a isto o facto de não haver europeus entre os seus descendentes, conclui-se que a poetisa de “Destino” é, para além do mais, um produto da cultura portuguesa na Índia”

Razão, pois, mais do que suficiente, para que a pequena obra litéraria, composta e impresssa na Imprensa Nacional de Goa, contenha, a par do natural interesse que sempre em nós suscita a estreia de uma poetisa ou de um poeta, um especial motivo de atenção e estudo.

Vejamos, pois, o que, na verdade, “Destino” nos oferece como obra poética.

O fulcro da colectânea define-o a poetisa no décimo terceiro poema justamente com o nome “Destino”: vai pelos caminhos da Vida andando, sem norte, sem farol, sem um guia, a si próprio fazendo companhia, agora vai sozinha.

“Porque houve alguém mais forte
que te arrancou dos meus braços
quando
com as almas plenas de sol,
Caminhávamos sonhando,
Teus passos paralelos aos meus passos”

E agora vai sozinha, “como um coração sobre as águas a boiar”.

“como aquele que caminha
porque tem de caminhar!”

É, pois, o Amor, o Amor com tudo o que possa conter de alegria e mágoa, de dor e prazer, de renúncia e abandono, de exaltação e sofrimento, de ânsia e de desespero, de fé e ilusão, o mundo em que se desfia o rosário das vinte a tantas poesias que Judite Beatriz de Sousa reuniu neste seu livro, em que a Artista e a Mulher se confundem a cada passo, numa união curiosa e tendo, por vezes, como resultado, momentos de rara beleza poética:

“Parti num barco sem idade,
Feito só de silêncio musical da noite
E de vigílias de ansiedade,
Para um país sem fronteiras,
Sem caminhos.
Onde as asas não se quebram
Nas barreiras...”

Ou, por exemplo, esse belíssimo “Elegia”, quanto a nós um dos melhores, senão mesmo o melhor poema do livro:

Meus dedos eram de barro
(ou de terra humedecida);
Quiseram prender o Sonho
Trazê-lo mais para a Vida.

Mas ai! Que o Sonho se foi
Como fumo de cigarro...
Os meus desejos partidos,
Meus pobres dedos quebrados.
Meus dedos eram de barro”

Apaixonada, a Mulher sobrepuja, por vezes, a Poetisa, como no poema em que, num lirismo quase exacerbado, num rompante de masoquismo puro, depois de gritar o seu Sonho desfeito, porque ele passou na sua Vida para não voltar conclui que passou afinal apenas

“para que colasses a boca nos teus passos
religiosamente
apaixonadamente!”

Mas, conhecedora perfeita de que a Vida não é só amor e desilusão, sonho de lirismo e romance desfeito:

“Bebe mais Sol. Amor, e encara a Vida!
- já lá vai o tempo das janelas
floridas de roseiras,
e, debaixo delas,
a estrofe sentida
de amantes sonhadores...

Agora há mais espinhos,
E menos flores,
Mais pedras nos caminhos,
Mais esperas, canseiras,
Mais ilusão mentida!
Bebe mais Sol, Amor, e encara a Vida”

A Poetisa chega ao fim com um viajante que alcança uma fronteira – “fronteira de Alma”, lhe chama. E, aí parada agora nessa fronteira alcançada, queima, na fogueira em si mesma acesa, “tudo o que foi mentira, tudo o que foi Passado”m para, depois de tudo queimar, se encontrar a si mesma.

“Eu só – no meu quarto parado,
De parades pasmadas limitando a curva sinuosa do Futuro
Lá fora, o escuro...”

O escuro – ou o Mundo, talvez o Mundo onde Judite Beatriz de Sousa, estamos certos, não hesitará em entrar, de passos bem firmes, pisando a estrada aberta à sua frente, vivendo a Vida, sentindo-a, tocando-a, palpando-a, cantando-a nos seus versos de Poetisa que realmente é.

Wednesday, 28 September 2011

Mário Isaac - José Osório de Oliveira e o prefácio do Destino (1955)

O homem de letras que é José Osório de Oliveira nem sempre disporá de tempo suficiente para analisar detidamente os escritos que lhe vão ter às mãos. Só assim se poderá explicar o equívoco que lhe ficou da leitura do meu prefácio ao livro DESTINO de Judit Beatriz de Sousa.

Em artigo para o Serviço de Intercâmbio Cultural da Agência Geral do Ultramar, escreve o conhecido prosador que eu aparentei a goesa com Florbela Espanca e acrescenta que o estabelecimento de tal parentesco é excessivo, reproduzindo em seguida uma passagem do prefácio onde eu chamo à alentejana “irmã mais velha” de Judit.

Mais abaixo, José Osório de Oliveira explica a sua opinião, afirmando:

“Disse que era expressiva a comparação com Florbela porque a autora de Charneca em Flor, apesar das suas faltas de gosto, se ergueu à maior altura da Poesia passional de qualquer tempo e em qualquer língua, ao passo que Judit Beatriz de Sousa, cuja idade incerta do caminho da sua Poesia, hesitante, não só formalmente, mas psicologicamente”

Quem não tenha lido o prefácio de DESTINO a for julhar do seu conteúdo pelas palavras que acabei de transcrever, chegará, de certo, à conclusão de que eu pretenda colocar em presença as alturas atingidas na Poesia (mesmo passional) por aquelas duas mulheres portuguesas, ficando ainda margem para se poder imaginar que atribui a Judit um lugar descabido relativamente ao de Florbela.

Repito que há aqui um equívoco.

Abri o trabalho com ligeiras considerações inspiradas em dois versos de Eugénio de Andrada (Aqui abandonaste as mãos/A tudo o que não cheguei a acontecer...) Dessas linhas vou transcrever aquelas que – juntamente com a “irmã mais velha” – me parecem ter precipitado o juízo de Osório de Oliveira. Disse eu:

“Abandonar as mãos a tudo o que não chega a acontecer – é sina de quem um dia partiu com os olhos carregados de estrelas. O poeta deixa-se conduzir – porque é esse o seu destino – abandona-se à visão permanente e mãe de beleza; e dela, da visão, nasce o sentido e o som dos seus versos. A mão que os escreve é, ainda e sempre, guiada por ‘tudo o que não chega a acontecer

Assim se passou com Florbela Espanca. Outro tanto se dá com Judit Beatriz de Sousa. Simplesmente, se em Florbela parece ter havido males maiors, algo esclarecidos pelas circunstâncias em que deixou a vida, em Judit é apenas o Amor o centro da visão – que mais espaço ocupa e vivamente se mostra.”

A explicaçã de ter glosado aqueles dois versos deve-se ao facto de eles me parecerem bons intérpretes do caso poético de Judit Beatriz de Sousa – a própria poetisa, de resto, se dá ao trabalho de nos esclarecer logo no primeiro poema que intitulou de ‘Prefácio’:

“Amor imaginário... mas talvez

em perspectiva de longo revés...”

E vem a confirmação na ‘Elegia”:

“Meus dedos eram de barro

(ou de terra humedecida);

quiserem prender o sonho,

trazê-lo mais para a Vida.



Mas ai que o sonho se foi

Como fumo de cigarro...




Meus dedos eram de barro”

E como estes e outros desabafos espalhados pelo livro não bastassem para nos convencermos de que Judit “abandonou as mãos a tudo o que não chega a acontecer,” deparamos com a confissão de que nada mais houve que

“a dor

de amar só por amar... só por amar”

resultante de

“aquele meu velho sonho

De querer sonhar contigo.”

Mas acontece que os dois versos de Eugénio de Andrade são de um “Poema a Florbela”. Daqui e só daqui, nasceu a minha referência à poetisa alentejana, convencido como estou de ter ela também “abandonado as mãos a tudo o que não chega a acontecer”.

Aparentadas? Mas não são os poetas ramos do mesmo tronco? Onde há aqui lugar para o “excessivo” de José Osório de Oliveira?

E naquilo que o autor da ‘Explicação de Machado de Assis e de Dom Casmurro’ parece querer concretizar na palavra comparação, limitei-me a apontar um elemento comum à Poesia de Florbela e de Judit: o amor. Repito o que escrevi a este respeito:

“Simplesmente: se em Florbela parece ter havido males maiores, algo esclarecidos pelas circunstâncias em que deixou a vida, em Judit é  apenas o amor o centro da visão – que mais espaço ocupa e vivamente se mostra”

Não sei até que ponto será fácil concluir de tudo o que aí fica que pretendi colocar Judit Beatriz de Sousa, já não digo a par, mas até longe ou perto de Florbela Espanca, na hierarquia de valores da Poesia portuguesa, passional ou não. Se houve comparação aquela ‘irmã mais velha’ (em Poesia, claro está) atribui a Florbela uma superioridade mas de que eu nem sei a medida.

José Osório de Oliveira comenta a coisa de modo a fazer criar nos leitores a ideia de um escalonamento errado, deixando de pé a hipótese de eu ter procurado beneficiar a poetisa de Pangim à custa de uma desconsideração à real valia de Vila Viçosa.

Tenho razões para afirmar que houve equivoco. Suponho que uma cuidada leitura das minhas linhas dará ao critico oportunidade de constatar o seu engano.

Mantenho que a poetisa Florbela Espanca é irmã mais velha da poetisa Judit Beatriz de Sousa e não vejo onde esteja o “excesso”.

Tuesday, 6 September 2011

Judit Beatriz de Sousa - Compensação (1962)

O meu olhar tristíssimo poisou
No teu perfil distante,
Longamente,
Como asa suave
Ferida em pleno azul.
O meu olhar deseleou
A tua imagem vaga, sem contornos...

- O que amei foi tanto! E há tanto tempo
Eu tenho as mãos tão cheias de abandonos....

Thursday, 25 August 2011

Judit Beatriz de Sousa - Leva Tudo (1954)

O que deixaste é muito! Leva tudo.
Não fico, nem por isso, abandonada.
Não temas que te peça o que não dás.
Leva tudo, Amor, não quero nada!

Não me revolto – vês – nem endoideço.
E sei que com aquela que adoraste,
Agora, nem por sombras me pareço.
Leva tudo, que é muito que deixaste!
Levando tudo, eu fico mais sozinha
E, então, ao menos, hei-de achar que sou
A única mulher que foi rainha
De tudo o que me deste e me levaste!...


Mário Isaac's opinion:

Para concretizar o que afirmámos ao lado, inserimos hoje um poema inédito de um dos casos positivos, esplendidamente positivos da poesia goesa. Através de uma dúzia de versos e de um intervalo de silêncio, seguimos a poetisa, presos da sua arte e da sua confissão. E porque estamos, realmente, na presença de uma instituição poética, chegamos ao fim e apetece-nos voltar ao princípio, a saborear a tocante simplicidade de expressões – retrato de um sentimento analisado e definido. Que faltará a esta poesia, para que a possamos classificar entre o que de melhor temos lido? Apenas isto: a extensão do seu eco para além das origens individuais – para além do âmbito limitado por um acontecimento de carácter transitório e em absoluto desligado do mundo exterior.

É o tema, afinal, que está a colocar a poetisa fora das necessidades do dia que passa. Nem por isso, é evidente, “deixaremos de classificar como poesia, como boa poesia, as produções deste género que nos venham às mãos – o que entendemos é que a mesma não cumpre, perante as exigências do momento, como lhe competia.

Mais um pequeno esforço e teremos na autora da poesia que hoje publicamos, uma colaboradora valiosa na obra literária em Portugal. Afirmamo-lo, esperançados em que seja possível à poetisa realizar a “viragem” que pretendemos. E não esquecemos aqui os outros valores que poderão nascer duma melhor orientação de algumas reais esperanças que já apresentámos aos leitores