Tuesday, 31 May 2011

Adolfo Alcântara Vás - Quem dá aos pobres (1962)

Já lá vão anos…! Nem posso saber quantos eles são, porque eu vivia ainda no… mundo dos possíveis. Morava numa aldeia um indivíduo de nome Shricanta. Possuía pequenos campos de cultura que herdara dos seus antepassados. As rendas que usufruía destas terrinhas davam-lhe o suficiente para viver com a sua mulher e filhos, sem as preocupações que criam no lar uma atmosfera de mal estar e desarmonia.

Shricanta era, a um tempo, honesto e caritativo. A pesar de modesto no seu viver, sem dinheiro para dar ou emprestar, nunca pessoa alguma que tivesse recorrido à sua generosidade voltara com as mãos a abanar. Efectivamente, era grande o número de infelizes e desprotegidos da fortuna que estorvavam o seu sossego. De tal maneira esta coorte de famintos importunava o bom homem que Shricanta, muitas vezes, fazendo falta ao seus, lhes dava tudo quando pudesse e sempre a mãos cheias. A sua cara metade não via com bons olhos a excessiva generosidade de Shricanta. Porém, o seu espírito compassivo não se estancava perante as lamúrias da sua mulher, nem a coscuvilhice dos vizinhos que se riam dele à socapa. Pois o seu coração de oiro derretia-se em amabilidades para acudir, como bom pai e bom vizinho, à miséria do próximo e a pobreza envergonhada dos seus coaldeanos.

O soberano daquela terra, conhecedor destas belas qualidades destas belas qualidades de Shircanta, sobretudo da sua impoluta honestidade e fidelidade inconcussa, convidou-o para o cargo de dizimeiro. Nesta sua qualidade, Shricanta obrigava-se a entrar todos os anos com a importância de oitenta laques de rupias no cofre do Estado, cobrando para tanto dos seus proprietários o onzenários a décima parte da sua renda que se chamava dízimo.

Era este o sistema de cobrança em vigor entre os governos antigos.

Como dizimeiro do Estado, Shricanta tinha as casas recheadas de: arroz, areca, castanha... sei eu lá que mais! Tinha, além disso, cofres à prova de fogo, onde vinha guardando o produto da cobrança, da venda das cotas partes das produções que ia arrecadando.

A casa de Shricanta era agora uma das mais abastadas da região, não faltando bois, cavalos, burros e mais serviçais encarregados de transporte, de secagem e de armazenagem dos produtos arrecadados.

Nesta sua vida desafogada, Shricanta não se entregara ao vício de beber, jogar, nem fumar; e podia-se dizer dele, como outrora diziam do Imperador Tito: “Delícia do Género Humano”.

A sua virtude era dar de comer a quem tivesse fome e vestir a quem tivesse fome e vestir os nus e esta sua generosidade chegara a tal ponto que estes mesmos infelizes, a quem o bom do homem socorria nas suas aflições nunca lhes negando coisa nenhuma, abusavam destas suas boas qualidades do seu espírito compassivo e Shricanta não só lhes dava o que era do seu, mas ainda não hesitava em dar o que pertencia ao Estado o que era da sua responsabilidade.

Talvez o próprio Rei do Universo, para ver até que ponto ia a generosidade do nosso bom homem, fez com que houvesse no reino uma situação anormal: houve falta de chuva. Os campos onde se lançara a semente: tornaram-se secos, apresentando gretas.

Dias após passavam e as chuvas não apareciam. O vento seco que soprava fez crestar as plântulas sem mais esperança de uma grão sequer. Em toda a parte reinava a fome e a desolação e a população sôfrega e ociosa não se fartava de pedinchar a Shricanta bagos de arroz da colheita do ano anterior, para não morrer à fome. Mesmo os animais não tinham feno e os bois, quer por falta de água, quer por falta de ervas, mugiam de fome e de sede. E então Shricanta a todos ia satisfazendo o pedido, nunca pensando no dia de amanhã.

Famílias e mais famílias consumiam os seus bem providos celeiros assim como a última moeda dos seus cofres.

Chegara assim o último dia em que Shricanta tinha de encontrar com oitenta laques à boca do cofre do Estado. Não tinha nada, ainda no seu cofre particular aliás sempre bem repleto. Mesmo algumas jóias da sua mulher tinham sido vendidas e outras empenhadas para acudir aos famintos. No transe em que se encontrava, ninguém lhe podia valer. E o bom do homem, por não ter satisfeito os seus compromissos no dia aprazado, no meio da escolta armada foi conduzido à prisão. Convencia-se o réu que o dizimeiro não era aldrabão. Havia gente que compartilhava na sua dor e outros que cochichavam entre si sobre a situação criada pelo nosso dizimeiro. Mas dura lex sed lex.

Tinha de ser cumprida a lei e Shricanta com o seu sangue frio, sem o menor vislumbre de descontentamento, decide-se a cumprir não só a pena de prisão mais ainda outra mais grave que o rei entendesse dever aplicar-lhe. Vê, porém, com indignação, na contrariedade e depressão do espírito por que passa, aqueles mesmos que estendiam a aba da sua túnica para uma côdea de pão ou punhado de arroz afastarem-se dele.

É assim o mundo. Existem homens que reconhecem os favores recebidos e outros que os pagam com a ingratidão. Mas não há bem que não tenha a sua recompensa. E esta, cedo ou tarde, vem do Altíssimo que sempre acolheu com carinho as pessoas de bem. Em recompensa da generosidade sem limites de Shricanta, um milionário da terra vizinha, que ouvira a triste história, disfarçado em camponês, vinha até a tesouraria do Estado depor um cheque de oitenta laques que Shricanta tinha de pagar. Não só isto, os seus celeiros estavam outra vez cheios e o rei da terra, maravilhado com as cenas que passavam, mandava pôr em liberdade o pobre Shricanta, que dali em diante, viveu anos felizes com a sua mulher e filhos, reconhecendo sempre a magnanimidade do seu benfeitor desconhecido.

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