Através dos tempos imemoriais aquelas extensas várzeas ao longo da margem direita do rio Sal nunca produziram além duma espiga ao ano. As terras eram férteis na sua grande totalidade, mas a produção de arroz era muito fraca por causa dos métodos obsoletos empregados no seu amanho. Os agricultores nunca conheceram as vantagens dos adubos genuínos. E, assim, de geração em geração, a rotina se manteve sem sofrer qualquer alteração.
Tudo dependia da monção. Quando ela chegasse nos fins de Maio, os corações dos agricultores regogitavam de alegria. Havia azáfama em todo o povoado porque se ia lançar a semente à terra e em breve os celeiros novamente se encheriam de grãos de oiro.
A maioria das várzeas eram propriedades particulares e estavam arrendadas. Poucos proprietários as cultivavam directamente. Os filhos dos batcarás tinham vergonha de cultivar as terras dos seus antepassados e como tal preferiam arrendá-las aos antigos manducares. As rendas que estas pagavam eram exorbitantes. Nunca, porém, protestaram contra elas. Diziam eles que nem sempre podia continuar este estado de coisas e preferiam fazer sacrifícios no presente. Num ano a monção foi um verdadeiro fracasso. A produção de arroz nem chegou a compensar os trabalhos de amanho e monda. Perante esta catástrophe os agricultores reclamaram. Exigiram uma pequena redução nas rendas. O pedido não foi atentido pelos proprietários e os agricultores tiveram de contentar-se com a sua sorte.
Estava-se no mês de Maio – época em que toda a população se dedica ao trabalho das terras. Foi então que chegou a notícia do regresso de Eddie. Ninguém acreditava nela. Eddie, quando estivera pela última vez na aldeia, despedira-se da sua família e amigos para sempre. Toda a gente sabia que Malú chorara a partida do seu amigo – que nunca mais voltaria a vê-lo. Como é que, ele agora tinha voltado? Ninguém, ninguém mesmo na várzea dava ouvidos à notícia.
Mas logo à noitinha a nova foi confirmada por Manuel na taberna do tio Santana, que vira a filha de Maria Josefa a transportar a bagagem de Eddie. Em face desta confirmação todos se calaram e pouco depois a taberna estava deserta.
No dia seguinte, Francisco foi o primeiro que se avistou com Eddie. Estava ansioso por saber se de facto este vira nas terras longíquas do norte.
Francisco era um jovem agricultor completamente agarrado à terra que os seus pais tinham cultivado, mais de meio século. Vivia esperançoso de um dia vir a ser o senhor da mesma porque, dizia, tinha sacrificado tudo por ela. Queria adquiri-la mas faltavam-lhe recursos. E quando surgia a questão do dinheiro o seu sonho desvanecia-se. Perguntava-se muitas vezes “onde vou arranjar o dinheiro?...”
Eddie voltara encantado de Batinda. Durante a sua estadia de quase um ano vira com os seus próprios olhos como o esforço colectivo podia operar milagres. Efectivamente, Batinda era um “milagre humano”. Estradas novas, bibliotecas, dispensários, tinham sido contruidos graças a trabalho voluntário. A indústria e a agricultura, esta em especial, haviam sofrido transformações radicais graças aos novos métodos de cultura. A construção do “tube-well” – ao qual o povo chamava “poço mágico” – revolucionara totalmente a vida do agricultor de Batinda. Já não tinha de esperar pela monção para lançar a semente á terra. Os dias negros pertenciam ao passado. Tinha agora água de fartura e, pela primeira vez, as terras de Batinda produziam a segunda espiga.
Francisco, que seguira com vivo entusiamso a descrição, não podendo conter-se, perguntou:
- Então porque não se há-de tentar o mesmo na nossa aldeia? Afinal o povo não é o mesmo em toda a parte?
Eddie encolheu os ombros e ia a responder quando novamente foi interrompido por Francisco que lhe disse: “havemos de repetir a experiência de Batinda.”
À noite, na taberna do tio Santana, Francisco contou a seus amigos a conversa que tiveram com Eddie. Ninguém o levou a sério. Mas Francisco insistiu nas vantagens que adviriam da construção do “poço mágico”. Duplicaria a produção – argumentava – e qualquer dia estariam todos em condições de comprar as terras que cultivavam. Saíram da taberna quase à meia noite, mas ninguém apoiava o plano de Francisco.
Duas semanas após o seu regresso, Eddie tomou a resolução final: não voltaria mais à capital. Decidira auxiliar o pai na cultura das várzeas. Esta decisão confiou-a Eddie a seu amigo Francisco que pulou de alegria. Agora sim – dizia – havemos de construir o “poço mágico”.
No entanto, a monção novamente foi caprichosa. Os agricultores estavam alarmados. Mais um ano de seca por certo – era a convicção geral. O fracasso da monção convenceu-os da utilidade do plano de Francisco e, um dia, todos se reuniram em casa de Eddie. Os agricultores desejavam saber quanto seria o custo da construção do “poço mágico”. Eddie desdobrou o ante-projecto. O poço custaria seis mil rupias, a compra do motor eléctrico três mil rupias e a montagem mais umas centenas. Total dez mil rupias. Reinou completo silêncio entre os agricultores. Francisco fez-se pálido. Onde iriam arranjar esses milhares de rupias? Todos eles estavam endividados.
Eddie sentiu-se atrapalhado perante o silêncio dos agricultores. Não sabia o que devia fazer. Pôs-se a enrolar e desenrolar o papel que tinha nas mãos. Francisco quebrou o silêncio. “Se pedíssemos um empréstimo à Caixa Económica?” - perguntou. Um dos outros avançou e pôs a rídiculo a ideia. Como é que iam adquirir esse empréstimo, sob que garantia? Todos eles não tinham mais que meia dúzia de cabeças de gado. E a ideia do empréstimo foi posta de parte por não ser viável.
A reunião ia encerrar-se quando Eddie se levantou e disse: “Em menos de uma semana havemos de saber se levaremos avante ou não o nosso plano”. Os agricultores saíram cabisbaixos – pessimistas.
Efectivamente, alguns dias depois Eddie foi à taberna do tio Santana. Estavam ali Francisco e os restantes. Ficaram surpreendidos com a visita inesperada. Eddie dirigiu-se-lhes: “Tenho uma grande nova a dar-vos. O poço vai ser construído à minha custa”. O poço... o “poço mágico” – gaguejava o Francisco, de alegria. E nessa noite os homens beberam até de madrugada para celebrarem o começo da nova era...
A notícia da construção do poço corre pela aldeia. Em toda a parte se falava da experiência de Batinda, mas os cépticos diziam: “cada terra com seu uso e cada rosa com seu fuso”. O cepticismo, porém, foi dando, pouso a pouso, lugar à guerra fria. Os mal intencionados procuravam matar a ideia à nascença. Serviram-se de todos os meios – até de cartas anónimas.
Entrementes, os preparativos da construção do poço iam adiantados. O técnico era esperado em breve. O material, incluindo o motor, já se encontrava no porto de Mormugão, aguardando que fossem ultimadas e algumas formalidades burocráticas.
Oito meses após aquela reunião em casa de Eddie deu-se início à obra. Os trabalhos decorriam lentos mas com segurança. O entusiasmo entre os agricultores atingia o rubro. Aguardavam o grande dia em que a água surgisse do poço e inundasse todas aquelas vázeas. Ao lado do poço fora preparado o terreno para a construção da granja onde seriam ensaiadas novas sementes.
Em menos de meses aquelas extensas várzeas tinham um outro aspecto. O poço dominava-as, enquanto pequeninos canais de cimento armado estavam quase prontos a distribuir a água por toda a parte.
Enfim o grande dia chegou. Na véspera o técnico elimara as ligeiras deficiências que notara na montagem do motor e estava certo de que tudo correria sem nenhum incidente. A inauguração do poço tinha sido marcada para a noite. Na granja foi erecto um pavilhão que estava feericamente com bicos de luzes multicores. Não houve discursos nem foguetes. Uma garota simpáticas, filha dum agricultor, premiu uma mola e a água começou a subir lentamente e pouco de depois lançou-se pelos canaizinhos. O silêncio que se fizera quebrou-se e a imensa mole de gente deu largas à sua alegria... O entusiasmo popular era indescritível Dançou-se e cantou-se até às primeiras horas da madrugada.
Francisco disse a Eddie qualquer coisa sobre a água que sorria para aquelas várzeas. Falou também da terra e da vida do povo. O outro, porém, não o escutou: estava triste no meio daquela alegria espontânea porque entre tanta gente não via a mulher que amava...
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