Wednesday, 26 December 2012

Laxmanrao Sardessai - O Tempo é o Meu Tesouro

O tempo é o meu tesouro
E minutos e horas são moedas preciosas.
Cada momento que passa pelo meu ser
Torna-se o oiro do pensamento
E flutua no Mundo das ideias.
No branco rolar do tempo
Eu escrevo em letras imensas,
Mensagens eternas de Deus
Eu arrojo com o meu sopro
Para o abismo de Nada
Os escribas mundanos
Que defendem a filosofia do ódio
E nessa obra colossal
Eu me folgo.

Tuesday, 18 December 2012

Santana Pinto - Goa (1962)

É tão atraente meu torrão natal,
Cheio de encanto e tanta beleza
Cintila sem par como uma turquesa
Que não vejo nenhum outro igual.

Vi lá prosperidade, bem e mal,
Riqueza que nem sempre foi firmeza,
Paz, vida pitoresca, dureza
E trecho da história oriental.

Agora, envelhecendo com idade,
Vejo todo passado com saudade
Em visão que foi e não volta jamais!

Já vivi, república, ditadura,
Guerras tétricas – que me resta mais! –
Doce silêncio e paz da sepultura!

Wednesday, 5 December 2012

Francisco Correia-Afonso - A Legião do Amor (1961)

Beati misericordes… Do Sermão da Montanha
Ao alto erguendo o lábaro da Cruz,
Ei-la que vai, galharda legião,
Dos mansos mensageiros do sermão
Que da montanha nos pregou Jesus.

Ungindo toda a dor, cobrindo os nus,
À fome dando até do próprio pão;
A chega faz-se flor sob sua mão;
Sob seu olhar a treva faz-se luz.

Eis na vanguarda Assis e São Vicente....
E surge entre os heróis a quem bendigo
- Orgulho imenso! - Alguém da minha gente.

Que deu à Dor a bênção dum abrigo,
E tem nessa falange um posto à frente,
Pois por amor aos pobres foi mendigo.

Alberto de Menezes Rodrigues - Glória ao Soldado Indiano (1962)

O Dragão Amarelo
Fincou
Suas garras
No solo sagrado
Da nossa Pátria
E uma guerra feroz rebentou!

Porque todos nos unimos
Para enfrentar com energia
A agressão cínica e desumana,
Porque a nossa causa é justa
E numerosas nações nos deram
O conforto da sua simpatia
Quase que se vislumbra a vitória indiana.

A Alma do sempre lembrado
Mahatma Gandhi
- O Pai da Nação –
Paira sobre a Índia
Como uma Sombra inspiradora,
Como uma Sombra que vale por ela
Não nos intimidemos diante da força agressora
Que avançou!
Não está longe a despontar do dia
Em que os invasores,
Não podendo aguentar os combates,
Regressem cabisbaixos aos penates!

E desta provação, que o Destino lhe impôs,
A Nação emergirá
Mais unida,
Mais coesa,
E mais contente,
Continuando a trabalhar
Em prol da Humanidade,
Cônscia da sua alta missão no Mundo.
E atingirá rapidamente
A meta da prosperidade.

Longe, nas regiões montanhosas do Himalaia,
Cobertas de neve,
Os nossos jawans batem-se com bravura.
- Que os nossos corações palpitem de orgulho
E de gratidão! –
Defendendo a Nação,
Eles defendem a nós e os nossos lares.
E quantos tombaram para sempre,
Vítimas do furor insano
Dos chineses!

Glória ao Soldado Indiano!

Evagrio Jorge - Orgulho da Grei (1969)

“Je suis né dans l’Inde orientale, dans ce pays qui fut le berceau de poesies, philosophies et des histoires…

J’appartiens à cette race qui composa Mahabaratta et inventa les échecs – deux œuvres qui portent en elles quelque chose d’eternel et d’infini…

Je demande pour l’Inde la liberté et la lumière!”

A – Quem foi Francisco Luís Gomes ? Onde nasceu ? Onde viveu ? Que fez ele em vida ?

B – Francisco Luís Gomes foi um goês ilustre, nascido em Navelim de Salcete aos 31 de Maio de 1829. Formado médico pela Escola Médica de Goa, dentro dos curtos 40 anos de vida, foi parlementar, economista, historiador, escritor e humanista.

A – Parlementar foi-o Francisco Luís Gomes, de 1861 até a sua morte em 1969 e nessa qualidade defendeu a liberdade, pugnou pelas regalias cívicas e fez a defesa dos humildes e protegidos. Eis algumas passagens lapidares dos seus eloquentes discursos:

C – Tenho amor aos príncipios, amor inabalável e forte. E se este amor precisasse de alguma recomendação tinha-a nas palavras que me dirigiu um dos grandes homens desta terra. Há mais de dois anos o sr José Estevam, abraçando-me e ao sr. Tomás Ribeiro disse-nos estas palavras: Rapazes, não sacrifiquem nunca os princípios aos homens. Não há homem nenhum que valha um princípio.

B – E esta outra passagem que se provou profética: ‘As revoluções antigas derrubavam os feudos, os privilégios, os fortes, os poderosos; as revoluções futuras hão-de levantar os pequenos, os humildes e os pequenos. As revoluções passadas fizeram pequenos os grandes; as revoluções futuras hão-de fazer grandes os pequenos. As revoluções passadas eram os furacões que abatiam os castelos e os confundiam com o pó da terra; as revoluções futuras devem ser os terramotos que levantem as camadas ínfimas e as tornem primeiras . As revoluções passadas foram o “deposuit potentes”, as revoluções futuras devem ser o “sursum corda”. As revoluções passadas emanciparam as classes, as revoluções futuras hão-de libertar as massas, emancipando as indústrias, barateando subsistências e propagando a instrução”.

B – Logo a seguir disse isto que se aplica também às condições actuais do nosso pais:

C – “As liberdades económicas! Eis aí a bandeira, à cuja sombra se podem fundir e aliar-se os partidos em Portugal. Estamos nas liberdades politicas mais adiantados do que muitas nações de Europa, não assim nas económicas. A liberdade é indivisível como a túnica de Cristo. Podem roubá-la mais não a podem dividir. Metade de liberdade não é uma liberdade, é privilégio.”

A – Como economista, Francisco Luís Gomes escreveu três trabalhos de alto valor, que produziram eco em Londres e Paris, sendo apreciado por economistas de nomeado como Stuart Mill, Michel Chevalier e Garnier. A Sociedade dos Economistas de Paris ofereceu-lhe um “fauteuil” distinção que até lá fora concedida apenas a quatro estrangeiros: Gladstone, Mingheti, Stuart Mill e Lobedz.

B – Como historiador e biógrafo, a sua obra em francês “Le Marquis de Pombal – Esquisse de sa vie publique” é um monumento imorredouro à sua elevada noção de historiador, superior visão e belo espírito critico. Com um admirável poder de síntese, Francisco Luís Gomes apreciou nas 377 páginas deste livro a vida portuguesa de 27 anos do Governo de Pombal, nos seus mais diversos aspectos. É considerado ainda hoje o melhor livro que se publicou sobre o grande ministro de D. José, segundo depoimento de escritores como Pinheiro Chagas, Oliveira Martins e Teófilo Bragança.

A – E, finalmente, como escritor e humanista, o romance “Os Brahamanes” ficará para a eternidade não só como o primeiro romance escrito por um goês, mas como uma obra prodigiosa dum grande luminar da nossa terra.

A- O que levou Francisco Luís Gomes a escrever o romance “Brahamanes”? Qual foi o ideal que o norteou na execução dessa obra? Quais as dificuldades que experimentou ao bolar o livro?

B – Revelou o autor da dedicação do livro do “Gazeta de Portugal”, António Augusto Teixeira de Vasconcelos. Eis o que escreveu:

“O livro que ofereço a V. Excia é uma colecção de artigos escritos a lápis e em tudo semelhantes a estes que eu enviava da câmara dos deputados para a tipografia da “Gazeta”, e que V. Excia tinha depois o incómodo de iluminar. O romance, digo-o aqui em segredo, é apenas a forma, o disfarce com que pretendi introduzi-lo nas estantes e obter-lhe pousada mais larga do que é costume conceder aos jornais que aos primeiros raios de sol se derramam por toda a parte mas que em nenhum ficam de assento mais de vinte e quatro horas, quanta luz tinham se lhes apaga, quanto valor possuíam se lhes de deprecia: ei-los confundidos no dia seguinte com as varreduras, e colhendo só desprezos. Sobre esta razão acrescentava-se outra para mim de maior momento: é que o romance tem domínios seus, vastos e exclusivos, e o jornal não pode entrar neles, senão disfarçado, como nos missionários de cristianismo entravam algum dia nas terras dos pagãos. Se pelo mal imitado dos trajes eu não puder lograr o meu fim podem os guarda-barreiras rir-se da minha ousadia, mas peço-lhes que tenham bastante consciência e coração bastante para me respeitar a intenção: que em nobre empresa a que me queda é nobre”

B – E quanto ao ideal que o autor se propunha defender, escreveu ele o que se segue:

C - “É necessário que os princípios da liberdade, igualdade e fraternidade, eternos na sua duração sejam também universais na sua aplicação, que traduzidos em instituições, leis e costumes se estendam por toda a superfície do globo, e penetram até as suas últimas camadas. Só então a regeneração do homem será completa. Proclamando o aqui em voz alta e desejando-o com toda a energia do meu coração, não cuido que seja seduzido por uma miragem social. E que o fosse, mesmo assim eu não ganharia pouco, porque é essa uma das tais utopias benéficas e esplêndidas que despertam com grande poderio o nosso ânimo, que elevam os miseráveis acima dos seus misérias e os afortunados acima do seu egoísmo e transportam a uns e outros às alturas do Sinai, donde só se descortina a bandeira hasteada no cume do Calvário, que é a bandeira da humanidade.”

B – Quanto às dificuldades que encontrou no seu caminho, disse:

“Isto de ser romancista não é cousa fácil como de fora e à primeira vista parece...

Vou pois contar a V. Excia lisamente e com verdade o que me aconteceu ao urdir o enredo deste romance. Criava dois, três, quatro personagens, insuflava-lhes vida, vestia os o melhor que podia, ensinava-lhes gestos e maneiras, depois contemplava-os com inefável prazer e direi mesmo com certo orgulho. Pareciam-me tão belos! Nisto tocava ao almoço, e eu ia almoçar. Não me demorava nem meia hora porque tinha saudades da minha gente.

Voltava, mas Santo Deus, que mudança! Os personagens eram todos feios; os trajes assentavam-lhes como mascarada, e as suas falas sentia-as frias como o gelo. Indignado e cheio de furor, pegava no cutelo e zás, trás, zás, trás, matava tudo. Era horroroso o espectáculo que tinha então diante dos olhos: cabeças decepadas, braços amputados, dedos partidos, sangue, ruínas, vésperas sicilianas, enfim... E só depois que moderei os meus instintos homicidas e agrilhoei os meus braços, é que pude andar e terminar este romance...

A – Qual foi o acolhimento que o mundo literário deu ao romance “Os Brahamanes”? Que disseram dele os escritores portugueses do tempo?

B – Quando o romance saiu, foi acolhido com ovações por escritores da primeira plana.

O grande escritor António Feliciano de Castilho disse dele o seguinte:

D – “Elegância de estilo, vernaculidade de frase, orginalidade de pensamento, facilidade de forma e um dizer sempre simpático e fluente – são qualidades que distinguem esta mimosa produção e que fazem futurar o seu autor uma das mais fulgurantes estrelas da nossa plêiade literária”

B – Pinheiro Chagas, outro escritor de renome, referiu-se desta maneira ao romance do nosso conterrâneo:

D - “O romance não só é um livro bem escrito, mas também é interessante romance. As peripécias complicam-se, o enredo prende a atenção e o estilo fluente, a palavra imaginosa, mostram que o autor soube conservar a virgindade de sua fantasia no meio das lutas parlamentares e de aridez das lucubrações económicas.

As paragens são pintados com mão de mestre. Sente-se que o sr. Francisco Luís Gomes, no meio de civilização europeia, vota sempre e os olhos com profunda saudade para as florestas flagrantíssimas e os ridentíssimos quadros da sua terra natal.

O romance do sr. Gomes é uma soberba estrela e com esse livro desde já o talentoso deputado conquistou um distinto lugar na nata dos nossos romancistas.

B – ‘Le Courier de Lisbonne’ que se propunha tornar conhecidas no estrangeiro as obras primas da literatura portuguesa, traduziu para francês o apreciado romance publicando-o em folheto. Foi posteriormente traduzido do português e publicado por um jornal londino.

Música

A – De que trata, afinal, este tão falado romance? É interessante o seu entrecho? Atraente a narrativa? Vivas as descrições?

B – O Dr Agostinho Fortes apreciou0o abrindo um discurso que fez em Lisboa em 1929 por ocasião do centenário de nascimento de Francisco Luís Gomes.

D – ‘Na realidade não sei que mais admirar em ‘Os Brahmanes’, se a riqueza e o apropriado da linguagem, se o bem delineado e conduzido da acção, se a beleza e magnanimidade dos concertos, se a firme justeza dos caracteres, se a grandiosidade do intuito? Há em os Brahamanes o reflexo da magnificência da Índia, dessa Índia de sonho, dessa Índia do além, dessa Índia tão criadora literariamente que nos deu as duas grandes epopeias Ramaiana e Mahabharata dessa Índia de Shacuntalá, de Sivá o tipo mais idealmente belo e mais inexcedívelmente moral. A acção de “Os Brahamanes” é simples mas grandiosa perpassando nela o tumultuar das paixões e ódios das raças que outros vão há que só lhes assemelhe em intensidade e rancor e o desdém olimpicamente altaneiro das castas superiores dum brahamane por um sudra ou mata ainda por um pária cuja só única vista macula, a alva pureza dimanada do Brahamane. Mas ó consolo das almas bem-formadas, todo este ódio todo este desdém se esboroa e derrete à vez suavíssima da virtude; bem como o rancor que parecia insaciável de Magnod se liquifez à luz quente da grandeza de ânimo de Fr. Francisco, o missionário exemplar que edifica converte.

B – É certo que o romance perdeu hoja a sua actualidade. A Índia de 1969 é o pólo oposto da Índia de 1869. A Índia dum século atrás era um pais decadente, prostrado, crucificado na cruz infame da dominação estrangeira. Mas mesmo então os seus fakirs vaticinavam: “A pátria de Manu, depois de correr como uma moeda às mãos de Alexandre, Tamerlão, Albuquerque, Dupleix e Clive, deve voltar aos seus antigos senhores.”

Levou o largo espaço dum século para se provar verdadeiro o vaticínio. A revolta de 1859 – primeira guerra de independência – foi sufocada pelos ingleses. Referendo-se a ela, uns escassos nove anos depôs, escreveu Francisco Luís Gomes no capitulo 16o do romance:

C – “Os homens imparciais, que fazem questão da liberdade e não das raças, querem a Índia para a Índia, e detestam todos os déspotas, chamem eles nababos ou Cloves. Deve merecer as simpatias da Europa o país que formulou a democracia no jogo de xadrez – o país que formulou a democracia no jogo de xadrez, o pais que cantou com a voz dos anjos as sublimidades do céu e com a voz do rouxinol todas as belezas da terra, no seu poema Mahabharata, verdadeiro Himalaia da literatura.

B – As soluções que Francisco Luís Gomes, na melhor das intenções, propugnara para o renascimento da sua pátria, não se provaram de todo necessárias. A religião cristã e a instrução desempenharam, sim, um papel no ressurgimento do nosso povo. Mas duma forma geral e básica foi o génio imorredouro da nossa cultura ancestral e as potencialidades latentes de nossa raça que se afirmaram mais uma vez. Os séculos 19o e 20o viram gigantes de pensamento e acção como Keihub Chandra Roy, Ramakrisha e Vivekananda, Dedebai Nacraj, e Lokmanya Tilak, Rabrindranath Tagore and Mahatma Gandhi. Subhas Chandra Bose e Jawaharlal Nehru viram estes gigantes surgirem do seu solo e levantarem o país do torpor em que se encontrava. A Índia está hoje livre, e marcha triunfante na senda do progresso.

MÚSICA

C – Escassos três anos haviam decorrido sobre a publicação de “Os Brahamanes” e o seu autor que, como que pressentindo a morte, ia trabalhando sem descanso, sentiu-se exausto e combalido. Os médicos esgotaram todos os seus recursos.

Lembra-se então dos ventos da pátria: “é meu inimigo este doce clima da Europa”, diz, e embarca para a Índia. Mas a Parca cruel atinge-o em pleno Mar Mediterrâneo. A noticia é recebida com sensação e dor nos continentes.

Tomás Ribeiro cantou-lhe assim a glória:

Morres, fugir do sol! Furtar-se à glória
Quem tão mimoso foi dos seus afagos
Quem no abismo sem fim dos sonhos vagos
Passara a vida, a transbordar de luz.

José Rangel - Lactário (1960)

“Deixei vir a mim as criancinhas”
Dorida soluça a Vida:
Almas níveas,
Boquinhas mimosas,
Pálidas de sofrer
À mingua de leite;
Mães chorando
De pungente amargura,
Luto nas almas,
Desespero...

Luz bruxoleante
Ilumina o negrume;
Nasce a esperança
Em corações que sofrem.

Jovens em flor,
Sedentos do Ideal,
Filhos da Ciência
Que arranca a Vida
Dos braços da Morte,
Almas abertas
À dor dos que gemem,
Lutam e criam.

Apoia a humanidade
A cruzada bendita.

Grão de mostarda
Lançado à terra,
Germina e floresce
Em árvore frondosa
Que alimenta e achonchega.

Sorriem as crianças,
Alegram-se as mães,
Ilumina-se o lar,
Eleva-se o mundo...

Palpitam corações
De eterna gratidão.

Jovens altivos,
Ardentes, sonhadores...
Vibrando de alegria,
Estuando de amor.
Vivem uma das horas
Mais belas
Da Vida.

RV Pandit - O Meu Lar (1969)

O fogo é para fogão
Assim sou para a minha casa

Hoje.. aqui
Amanhã acolá
Depois de amanhã?
Deus sabe onde!

Em toda a parte
Onde as cinco essências
Da minha vitalidade
Florescem...

Lá...
Seja dentro do quatro paredes
Seja numa cabana de olas
É o meu lar...

No momento
Em que o pavão da minha mente
Poisa no ramo, no telhado
Onde canta, dança e ri...
A árvore, a canção, a toada
É o meu lar.

Entre o céu e a terra
É o meu lar.

Onde eu estou
Rindo, chorando, iludido
É o meu lar.

Deitei-me fora
É um fogão sem fogo.

Laxmanrao Sardessai - O Mistério Aclara-se (1966)

O mistério aclara-se
E ai vejo definido o meu ideal,
No céu, no mar e na terra
Vejo a mesma mão,
Invisível e misteriosa,
Modelar o destino da humanidade.
No azul do oceano
No verde da terra
A mesma graça vejo
Estender-se na sua simplicidade
E o mistério aclara-se,
E aclara-se o meu espírito,
Confuso perante a difusão
De cores e linhas,
De formas e matéria
E suas infinitas intrincâncias.
Evapora-se a ilusão
E desponta no horizonte,
Vasto e claro,
O sol uno e brilhante,
A dirigir os meus passos
Para a divina realidade!

Nazareno - A Aguadeira (1954)

Ao fundo da sala, propositadamente escolho a cadeira mais apta a proporcionar uma indolência a que lanço reconfortante e lenço o corpo e o espírito na corrente mole que o ar do Café engrossa.

A telefonia conta, em segredos de música, a espalharem mais calor nos nervos, episódios de beleza imaginada – lances arrancados a uma superficialidade brutal que não obriga a pensar.

A esta hora – a tarde nasceu há pouco – a sala deserta intensifica o desejo duma fuga à realidade – cobardia assinalada por um mal estar que, a espaços, me aperta a respiração.

Um quadro de todos os dias que, hoje, repentinamente e sem aviso, resolveu mudar.

Ela apareceu no vazio da porta que dá entrada ao recinto; apareceu e escapou-se, logo, indiferente ao silêncio e à música. Os dois “salões” equilibrados no corpo escanzelado – jogo de braços e quadris – voltou a passar naquele intervalo de paredes onde uma escada se projecta, superior ao esforço da aguadeira, talvez a rir-se dos movimentos caricatos que a subida lhe atira às pernas.

Aquela figura tem séculos de poesia romântica a partirem-lhe os pobres ombros que se aproximam irresistivelmente a quererem fechar o peito que já mal pode gritar. É uma figura de adorno na visão febril dos poetas olheirentos, na sensibilidade esponjosa de lírico impenitentes que andam a medir as noites pelo número de estrelas e a conversar com as fontes que, às vezes, nem água têm o inegável mérito de fornecer material para um soneto recheado de comparações luminosas – para um autêntico soneto!

A mulher continua a passar, a vergastar-me os olhos com a sujidade do sari, a recalcar–me os últimos desejos de indiferença – a impor-me conclusões.

Vergo-me ao peso da sua presença, do cabelo revolto, do rictus de fatalidade que se agarrou àquele fase onde a idade intruja, onde há a marca rebaixada de milhares de horas iguais, na luta a na resig-

(Segue na quarta página)

nação.

Olhou-me – um olhar comprometido – e eu pus na minha expressão todos os efeitos das verdades que se arozam na minha consciência de homem da rua. Fitei-a num grito de compreensão que nunca poderá servir de tema aos poetas olheirentos que andam a medir a noite pelo número de estrelas. Naquele momento, parece-me que cheguei a ser irmão da aguadeira. Talvez, por isso, deitei-me a imaginar os dias que a vida lhe roubou, em negaças, em troços, em desprezo.

De certo, foi bela. De certo, aquele corpo amassado de trabalhos desejou o amor com a ânsia que dá a contemplação da beleza própria. De certo, teve sonhos e ouviu palavras inspiradoras de insónias. Momentos houve em que o seu destino se comprimia nas dimensões dum punho. Tão fácil tudo, tão realizáveis as aspirações dessa mulherzinha de porte virgem e flores na trança. Foram as negaças da vida.

Depois, os primeiros passos na criação dum presente que nunca deu margem a alimentar um futuro. A casa estranha, o homem, a obediência e os filhos. E tudo o mais... numa precipitação de reveses, num conjunto frio que foi anulando o resto de calor que o sangue de dúzia e meia de primaveras ainda aguentava. Foi a vida a troçar.

Hoje, autómata no sofrimento, já nem analisa os factos que mataram os mais queridos desejos, já nem lhe importa a cor do sol que vai nascer. Os músculos empurram-na como se fosse embrulho sujo e inútil que pode cair na primeira sarjeta. Ela é capaz de admitir que nas dobras da sua existência possa andar a ironia da quadratura do círculo.

Torna-se tão igual, nos gestos e no querer, ao cachorro dedicado a coxear das últimas pancadas, que as gentes confundem a falta de posses com o vício do infortúnio. E esmagam-na, cada vez mais. Chegam a dizer que estão a medir toda a extensão da sua cobardia e vão pisando mais forte. É a vida a desprezá-la...

A vida! Feita de milhões de princípios nascidos, mais ou menos, ia estupidez fria dos ambientes humanos que a conveniência gerou. Um montão de hábitos cómodos, riquíssimos de contradições palpitantes que nunca andam nas razões dos sonetos recheados de comparações luminosas.

Visto o problema assim, fica-me a dúvida se a Vida, a verdadeira, a única, não está mais na visão clara e interessada, generosa e irmã, de tudo o que a aguadeira não chegou a ser, que na aceitação distante – e, quando próxima, egoísta, até sádica – daquilo que os homens quiserem que ela fosse.

Ipsilon - A Sorte de uma Batcarina (1963)

Chamava-se D. Isménia e era viúva dum médico muito recorrido e popular, a quem, por isso mesmo talvez, ninguém lhe pagava as visitas. As suas receitas limitavam-se apenas a poções que, com grande resultado, ministrava aos seus doentes, reservando para si o mínimo lucro. Era poupado e chegou a ter umas economias que lhe permitiriam reparar o casebre em que viviam, benfeitorizar o seu minúsculo gorbat e uma várzeazinha.

Quando o marido faleceu os recursos financeiros de D. Isménia limitavam-se apenas às rendas do palmar, duma várzea e de uma dezena de acções de Comunidade.

Como o pardieiro em que vivia, ficava situado num lugar isolado e ela era muito medrosa, teve que sustentar um criado, não porque precisasse dele para qualquer serviço, mas mais para ter sua companhia, pois ninguém a visitava Senão de raro em raro.

A sua alimentação reduzia-se ao arroz e carril e, no dia de festa do orago, trazia um pedacito de carne de porco com o que se banquetavam ela, que era uma velhinha, e o criado que era um latagão.

Apesar de tudo o seu palmarzito era assaltado por gatunos que nem lhe deixavam metade do seu produto; quanto às jacas, não lhe deixavam nem uma e um pé de malcurada de grande estimação da velhinha era alvo das pedradas da garotada, que, quando enxotada, lhe correspondia zombeteiramente arremedando-lhe a voz e o gesto.

A várzea estava arrendada a 7 candis de bate, com o que ficavam satisfeitas as necessidade dela, do criado, de umas 5 galinhas e um porquito, sobejando-lhe ainda o necessário para um pouco de canja e um punhado de arroz a dois pobres que lhe vinham à porta todas as sextas-feiras da semana. Vivia assim a D. Isménia numa miséria feliz.

A certa altura, o criado que se chama Daniel, declarando que estava ao serviço dela há um ano, exigiu aumento de salário, alegando que o que ganhava não lhe permitia usar fatos limpos, aparar o cabelo mentalmente, fumar uns cigarros decentes, etc.

A D. Isménia que não encontrava outro que o subsituísse e também porque tinha ganho uma certa afeição pelo rapaz, condescendeu em lhe elevar o vencimento.

Sucedeu que o Daniel Fosse gostando duma rapariga que, por sua vez, era cortejada por um outro, derrubador, de nome Xavier. Claro está que os dois, quando se encontrassem, ferviam em mútuas raivas. Como Daniel tivesse percebido ser o Xavier que estava roubando os cocos da patroa e querendo desforrar-se, foi no encalço do gatuno e, como era forte, segurou-o e com os cinco cocos que tinha colhido, levou-o ao regedor.

Este, com uma rota em que declarava apanhado em flagrante, remeteu-o por um cabo da Policia ao Mamlatdar, onde o gatuno confessou o furto, declarou que o tinha practicado, obrigado pela fome. Condoído com esta narrativa que o homem soube fazer como emérito comediante, o mamlatdar mandou-o em paz. De volta, Xavier que veio de táxi, queimou abundante foguetório à porta de D. Isménia.

Quando foi da colheita da sua várzea, em vez de 7 candis de bate que devia receber, o arrendatário convidou-a a assistir à colheita e deu-lhe apenas 2 candis e 12 curós que representava a sexta parte da produção e mal chegavam para a alimentação do criado.

Por outro lado, as Comunidades onde tinha acções com a renda dos quaid, acrescidas com as receitas do palmar, pretendia pagar o salário do criado, teve o desgosto de saber que estavam deficitárias e não davam renda alguma. Para se manter, teve de recorrer ao expediente de dúvidas.

Por acaso, o marido de D. Isménia tratara, numa doença grave, um pobretão, que,

(segue na 4a. Página)

em testemunho da sua infinita gratidão, lhe pediu para ser padrinho da sua criança, primogénita que nasceria dali a meses, após 10 anos de casado.

Passados 15 anos, o padrinho abanara ao afilhado, já órfão do pai, passagem para o Golfo Pérsico, donde este voltara rico. Foi justamente a este que Dona Isménia recorreu num dos seus momentos aflitivos. O afilhado do marido concordou em lhe dar o empréstimo solicitado, alegando ter mourejado 25 anos em terras inóspitas, mediante o juro de 10% ao ano e hipoteca geral tde tudo quanto ela possuísse, sem outras formalidades.

O contrato foi por um escrito legalizado pela maneira actual, sem intervenção notarial.

Como o dinheiro assim obtido, D. Isménia pôde satisfazer os vencimentos atrasados do criados e teve de se alimentar com chá e uma fatia do pão, com o que, dentro em pouco, a sua saúde se tornou precária.

Certo dia, como o criado tivesse notado que D. Isménia não saíra ainda do quarto a horas em que constumava ir para a Missa, chamou-a discretamente da porta do seu quarto e, como ela não desse acordo, entrou e viu que continuava estendida no seu canapé, sem sinal de vida.

Correu apressadamente à casa do médico que verificou o cadáver e deu como causa da morte a inanição; pois a velhinha não tivera nem pão nem chá nas últimas 24 horas.