Monday 25 June 2012

Maria de Luz Mendes - Goenchim Tornattim (1965)

Dois jovens, um rapaz e uma menina, dos seus 20 anos, entram no autocarro em Cortalim.

Ele, com o nó da gravata impecáel, colarinho engomado, casaco de terline e calças de dacron, senta-se logo atrás do motorista. Ela, magrita, olhos azuis, blusa branca sem decotes exagerados, saia verde, toda perfumada e sorridente, toma o seu assento também, ao lado do seu companheiro mas em fileira diferente. Pela conversa deixam ver que foram alunos do Liceu e estudam agora no College.

Logo depois de entrar entabolam o seguinte diálogo:

Zecas: Boas-Tardes, Marina! Onde estiveste hoje?

Marina – Estive em Panjim para visitar uma prima.

Zecas: Então que novidades?

Marina – Novidades da China e do Paquistão que não nos deixam dormir em paz.

Zecas – Então não leste o artigo “Goenche Toratte”?

Marina – Li-o sim, com prazer.

Zecas – Porque dizes “com prazer”. O autor faz má língua e quer destruir esta belíssima agremiação.

Marina – Oh! Não! O autor o que quer é que ela se organize devidamente, com um programa bem feito e corpos dirigentes bem escolhidos. E nada mais. Não malsines as intenções do autor.

Zecas – Parece que sabes quem é o autor e gostas dele pois que estás a louvá-lo.

Marina - Não tenho a honra de conhecer o autor, não sei se é branco ou preto, alto ou baixo, usa bigodes ou não. De facto não queiras malsinar as intenções nem as minhas nem as do autor. Sei muito bem que há maldizentes por aí fora que criticam tudo e todos. Por sim e por não. Estou realmente interessada em que se leve avante esta organização, cuja necessidade, principalmente nos tempos que correm, é premente e manifesta.

Zecas – Estás então tão interessada nesta agremia.

Marina – Não só eu estou, mas ainda associações pan-indianas estão e tanto é que um jovem distinto, candidato aos Serviços Diplomáticos Indianos, após frequentes visitas a Delhi e confabulações com os deuses do Olimpo, tentou, com a máximo tacto e diplomacia, convencer a recém-nascida agremiação a fundir-se com uma associação pan-indiana.

Zecas – Qual foi o resultado dessas tentativas?

Marina – Parece que se achou bastante prematuro entrar na apreciação das ponderadas e sensatas sugestões do ilustre proponente.

Zecas – Mas tu, tens sugestões a fazer?

Marina – Pois tenho.

Zecas – Vais então expô-las?

Marina – Além de outros pontos, ocorre-me agora o da separação em duas secções diferentes para rapazes e meninas ou duas agremiações com o nome de Goenche Tornatte e Goenchim Tornattim. Talvez não concordes com este meu ponto de vista.

Zecas – Permite-me ser franco. Realmente não perfilho o teu ponto de vista que me parece outdated, dos tempos dos nossos avós. Nestes tempos não há diferença de sexo em nenhuma parte e portanto o perigo em que pensavam os nossos antepassados é fantástico.

Marina – (rindo-se, às gargalhadas) Ora viva! Já acabou a diferença dos sexos? Uma novidade de truz! Disseram em tempos que os russos tinham inventado o processo de mudar o sexo e não igualar ou eliminar o sexo! Olha: até agora estou seguindo a orientação dum Padre que foi meu professor do Liceu.

Zecas – Padre? Deve ser um tipo velho que não sabe nada do que vai pelo mundo moderno. Naturalmente usava sotaina preta e estava agarrado às suas velhas ideias, como a ostra à concha.

Marina – Padre velho? Não. Era novinho em folha, usava batina, branquinha e perfurmada, tazia cabelo bem penteado, separado por um risco e escrevia na Imprensa sobre os problemas modernos de palpitante interesse. Velho? Não. Era novo em ideia e em orientação.

Zecas – Os padres e as madres, velhos ou novos, são sempre assim: não podem suportar que um rapaz fale a uma menina a sós, que rapazes e meninas se comisturem em qualquer parte, na escola ou na praia, na rua ou no Clube. Eles são solteiras e pensam que todo o mundo deve viver na lua.

Marina – Não exovalhas precipitadamente – para não dizer estupidamente – os padres e as freiras. Certo é que há um e outro padre, uma e outra freira outdated. Mas felizmente muito elemento entre padres e freiras é up to date, com uma cultura geral e sólida. Mas não é só por causa do meu professor padre que eu penso deste modo. Também a minha madrinha que é médica pela Faculdade de Medecina de Londres e portanto viu o mundo, e é quem dirige a minha educação, é da mesma opinião. Se bem que nós assistimos sempre a todas as festas do Clube.

Zecas – Olha, deixa as opiniões dos padres, das madres e das madrinhas. Até a Igreja Católica está mudando a sua orientação. Os últimos dois Papas revolucionarm toda a doutrina. Ainda o birth-control artificial será permitido pela Igreja daqui a nada.

Marina – Boa lembrança. Falaste na Igreja Católica. Ela tembém tem agremiações mas com secções diferentes para um e outro sexo. O Apostolado da Oração, a Acção Católica, a Legião de Maria etc. têm não só grupos separados mas ainda dirigentes diferentes. Quanto ao birth-control, o actual Papa realmente tinha dito que ia dar a sua opinião nesta matéria melindrosa logo depois de ouvir uma Comissão Especial e até agora... a decisão não veio. É porque é díficil de mudar a orientação, até agora seguida pela Igreja nesta matéria.

Zecas – Mas, se tudo está em evolução, como estás, Marina, com ideias tão anacrónicas? Não compreendo bem a tua estagnação mental...

Marina – Se tudo está em evolução, Zecas, como continuas a respeitar o teu pai e obedecer-lhe? Como continuas a fazer o bem e evitar o mal? Tanto o respeito aos pais como o principio de fazer o bem e afastar-se do mal são máximas tão antigas como a própria humanidade. Alija-as, pois, quanto antes o vai evolucionando, vai revolucionando...

Zecas – Estás, pois, uma filósofa?

Marina – E porquê não! Estudei filosofia no Liceu e aplico-a na vida prática. Mas não é só a Filosofia que me leva a pensar daquele modo/

Zecas – Tens então mais razões?

Marina – Tenho as certamente. A minha dignidade de mulhar leva-me a sacudir toda a espécie de canga. O que os rapazes hão-de fazer nesta agremiação é escolher, por formalidade, uma ou outra menina para os corpos gerentes e o resto açambarcarão nas suas mãos. Quero completa independência para o meu sexo feminino. Também, se as minhas informações não falham, a juventude universitária inglesa feminina tem as suas associações e partidos distintos e separados.

Zecas – Não, os rapazes não queremos negar a igualdade de direitos e a independência de procedimento. Mas vai ouvindo. Onde há comisturação de sexos, há maior afluência, maior alegria e maior rendimento de trabalho e portanto a força do partido é máxima.

Marina – Estás redondamente enganado. Onde os dois sexos se reúnem, com certeza a assistência é maior, o entusiasmo é mais forte mas a produção do trabalho é fraquíssima, pois que passam todo o tempo em conversas amenas e brincadeiras fúteis. Não só é isso. Pode haver perigo para a moralidade.

Zecas- Se cada um souber controlar, não há perigo nenhum para a moralidade.

Marina – “Se cada um souber controlar”, devias dizer “se cada um puder controlar”. O controle nem sempre é fácil. Segundo um adágio chinês, para que haja uma explosão basta que a pólvora e o fogo estejam perto; não é necessário contacto físico. Nós temos de evitar todas as ocasiões que possam pôr em perigo a nossa seriedade.

Zecas – Parece que estás com ideias antiquadas. Pois a vida não é para gozar? O sexo feminino não se destina a ser objecto de luxo e prazer para o sexo masculino?

Marina – Ó Zecas! Ofendes-me sem querer. A mulher não é objecto de luxo e de gozo para o homem. Os dois são iguais em tudo, devendo auxiliar-se mutuamente. A diferença de sexos existe e tem de ser respeitada quem se preza de ser inteligente.

Zecas – Realmente, não quis ofender-te, Marina. Desculpa-me a falta involuntária. Repeti apenas o que ouvi dizer aos meus companheiros do Liceu e do College.

Marina – Companheiros do Liceu e do College? Também eu ouvi a mesma ária mas corajosamente combati-a com razões de toda a ordem, principalmente as que acabei de expor.

Zecas – Neste diálogo, Marina, ao mesmo tempo que eu falava, ia meditando também e analisando com os meus botões as tuas respostas e sugestões. Cheguei à conclusão de que tu tens toda a razão e penitencio-me dos erros que por muito tempo alimentei e hoje se desfizeram como bolas de sabão. Acho que “Goenhe Tornatte” deve ter duas secções distintas: uma para rapazes e outra para meninas. É claro que não devem alhear-se ou indispor-se. O trabalho deve ser paralelo. Os resultados serão felizes e o sucesso garantido.

Até então o autocarro que, com as suas diferentes paragens durante o percurso, deu tempo bastante para esta longa conversa, chegou à praça de Margão onde “him dhog Goenchim Tornattim” apertaram as mãos e se despediram dizendo:

- Bye-bye. Oxalá a tua madrinha te arranje um Meritíssimo Magistrado para a vida...

- Bye-bye. Queira Deus que encontres um genuíno sweetheart para tua cara metade.

Estas palavras que os transeuntes ouviram enternecidos, a brisa da tarde espalhou-as pela praça como aroma inebriante.

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