Monday 23 December 2013

Walfrido Antão - Cartas de Goa para o Brasil: Meu Irmão Brasileiro (1968)


Eu não te conhecia ainda. É certo que havia lido alguma coisa sobre o outro lado do Atlântico, do Corcovado onde se não me engano o Cardeal Gonçalves Cerejeira aliás douto homem de letras inaugurou há anos um monumento a Cristo. Gertúlio Vargas e a sua revolução era tema de conversa entre estudantes do Liceu dos anos 1950 ávidos de folhear o “Cruzeiro” e a última página de Raquel de Queiroz. Porém foi mais tarde que a realidade brasileira se anunciou ou revelou duma forma trágica, grandiosa e humana. A Selva de Ferreira de Castro com toda a sua pujança deu-nos a imagem naturalíssima dos Seringueiros, das plantações de borracha, de homens e animais em cio igualados pelo mais raso condicionalismo factual da Natureza e das condições da vida. José Lins do Rego do romance São Bernardo de Pureza levou-nos até o Nordeste onde os mesmos problemas universais como os do trabalho, pio, sangue, sexo e lágrimas recebem uma nova dimensão, um novo estilo literário. O grande Jorge Amado da Gabriela, Cravo e Canela, do Jubiabá herói negro de noivas negras e mulatas amando livremente no areal e junto às docas onde marinheiros louros compravam em moeda estrangeira corpos virgens de noivas virgens, veio mais tarde. Manuel Bandeira, o maior poeta do Brasil moderno trouxe-nos aqueles versos que nunca mais esquecem: “Amanhã que é dia de finados/Vai ao cemitério/Leva três rosas bem bonitas/Ajoelha e reza uma oração/Não pelo pai/Mas pelo filho/Que o filho tem precisão/O que resta de mim na vida é a amargura do que sofri.”
Eu sei, meu irmão brasileiro, que o Atlântico é imenso e pesado como um sonho (segue na 4a página) poético de duas pátrias. A mesma natureza tropical, até as mesmas variedades de frutas como a manga ou o caju. Foi no Brasil que ficou a descansar na mão direita de Deus como diz o Santo Antero uma das maiores inteligências de Goa, sua voz mais eloquente, seu perfil mais romântico, sua ânsia de cientista e microbiologista de renome internacional Froilano de Melo. Froilano de Melo, que após a morte de Gandhi afirmou na Assembleia Nacional que “era um herói que havia elevado o culto da revolução até a culminância da santidade”, jaz esquecido hoje nesta terra que segundo o dizer do poeta Manuel Maria Barbosa du Bocage será “ingrata madrasta de poetas”. Os medíocres há-os bastantes. Ah! É verdade, já me ia esquecendo desse prosador intimo, lírico, confessional de A Volta do Gato Preto: Érico Veríssimo, Veríssimo que nos entusiasmou quando da sua visita a Lisboa em busca de raízes do seu próprio passado, explicou-nos no Teatro D. Maria o problema dos modernos da literatura brasileira: “Nós não queremos imitar o modelo europeu da ficção. Porém, isso não quer dizer que as correntes modernas do surrealismo e do antiromance não tenham adeptos.”
Muita e variada é a vida, dizia D. Francisco Manuel de Melo. A vida é feita de mudanças. Mais do que nunca é necessário hoje o diálogo. Quem sabe, camarada existencial, se a tua pátria não seria um elo de um viver universal sem limitações da geografia e de dados políticos? Por enquanto, meu irmão brasileiro, apertemos as mãos sobre o Atlântico como um símbolo desesperado de compreensão e solidariedade humanas.

Walfrido Antão - Crónica de Raízes: Cem Flores e Treze Abrolhos ou Carmo da Silva Contestando a Desistência (1976)

“Sexo não pode ser o único objectivo de celibato (eunuco): através do sexo pode-se alcançar “eternal bliss”, “communion with the Divine”, é uma fase de celibacy”

Acharya Bhagawan Rayneesh (Poona), Book of Secrets

“Quando dizemos Testemunha de Verdade, não abrangemos o jornalista ou homem de letras – esses vivem sua verdade particular de emoção, raciocínio, inspiração que não é propriamente divina como por exemplo quando falamos do amor horizontal, a necessidade biológica, a verdade da Mulher”

Poeta da Aldeia

“O heroísmo nasce exactamente por causa das fraquezas humanas. Entenda-me, estou falando do celibato. O que eu contesto é a desistência quando já se assumiu o compromisso. O argumento existencial de circunstâncias como a ignorância do conhecimento da Mulher é falso – eles conhecem meninas nas férias, nos casórios. E justificação póstuma. Há duas soluções – individual, de sim ou sopas, a outra “to make the best out of a bad situation”

Carmo da Silva ao natural.

Há muito que perdi o hábito do “outro”, o “other is hell” (Jean Paul Sartre). Bastava-me a solidão vivencial povoada de personagens buscando autenticidade na minha pena de dor e de criação. Após um dia de trabalho ficava-me o longo silêncio do coqueiral retendo ao cair da tarde a luminosidade quente da imagem de uma mulher desnudada, os livros amados de um Krishnamurty ou de um Redol, o viver simples da gente da aldeia onde os demónios nem era velhos e seriam quando muito “mitos”, criações fantasmagóricas. Na aldeia não havia o “parecer ser sincero”, era-se sincero e pronto. Autenticidade garante-se a si mesma: não precisa dos goles de Feny que aparecem agora na prosa de neo-literatos da Tiróide curada. Autenticidade e o inferno do “outro” meu camarada operário inferiam comigo, buliam-me a alma. Mas o “outro da sotaina, dialéctico da sabatina, divisional e complicado, esse, gostaria não ter nada com ele. Quase sem jornais, contavam-me amigos, da polémica de agrónomos de leitoas e que tinha aparecido na coluna de graças do Pe. Agnelo (a fé simples, fé ingénua de um Junqueiro, pode bem dar-se o caso de um individuo ter leitoas como esteio económico e na aflição ia cada qual pedir o que lhe manda a boa e inocente fé dos humildes, felizmente sem tiróide e sem acesso ao Secretariat, como Jesuítas ou a alguma paroquia rendosa) e um frei Anastásio de santa e honrada virtude que, segundo os amigos, estava a perder o seu latim, seu estudo e oração dos textos e espírito de renovação com brincalhões da “sueca de bem” de “meninos bem” de polpa untada que estavam “pulling the leg”, na expressão dos menos sérios. Literatura de engorda de suínos não me interesssava. Até passei por alto aquele tão clamoroso publicitar de um suposto beijo carismático entre um padre e uma freira, sempre convicto de que “Renovação” e “Carismático” devem ser assunto de especialidade de teólogos, aliás familiares desde os exames para o Confessionário das mais horrendas aberrações sexuais. Se é beijo biológico, activador do sexo , ou é carismático, lá falará a consciência de cada qual, e não havia nada que publicitar uma anomalia da gente goesa. E assim, alheio ao “outro”, lá ia passando meus dias quando aconteceu esse acontecer tão antigo como natural de encontraram-se dois filhos da mesma aldeia. “Get exposed, malleable, and the journalist will get the best of it”, as palavras de Roy da Universidade de Osmania, Haiderabade, ainda me batiam nos ouvidos. E lá fui ouvindo.

Na casa rústica, oh ia de flores, Carmo Silva ainda conserva aquele tique romano que trouxe da Europa. Brinca-lhe nas mãos um cão de luxo, fiel e devoto de seu dono, como só os animais podem ser. A “Cassete” e a voz de Judas: “You believe, Jesus, what you say”. Carmo Silva fala-me de Londres, da representação de Jesus Christ Super Star, do teatro e assim chegamos ao Concani, às diferenças entre um Dalgado e um Mariano Saldanha, quanto sabe aquele Dr. Azevedo. A voz de Madalena é triste e cheia de cansaço na noite de martírio e agonia com Jesus “Let this world go on” já me não lembra os versos nem a malícia dos que não sabem Arte. Carmo Silva traz-me uma merenda tropical goesa e na varanda tropical própria para um clima como o nosso, falo do problema do Homem quando Sacerdote. Tem o raciocínio seco e vibrante, como certos mármores de intelecto bem trabalhado. Evita comprometer-se. Mas há uma gentileza na sua voz, fruto de quem há muito vive o drama de vocações. “Não contesto, não, o direito de cada individuo determinar sua vocação – pode deixar a Igreja. Contesto sim a desistência quando se assumiu um compromisso, e como me dizia um distinto Advogado, essa desistência traz desânimo aos leigos. O argumento de que os sacerdotes quando estudantes do Seminário não conhecem meninas raparigas, é falso e eles têm bastantes oportunidades de conhecê-las nas férias, nos casórios, nas Conferências Vicentinas. Se encontram uma hoje, amanhã terão outra, e então o que se teve em vista, não foi o sexo feminino mas outra coisa.”

A noite vai carregando de sombras as rosas do jardim de Carmo Silva. Pergunto-lhe o que pensa de uma entrevista no “Free Press” em 1970 “no Seminário a minha opção foi sem conhecimento da Mulher, hoje as circunstâncias mudaram, logo a minha opção não é a mesma, à base do pensamento existencialista”. Carmo Silva responde: “sei quem fala, foi meu aluno, um homem de convicções, hoje uma opção. Uma mulher, amanhã outra e assim por diante”. Porém, o sacerdote, Professor e Monsenhor, foge sempre do concreto, especialmente quando lhe falo do entusiasmo de sacerdotes jovens que “não são eunucos” (parecer ser é diferente, entende, leitor amigo) e seria falta de caridade não compreender o drama de capelanias solitárias sem uma companheira que partilhasse as alegrias e tristezas de uma missão sagrada. “Cada um deve com a graça divina fazer “the best out of a bad situation”.

Perdi a tarde, sim, ainda nos ficou por acabar como ele sincroniza a Arquidiocese e o Padroado, as bulas de um Papa Leão, que a hora já não permite. “Era desta gama de intelecto que se deviam coroar Bispos”. Ouço um vagabundo que foi poeta em concani falar sozinho na rua. De quem falava só Deus sabe.

O “outro” de “sotaina” não é tão alheio como eu pensava – pode-se perfeitamente viver com o “outro”, meu camarada operário de Deus. Era uma vez cem flores e treze abrolhos.

Laxmanrao Sardessai - A Sua Fortuna (1965)

Um fidalgo – desses que ainda pululam -,
Resíduo dos velhos tempos,
Vocifera furioso e gesticula...
Parece antes um orador demagogo!
Acerco-me dele: “Never! Never!”
- “De que se trata, amigo?”
- “A Pátria está em perigo!
É um problema de morte e vida.
Goa não é uma fatia
Para avidamente ser engolida!
Never! Never! Goa is ours!
Goa é uma pedra preciosa
Nunca irá para nas garras do agressor!
Quero uma Goa separada e livre!”
(E o homem solta aqui um urro.)
“Que saibam para sempre: Somos guerreiros,
Setecentos mil homens irão para a frente”
Palavras vibrantes! Gestos heróicos!
- “Tens fortuna?”
- “Pensas então que sou um vagabundo?”
E olha. Milionários, como eu,
Aos milhares estão decididos
A sacrificar vidas e famílias.
Morreremos todos; homens e mulheres!”
- “Amigo! Que é da fortuna?
Venha ela primeiro,
Que depois virá a morte,
Se for preciso,
É sacrifício extremo! E a vida
É mais preciosa do que a fortuna.
Venha ela primeiro,
Se queres salvar a terra.”
O homem torna-se, de súbito, pálido,
Como se fosse no coração ferido
E, coçando a cabeça, confuso,
Furtivamente vira as costas
E se safa titubeando:
- “Até à vista!”
O pobretão, sem gastar nada,
Quer alcançar tudo!

A Dias - Diário de Um Esquizofrénico (no date)

O meu vizinho Fabião tido por esquizofrénico na opinião do seu médico, constitui para mim um engano. No meu conceito, se é que ele sofre de esquizofrénico, nos momentos lúcidos, disserta como um filósofo cínico. O homem, de quando em vez, vem importunar-me com as suas arengas e, eu, dado o meu feitio complacente, não tenho coragem de o sacudir. Ontem, o sujeito caiu-me em casa como um rato, à hora da minha habitual sesta e, em tom sentencioso, dispara-me à queima-roupa esta diatribe: Olha, meu caro, a nossa religião conhecida como católica, apostólica, romana já não merece tal denominação.

- Que queres tu dizer com isto, perguntei-lhe em tom de enfado.

- É isso mesmo, retorquiu categórico o meu interlocutor. Ela está a descambar a olhos vistos. Por este andar não sei aonde vamos...

- Não compreendo patavina do que dizes, respondi enfiado.

- Ai não comprendes, meu pacóvio? Se tens olhos de ver, atenta bem no que se passa em nossa volta. Tudo anda em bolandas.

Cada qual mede as coisas pela sua craveira mental a fazer tábua rasa de normas preestabelicidas que nos serviam de base para a nossa conduta religiosa. O pior é que ninguém se entende neste babel.

- Estás cada vez mais intrincado com os teus paradoxos. Troca isso por miúdo, retorqui embuchado.

- Tinha-te na conta de mais atilado. Mas já que não és capaz de atinar com o que te digo, serei mais explícito. Então vês como um bom sector de sacerdotes tidos por dirigentes da religião são responsáveis pela desorientação que vem criando na mente dos fieis? Pondo de remissa o espírito de revolta e insubordinação aberta de alguns deles contra a autoridade estabelecida a constituir pedra de escândalo aos fieis, proponho-me falar desta feita apenas da febre de inovações que tem atacado muitos deles que se julgam com direito de amoldar a liturgia tradicional às suas idiossincrasias. Cito apenas um exemplo para ilustrar a minha asserção. Esses conspícuos sacerdotes, arvorando-se em reformadores religiosos, andam empenhados em introduzir no ceremonial da missa e de outros actos de culto externo, o ritual do hinduísmo. Esses pseudoreformadores invocam razões especiosas da necessidade de adaptação da nossa religião ao meio ambiente, que se convencionou chamar indianização da Igreja Mas que adaptação tão objecta essa de macaquear o ritualismo hindu. Chamar-se-ia com mais propriedade hinduização da Igreja porque metem lá unicamente o ceremonial hindu, esquecendo-se ou fingindo esquecer-se para os seus fins, de que há na Índia mais religiões que deviam contar também. Mas não! Para eles só conta o hinduísmo. Já tenho visto algures com estes meus olhos que a terra há-de comer um dia, sacerdotes católicos a celebrar a missa sentados no chão, penas atravessa; uma estola ou coisa que o valha, pendente do pescoço a substituir a tradicional casulo; velas substituídas por diulis, a símile dos que se usam das devalaias; agarbatis plantados em volta a fumegar em vez do nosso aromático incenso; os fieis sentados à frente do sacerdote com pernas cruzadas e, para coroar a burlesca cena, uma galante donzela a bailar graciosamente em torno do celebrante, ao ritmo de cânticos a estilo hindu, com acompanhamento de murdanga, à guisa de devadassis ou bailadeiras na linguagem vulgar – tudo, em suma, um arremedo caricato do ceremonial hindu... Não acabou. Vai já para poucos anos, na igreja de um convento religioso, armaram um presépio por ocasião do Natal, consoante a arte hindu onde o pobre do S. José cingia um dothi na cintura, kurtá no tronco e rumal a cabeça enquanto a Virgem Maria convergando um sari à moda hindu ostentava um notém no nariz e painzan nas pernas.

Santana Francisco Pinto - Divórcio Americano (1976)

Entrei no favorito restaurante
Farto de trabalhar, muito cansado,
E disse em voz alta a um criado –
“Café e jornal” – “Há nova interessante”

E o garçon serviçal, todo ofegante,
Entrega-me o jornal amarrotado:
E eu deixo meu chapéu velho ao lado
Com ânsia de ver a pagina elegante.

Afinal, tão almejada e ilustre dama
De renome social e tanta fama
Com certeza devia ser casada.

Mas foi para mim súbita surpresa
Saber que tão gentil, ávida presa
Estava plenamente divorciada.

Walfrido Antão - Diálogo: A Morte e a Vida ou um Bilhete a uma Maria Enfermeira (1967)

Vai tarde este bilhetinho. Devia ir pelo Natal. Mas antes tarde do que nunca. O problema importante é o do sentimento, de verdade, de gratidão. E assim ele lá vai com votos por que 1968 lhe traga alguma justiça nos direitos que lhe assistem na sua nobre e humanitaríssima missão, menos pesadelos e coragem para lutar. E rosas. Muitas rosas para tornar a vida alegre.

Vive hora alta de glória a Escola Médica de Goa onde meu saudoso pai ganharia ciência e luz para lutar em Cabo Verde e no Brasil contra a malária e outras epidemias e nesta hora de saudosas evocações ninguém melhor do que a Enfermeira sabe o segredo dessa escola – médicos que com vencimentos modestos não regatearam sacrifícios para salvar vidas, a ciência e competência desses heróis anónimos da Dor que não papagueiam fórmulas importadas do anglo-saxão em naus coloniais, a intuição, enfim o que em certa gíria se chama “faro clínico”. Todo o mundo de ciência desde Clínica até Cirurgia.

E tu, boa e carinhosa Enfermeira, lá ficasta a veste alva, as mãos desinfectadas, um certo carinho no olhar, o compromisso da Dor, uma picadela sem vontade e mais que uma palavra, muitas palavras de consolação. Por vezes soro, outras vezes comprimido, às vezes uma noite de vigília à cabeceira de quem vive a catalepsia (segue na 2a pagina) de uma difteria ou o coma de um trombose, enfim trabalhos de uma parturiente.

A vida corria lá fora, sorria-te quem sabe um convite de uma amiga. Porque ficavas? Qual a razão da tua permanência junto à cama No.43 ou No.27? Não podias como é moda agora misturar dois caolinos? Não podias arranjar uma saída com um soporífero? Não. Era outra tua formação, outra a Escola onde havias formado, outros valores, outra ética profissional.

Haviam-te ensinado mestres como Froilano de Melo e outras que ser Enfermeira é ser Irmã de Dor. E por isso lá ficavas lutando contra a Morte tão absurda enquanto a Vida florai lá fora sem pecado e sem peias.

Tinhas uma missão e cumpriste-a com zelo de uma missionária, devoção de uma crente e a graça de Mulher.

Missão, qual missão agora? E as promoções que tardam, as escalas denegadas, os horários para certas privilegiadas, diz alguém na mesa ao lado (ai, a minha mesa do café como eu gosto dela – tão agreste tão irregular como um sonho desbastado ao luar). O vizinho ao lado fala como num monologo e as palavras sabem a verdade.

A história que vou contar é antiga. Éramos estudantes e quase com um pé na Europa. Amadeu escrevia uma crónica para o Natal com a pena criando à cabeceira do seu filho doente no Hospital. E se não me falha a memoria, ele falava também de ti, Enfermeira ou Irmã da Dor.

Passaram anos, o mundo alterou as coordenadas geográficas e éticas e a Escola Médica de Goa que tantos heróis da Dor criou vai completar 125 anos. Heróis não do “Digest”, das súmulas da Anatomia ou da pílula da Psicologia (o que saberão eles de um Freud, de um Jung, de um Charcot, de um Negrão Pardo nosso amigo do Brasil de quem tive a honra de fazer uma crónica?) mas do Homem Integral situado na doença ou na terapêutica.

Vai esta já longa. Que continuas a tua missão seja qual for a posição do catavento, são votos do Ano Novo de Antão.

Thursday 5 September 2013

Clímaco Sequeira - Índia (1952)

A S. Exia. O Ministro do Ultramar, Com. Sarmento Rodrigues, sincero e verdadeiro Amigo da Índia, que, em visita official, pisa hoje o solo da Índia Portuguesa.

Índia minha, terra amada
Por Deus dos Céus abençoada
E por dons da Natureza
Galhardamente dotada
De um céu azul cristalino,
Que tanta beleza encerra.
E de encantes sedutores
Que não há em outra terra...

Índia, meu berço querido,
O meu bem e o meu tesouro,
Que eu respeito e mesmo adoro
Mais do que o mais puro ouro.
Terra da lírica loto,
De zaiôs e de mogarins,
Que são muito mais cheirosos
Do que os cheirosos jasmins...

Terra da esbelta palmeira,
Que, altiva, ao céu se levanta,
Onde a gralha exercita
E o moruoni tão bem canta
De um sol luzente e forte
Que a seara amarelece,
E de um luar meigo e ameno
De que o povo se envaidece...
Terra de águas serpenteantes,
De ricas e limpas fontes,
Descendo em sinuosas linhas
Dos altos e grandes montes
De Ganges e Bramaputra,
Do Sidnate e Tollsanzor,
Do Himalaia e Mandovi
E do eterno Dud-Sagor...

Terra dos heróicos guerreiros,
De bonzos e de ascetas,
De mártires e de santos,
De filósofos e poetas
De Gandhi e de Tagore,
De José Vás e de Gomes,
De Mendonça e de Naidu
E de muitos outros nomes...

Terra do “Código” e Leis
E de puranas as medas,
De Ramaiana e Mahabharata
E celebérrimos Vedas
Velho templo de Ciência,
Que irradiaste a todo o mundo
Centelhas de Sapiência...

Terra de imensas riquezas,
De portos e feitorias,
Com empenho demandade
À busca de especiarias,
Índia antiga e lendária,
De grandíssima extensão,
Onde se disse situar
O reino de Prestes João...

Terra rica e apetecida,
De vasta e enorme fama,
Que, há séculos, descobriu
O grande Vasco da Gama,
Que, passando ignotos mares,
Uma página imortal,
Acrescentou, com orgulho,
À História de Portugal...

Terra intrépida e aguerrida
Que foste, enfim, conquistada
Por terríbil Albuquerque,
Guerreiro de nomeada:
O qual deixou no teu seio
Em lembrança que se atiça,
O exemplo de Rectidão
A verdadeira Justiça...

Índia, minha terra amada,
Exulta, pais de alegria!
Sim, de alegria exulta
Neste belo e feliz dia:
Pois que recebes visita
Do teu amigo Sarmento
Que te traz de Portugal
O Fraterno Sentimento.

Thursday 29 August 2013

Mário Cabral e Sá - As Chuvas Vieram (1968)

De súbito, porém há muito desejado, em preces silentes, em ladainhas desafinadas, as chuvas vieram. Pelos tectos de colmo dos gaddés de Diyar entrou água primeiro aos pingos, logo uma cascata, empapando o chão de terra batida, apodrecendo as enxergas, molhando a roupa no fio, enferrujando as malas de lata com seu conteúdo amarrotado – fato de ir ver a Deus aos Domingos e dias santificados, para dia de festa em casa do compadre e funeral da consogra.

Ao Motês, filho de Lorçú, irmão de Gospú, não podia acontecer coisa molher. Veio a chuva era ainda dia – quatro da tarde pelo relógio do escrivão Esvonta, três e meia hora local. E, sol posto, estava ele, como de costume, ponto assinado e copo na mão, dissertando para seus irmãos de alma presentes na taberna do Vicente, sobre o futuro risonho que há séculos lhe faz negaças. E sonharam todos eles, e beberam todos eles à saúde de seus sonhos, com uma ânsia dos diabos, com uma fúria maluca dos diabos de preservar em fenim de conserva de taberna do Vicente suas esperanças megalómanos de uma boa colheita, de filhos na universidade de Gaspar Dias, de uma casa de pedra e cimento de Carlota com anéis dos dedos embalando sua velhice numa cadeira de balanço de sissó envernizada pelo Roguvira, como as havia em casa dos Ranjeis.

O ano passado foi um ano como os não houve há muito. Obras de Deus, que tudo pode e faz que quer. E (segue na 4a pagina) contra a vontade de Deus que pode Motes, irmão de Gospú? Que pôde se pai Lorçú? O avô de Lorçú? Que poderá o filho de Motes? Nem Motês o sabe, que casamento e mortalha, como o presente dos pobres e futuro dos ricos no céu se arquitectam – no Céu como quem diz, que a miséria pegada em casa do Domingos, e a sorte negra da filha do Caitú só o diabo, só o diabo seria capaz de espalhar.

Que poderá o filho de Motes? Pensa Xambá que conhece a resposta. Pedaço de granito talhado à pressa, os pés chatos esparramados, seu pai nascera em Carambolim, a mãe nunca a conheceu, que o fiel mucadão como seu fora, mudar de mulheres era privilégio concedido pelos senhores da Casa Grande. Xambá fala. Mas quando fala que o oiçam. Como a ouviram não há muito quando pôs a calva à mostra ao regedor da freguesia, à tarde, diante de toda a gente. Se o prenderam por subversivo isso é o menos, que o prazer de dizer alto e bom som o que lhes ia na alma e na cabeça nem cabos Duartes nem sipaios Silvas foram capazes de desmanchar, nem a sopapo, nem a palmatoada.

Pois pensa Xambá que conhece a resposta. Leva-me pelos trilhos de sua vida a um punhado de casebres. Mulheres em desalinho calam a tabefe a fome de meninos que em vão buscam leite em tetas ressequidas. No lamaçal à frente dos casebres de addsó chafurdam búfalos ossudos e crianças de barriga inchada. “É o que poderá fazer o filho de Motês” diz-me Xambá, “engordar os búfalos, de inchar estas crianças. Quando o fizer, não será de lama e de milho. Será uma estrada, de brito, e asfalto, como a que passa pela casa dos Sás, como a que vai passar pela casa dos Costas. Então seremos outra gente. Os caminhos da vida se abrirão diante de nós e os da morte já não serão tantos à nossa volta.

Nos interiores dos casebres mães em desalinho continuam a sovar filhos meninos. E cá fora búfalos magrizelas e rapazes de barrigas inchadas lavam no lamaçal mágoas de sues destinos.

Joseph Barros - A Poesia Indo-Portuguesa (1953)

Índia…! Berço da civilização ariana que deu ao mundo novas luzes e novas directrizes, novos horizontes e novos ambientes nos vários ramos do saber humano. A raça ariana, talvez a mais distinta raça do mundo em grande cabedal e legou a humanidade um riquíssimo património cultural que desafiando a voragem devoradora do tempo vai-se asseverando cada vez mais nos pergaminhos das letras e ciências.

A Índia legou ao mundo filósofos de renome internacional como Swami Vivekananda e Radakrishna, teólogos como Shenkaracharia, Mabavira e Jeina, legistas como Kantila, poetas como Kalidasa e Tagore, cientistas com Raman e Abbé Faria e ascetas como Ramdas, Pe. Agnelo e Pe. José Vaz.

É na pitoresca região da Índia Ocidental, conhecida nos compêndios de geografia de antanho como Gomantak, a actual Goa, que se vê na sua plena e áurea exuberância a realização concreta do sonho doirado do grande nobelista Tagore – a fusão entre o oriente e ocidente.

Goa, esse cobiçado Jardim de Malabar à beira-mar plantado é o elo entre o Oriente e Ocidente ou antes um ponto de fusão entre a cultura Ocidental e Oriental.

A Índia bafejou o sopro benéfico do Ociente. Ele deu-nos humanistas como Annie Besant e Ronald Ross, longuistas como Pe. Maffei, missionários como S. Francisco Xavier, poetas como Kipling e Tomás Ribeiro, o fundador do Instituto Vasco da Gama, guerreiros como Duarte Pacheco e estadistas como William Bentine e Afonso de Albuquerque.

Um visitante estrangeiro a quem tivemos a honra de entrevistar declarou-nos mais ou menos o seguinte: “you are a lucky people... In Goa we meet the East and the West – a supreme synthesis of both. Here we do not know which is East and which is West, only a harmonious blend.”

Mais provavelmente o erudito visitante e escritor referia-se ao celebre aforismo do seu ilustre conterrâneo o poeta inglês Rudyard Kipling que anos atrás por um fatal equivoco escrevera no seu Ballad of East and West:

“Oh East is East
And West is West
And never the twain
Shall meet.
Till Earth and Sky
Stand presently at
God’s great judgement seat”

À Goa cabe a glória de ser o ponto de encontro dessas duas culturas – a “Suprema Síntese”, a “harmoniosa fusão” – que o nosso entrevistado, o novelista Evelyn Waugh, a classificou como tal. Evidentemente como algures afirmou o Sr. Dr. Wolfango da Silva, somente os “homens de mesquinhos horizontes mal compreendem que não existe na Natureza o Oriente nem o Ocidente. Se partirmos do paralelo em que estamos, caminhando na sua direcção, cairemos sempre no Oriente ou no Ocidente. Deus fez este mundo redondo para nele nos encontrarmos e nos conhecermos. É por isso que vemos Goethe cantar as glórias do Xacuntalá e Max Müller meditar por entre os gelos da sua região os esplendores radiantes da Índia...

Ao contacto da civilização europeia esta grande península ressurge e não sei se voltará ao padrão antigo de esplendor e glória de uma raça sublime que ninguém sabe donde surgiu e desapareceu para sempre deixando-nos legados preciosos que constituem a admiração de todas as civilizações

Da fusão do Oriente com o Ocidente apareceu em Goa a cultura indo-portuguesa. A poesia luso-indiana a que Ethel Pope na sua obra “Índia in Portuguese Literature” se refere em termos de grande apreço, é o resultado benefíco do intercâmbio de duas culturas – a Oriental e a Ocidental.

Ethel Pope cita os nomes dos poetas goeses tais como Nascimento Mendonça, Paulino Dias, Mariano Gracias e outros como exemplos típicos desta fusão cultural e classifica as suas composições poéticas como “Indo-Portuguese” ou Luso-Indianas.

Damos neste artigo uma breve resenha de algumas das composições literárias dos nossos importantes poetas luso-indianos.

Parece-nos que Nascimento Mendonça é o “maior poeta” indo-português e Vatsalá é sem dúvida a sua melhor composição literária. Esse poema parece ter sido influenciado pelo drama Shakuntalá de Kalidasa. Vatsalá usa quase os mesmos enredos para apossar-se do Rixi como a Manika no caso de Vismamitra.

Vatsalá, a formosa bailadeira dos seus vinte anos, cheia de jóias e de guisos lança um olhar lânguido e voluptuoso a um Rixi semi-nu e louca de amor e exclama”

“Que delírio me abrasa
Os seios palpitantes?
Rompeste como um sol
Na noite que não finda
Ó lúbrica visão divina...
Mas que importa?...
Sou moça e sou formosa ainda.”

E aproximando-se do Rixi que parecia estar sentado sereno, gélido e imutável, ajoelha-se de repente soluçando:

“Eis-me enfim a teus pés,
Suave e peregrina...
De perfumes undi
Meu corpo de rainha
E venho por teu beijo ardente
Que alucina.
Eu sou como uma deusa,
A teu lado sozinha,
E lembra o meu olhar
A tímida chitela,
Sob os meus pés exulta
Ainda a erva daninha

Bem sei que tu és casto;
E não vês que sou bela?
No meu será
Como o rei triunfante
Que nunca teme a dar,
Porque pode esquecê-la.

Sou a torre-do-sonho,
Airosa e luciolante,
O retiro de amor
Das almas doridas,
Engrinalda-se ao ver-me
A alma soluçante.

Mas só por ti deixei,
Como as ranins vencidas,
Meu leito de rubis
E de astros cravejado.

A airosa e luciolante Vatsalá ergue-se do chão como a flor de champak, volteia como o moruoni e diz:

Abre o teu coração
Como um cofre inviolado,
Onde nunca fulgiu
O luar das quimeras,
Puro e sereno
Como as virgens sem pecado.

Ai! Deixa-me cingir-te
Tal como as verdes heras
O tronco da palmeira,
A tua carne dura,
Eu sou a graça,
O viço, a luz das primaveras.

O enredo recrudesce. Vatsalá apossa-se do Rixi; mas a sua felicidade tem pouca dura. A vítima é arrebatada pela Morte. Vatsalá segue o caminho de Sati e une-se ao Rixi na pira fúnebre.

Mais um outro poema cheio de graça e beleza é o Hino a Prithivi onde o poeta canta um hino enternecido a Terra Bendita, berço de Visvacarma, Budha e Dante:

Mas o poeta não esquece que esse Prithivi, que ele tanto ama, é ao mesmo tempo um Calvário e um Paraíso, um berço de fadas amorosas e ao mesmo tempo um covil de tigres e hienas:

Terra – Calvário e Paraíso,
Lodo que a luz volve em arminho
Flor que beijo e lama que piso,
Terra, sepulcro e berço.
Terra, bendita Mãe das Rosas,
Do rubro cacto e as açucenas,
Berço de fadas amorosas
Covil de tigres e hienas!

Se em tuas urzes, venenosa,
Silva a Cobra do Mal e a Dor,
Também a Flor pura e formosa
Nasce em teu seio criador.

O poeta termina o hino a Prithivi num tom de optimismo. O seu coração embora dilacerado e dorido sente os lampejos da Eternidade:

Sejas bendita eternamente
Tu que és Calvário-Paraíso
Filha do sol aurifulgente
Flor que beijo, lama que piso.

Um outro poeta indo-português de destaque é Mariano Gracias que em verdes anos revelara os seus dons poéticos. Abalou para a Metrópole aos 24 anos, onde passou bom tempo da sua vida. Algumas das suas mais importantes publicações são: Alto Mar, Agonia, Missal de um Crente, Regresso ao Lar e Poentes.

Quase em todos os seus trabalhos, Mariano Gracias procurou interpretar a vida segundo as normas e formas da filosofia indiana. A sua poesia demonstra larga erudição e um profundo conchecimento da cosmogonia indiana. Daí o Génio da Raça:

Foi a Índia de luz berço lendário
Da civilização. Extraordinário
Pais de sonho e lenda! Um povo ideal,
De imenso génio e altíssima moral.

Terra de sábios, de imortais postas,
Filósofos, videntes e os ascetas,
Walmiki, Somadeva, Kalidasa
Budha, Manu, Panini e Wyasse.

E foi este clarão grande e profundo
Onde de oiro rolando sobre o mundo
Que alagou com a sua claridade
As vindouras nações – A Humanidade.

Durante a sua estadia em Coimbra o nosso poeta levou uma vida muito agitada. Deixou gravado no Penedo da Saudade em Coimbra essas maviosas quadras:

Ó Noitadas de Coimbra
Ó Pálidas Madrugadas,
No meu peito ainda timbra
O choro das guitarradas
Coimbra, tenho saudade
Do choupal erguido além
Do Penedo da Saudade
Saudades tenho também.

Nas “Nossas Almas”, o poeta revela a sua firme e inabalável convicção na existência duma vida futura. Não discute mas crê porque a razão é estreita e o mortal não pode desvendar os mistérios do Além:

Ninguém sabe explicar das almas o destino,
Ninguém pode seguir o seu giro fatal,
A razão é estreita e o olhar pequenino,
O mortal não desvenda o enigma do Imortal.

Inconsciente sempre em louco desatino,
Ah! Quanta alma percorre uma longa espiral.
E quanta já desceu com consciência e tino,
As fulvas espirais concêntricas do Mal.
E as que subiram já...
E as que sobem agora...
A que azul, a que céu,
A que mundo, a que aurora
Elas foram parar, elas irão poder.

Errantes sempre em
Seus longos giros fatais,
Nossas almas irmãs,
Nossas almas iguais,
Noutra vida melhor
Ainda se hão-de encontrar.

O outro poeta que também não podemos deixar de mencionar é Paulino Dias cuja trajectória poética deixou rastos luminosos na poesia indo-portuguesa. Dotado dum espírito culto como Tennyson e cheio de entusiamso como Byron a sua poesia reveste-se de esplendor sensual e místico. Na Prece a Vittala o poeta exprime a sua inquietação:

Vi de longe a tua forma
Vi de longe... e que foi na minha alma
Calma...
Vem por mim correndo Vittala.

Fiz a ablução sagrada em Bivari
Vesti a faixa rala, e reverente,
Crente...
Eu vi o teu devoto Pundolica.
Fui com ele.. Vittala... Santifica
A minha eterna devoção por ti.

Entrei no teu pagode, ahi... ahi...
Onde está tua imagem pura... linda...
Ainda...
Não estou consolada, satisfeita,
Vem correndo Vittala...
No meu peito vasa uma doce
Adoração por ti.
Chegou cançada e triste a Pandarpur.
Que formas que eu passei por todas eras
Feras...
Tu dá-me a redenção, dá-me o descanso;
Nos Yugas e nos mundos eu me canso
E não encontro nada além de ti.
Vem para mim oh caçador...
Acode, salva-me Vittala
Eu deixo só minha esperança em ti.

A prece a Vittala termina em uma nota de optimismo que é um bálsamo para as chagas recônditas da alma. O poeta nutre a esperança duma vida melhor e crê no raiar duma era nova.

É bem vasta a galeria dos poetas indo-portugueses que enriqueceram o nosso património cultural com os seus inúmeros e multifacetados trabalhos poéticos.

Não nos é possível mencionar neste artigo todos os poetas indo-portugueses que moldando duma maneira encantadora e maravilhosa a bela língua do Camões legaram ao mundo de letras a poesia indo-portuguesa.

Laxmanrao Sardessai - Os Nossos Rios (1966)

Deixa-me cantar, amigo, esses rios,
Vastos e profundos,
Como correntes de amor
Que saem de corações maternos,
Rios que encerram o peixe,
Alimento de todos os dias,
Rios abundantes e generosos,
Quais mãos divinas,
Embarcações ligeiras,
Dançam no cristal do seu seio,
Quais brinquedos queridos
Dos nossos netinhos.
Rios que nos transportam
Ao mundo de sonhos e ilusões
E dão às suas margens
O frescor eterno que alimenta
As nossas mimosas palmeiras.
Deixa-me cantar, amigo, esses rios
Onde na infância nos banhámos
E, sentados nas canoas, cantámos...
Lançando redes e anzóis.
Rios que correm
Nos nossos corações e nossas veias.
Rios profundos e vastos,
Sempre bordados de plantas graciosas.
Deixa-me cantar esses rios
Que nos transportam
Brisas de amor e mistério
E que embalam no seu seio,
Transparente e belo
Astros distantes dos céus.
Amigo, deixa-me cantar esses rios
Cuja alma sinto em mim
Crescer... Crescer...!

Laxmanrao Sardessai - Sou um Mistério (1966)

Sou um mistério
Porque ainda não me conheço,
O que sou, não sei, nem os outros
Às vezes, tenho rasgos de bondade
Às vezes, sou desumano.
Balouço entre os extremos...
Há dias em que, qual criança,
Ando todo optimista.
Vejo, em minha vida, só a alegria
Inebriante de sensações novas.
Mas há dias em que me cerca
A procela de desespero
Que não deixa transparecer nos homens
Indícios leves de bondade
Vejo o mundo revolto de vaidades
E paixões vis e ódios mesquinhos.

Sunday 11 August 2013

Walfrido Antão - Páginas Íntimas (de um diário por escrever): Meu claustro de Angústia ou Vida a partir da Morte (1981)

À Memória do Meu Irmão Celso Antão

Ao longo de Creta (1965) – Grécia

“Meditar sobre a Vida – a Vida em relação à Morte, é talvez nada mais do que intensificar a sua própria busca.

Mas a Morte, tal como se manifesta em tudo quanto está alem do controle do homem, acima de tudo o Irremediável, o sentido de que você nunca sabe o que aquilo é. O homem torna-se objecto de uma Busca e não de Revelação. Assim o Homem que irão encontrar neste Livro de Memória é o Homem desperto às Perguntas que a Morte levanta sob o sentido do Mundo.

André Malraux (Anti-Memoires)

“Mon ame vers d’affreux naufrages appareille”

Claudel

“Rage, Rage against the dying of the Light”

Dylan Thomas (da Idade do Ultraje)

“A Morte é a Opção final, o encontro com a interioridade, a realização pessoal em Cristo como Caminho, Verdade e única vida”

de Teólogos moderados editados por Michael J Taylor.

Não gostaria publicar estas páginas intimas mas eu e o leitor do “O Heraldo” conhecemo-nos mutuamente há já vinte anos e na Autenticidade e Sinceridade do depoimento pessoal crio páginas de Intimidade. Foi aos 25 de de Julho de 1951 que morreu o meu Pai e o leitor dirá “quê tenho a ver com isso?” mas nada no mundo acontece, especialmente no domínio da vida e Literatura, que não tenha um sentido, um simbolismo de Prece. Eu vi na morte do meu Pai o primeiro desengano da Permanência, a luz vibrante do coqueiral esmorecendo na sombra do velório, a primeira pergunta, a primeira Busca que as velas, o abraço apertado, o dobre a finados, até mesmo as lágrimas, não podiam cumprir, satisfazer. Magos, dor, Desengano da separação tudo me cobria na negra noite funeral, mas a Busca, essa havia começado. Sem a Busca de uma Ideia que se me não definia por ser confusa, seria a Busca de um distracção com um curso, um Diploma, um emprego capital e Exploração da mais valia, segurança social para anos meus ou a Busca de mim próprio “esse esperança em busca de vida”, como me declamava uma noite o grande poeta negro de mães e filhos negros Agostinho Neto. Uma noite em Lisboa, Costa Dias deu-me a ler o Manifesto de Marx – era aí que estava a ideia, a Utopia, o antídoto do Desengano, da Magoa e da Dor. Passaram anos, a longa noite de opressão e da revolta e em Alfama Berta Cardoso e Tristão da Silva cantavam na “Nau Catarineta” a opção da Liberdade. Com Sartre e Albert Camus não havia que esperar muito – o mundo e a linguagem eram Absurdos. Camus morrendo absurdamente num desastre de automóvel havia deixado incompleto o itinerário da Morte. A pergunta continuava.

Voltei à Índia, o espaço aberto da Competição “homem lobo do homem”, o quebrar de amarras de um sentir e de um viver plácido sim, mas digno e humano, a vida aos baldões da Sorte do “cais de pedra” de todas as solicitações, apelos e convites – mas a Morte, vista, vivida, sofrida até o desespero sem lágrimas, cântico lúgubre do Fim, esssa não esperava me colhesse a Afeição mais cara que a Vida me havia oferecido. Porque, meu Deus, tão cedo?

Ao cair da tarde de 31 de Janeiro de 81, da minha janela virada para o mar, janela que mais não uso porque nem o Mar nem a longa duna de AREIA tem hoje qualquer apelo, senti o carro avançar como um ladrão na noite escura. A mangueira sem flor sob a cacimba era como um último baluarte de gerações que ao longo de séculos haviam criado filhos missionários devotos da Imaculada Conceição, juristas e jornalistas, médicos e homens de lavoura – HOMENS COM RAÍZES. No aparelho, a cassete “não me pergunteis o Nome ou a Hora”, o carro avança, uma duas pancadas leves, um JOVEM e mais logo um homem de meia idade. “Notícias? Sim – não mais existe”.

Sob a fotografia, a Marte fala da Vida – não choro porque não posso.

Morreu algo dentro de mim de novo, após 30 anos. Em 1951, a Busca, em 1981, o encontro com Higher Power, um Deus que não sei definir, mas viveu comigo na noite integral a queda, a solidão a vida de um irmão “que podia ser e não foi” (José Régio).

Passaram já quatro meses e não voltei à minha janela virada para o mar. Talvez não voltarei mais. Moças guapas em saias de cambraia desnudando a coxa em manhas de Pesca ainda vão às dunas de Areia até o mar, tractores levam AREIA populares pedem-me que volte à causa da Justiça da OPRESSÃO dos MINING LEASES não registados e não completos. MAS a vida matou em mim essa esperança de Permanência. Situada aquém do coval enxuto de lágrimas e de flores, eu vejo da janela estreita do cemitério a ilusão desfeita, a vida interrompida, o nome riscado do rol dos vivos, o pó primevo de retorno às raízes da aldeia.

Sou homem, sinto como um humano, mas quando penso em Cristo eu vejo a única Vida de Luz e de Glória. Quem morre com Cristo, quem vive todos os dias a obrigatoriedade de um ofício ou de querer bem aos outros, esse não morre – vive uma nova dimensão de energia transformada “meu Pai tem muitas mansões” (Cristo). O Absurdo ficou em mim, fui e a perder, mas em Cristo a Vida renovou-se, tornou-se parte da Resurreição, “não choreis por ele, mas por quem fica, eles tem mais precisão” (adaptado de Manuel Bandeira, Brasil).

As chuvas voltaram como a primeira bênção de um Deus Natureza a um povo maltratante por políticos que mais pensam na cadeira do PODER do que em fornecer fertilizantes e sementes aos agricultores em devido tempo, a vida em busca de satisfação das necessidades mais básicas. Vida e energia, uma oferenda de Deus retribuída em 30 anos de trabalho e devoção à Família e Vida intuída mas não realizada no sentido essencial. Mas a Morte é final. Volto a ler Rig VEDA – “And I am Death...”

“I am Death that snatches all. And the source of all that shall be born; And the silence of things secret”

A vida vivida, sofrida até exaustão face a Morte. Recuso o Absurdo, opto, escolho, digo Não logo existo. Aceito a vontade de Deus e creio que há muitas mansões na casa do senhor. Talvez amanhã, da janela do Cemitério da aldeia, a vida volte a renascer das cinzas. Talvez amanhã eu conheça a vontado do meu Higher Power.

Walfrido Antão - Diário de um Poeta em Férias: O Sonho e a Nausea (1968)

Esta noite choveu granizo na aldeia. Será? Não. Deve ser cacimba mas a aldeia traz um ar levado, fresco, loução como o de certa mulher ainda inocente. Lembra-me certas sequencias do filme “La notti bianchi” (Noites brancas) de Dino de Laurentes. “Noites Brancas” era se não me engano o título dum romance de Dostoiewsky que Dino de Laurentis usou para fazer ciente ao mundo o talento e a Arte da atriz Maria Scholl.

Leio um poema de Jagadish intitulado “Ek Git Morta”. Há música, sensibilidade, intuição artística no seu verso. “Kavi” é poeta em Concanim. Será Jagadish poeta? Nem por sombras pensar o contrário. O caso do “Kavi” ou poeta lembra-me uma noite na Casa de Fados em Alfama. Berta Cardoso cantava “Aquele amor foi à Índia”. Tristão da Silva apresenta-me um escolar de Coimbra – Pinheiro ou Torres, não me lembra já. Alto, espadúado, “machakaz” como se dizia lá. Grosso como diria uma certa Nur Jehan que eu conheçø. A poesia e o físico. E acrescentava Tristão da Silva que ele era poeta. E ele sabia o que dizia porque era Artista também. Ser artista é ter coração, sangue, alma, nervos, sensibilidade e um grande amor ao homem condenado à Morte.

A Morte, essa sim é a única certeza existencial. Daí o absurdo, o desespero, a angústia e o “l’homme revolté” de que fala Albert Camus. A escolha vem depois. O “choisir” de que difere um Sartre. Como “Camus” diz ao abrir tragicamente “Le Mythe de Sysiphe” – “o único problema verdadeiramente filosófico é o do suicídio”. Como dizia uma vez Camus no Café Deux Magots, se o homem tem de morrer após uma vida inteira de trabalho, de estudo de cultura, então já não existem valores. Vale vazar até à náusea a existência condenada ao não valor ou seja o silêncio da “funérea Beatriz de mão gelada”. E a Esperança de que falam os neo-existencialista com os “Beatles” ou os “Hippies” que falam da meditação transcendental da Índia? Aquela Corrente, aquela Voz? Qual é o significado do “Thee” de que rezam os escritos de Swami Vivekananda? E Cristo esse Herói do Amor que perguntado se era Deus respondeu “tu o disseste”.

Está uma madrugada nevoenta agora. Mulheres vão a caminho do verzedo. Uma Quitéria, uma Rosa, uma Letícia, quem sabe: a pimenta cujo cheiro atraía caravelas do século quinhentista como diria Oliveira Martins, o arroz provisão e celeiro da fome de um ano, uma melancia, vegetais quem sabe.

Sim, tenho de ler o que Amadeu escreve sobre o arroz. O arroz, suor e sangue de todo um povo que os açambarcadores resolve em notas e ofícios ou em termos de agiotagem e lucros. Para resolver os problemas do povo seria bom que os grão-senhores descessem de suas majestades gabinetes até o povo para ver o sacrifício dessas Quitérias anónimas que sustentam a Cidade e os mercados.

Sim, tenho de deixar este diário. Aquela personagem “Sunita” pede-me que componha a sua história ou seu drama no meu conto: um amor proibido, a casta, a diferença de religião, um matrimónio arranjado, a África, a solidão, a ternura esfarrapada. Mas o jornal para quem escreve é como se fosse um primeiro amor que se não esquece. Como diz o Teles quando a gente entre para a Rádio é a mesma coisa.

O burguês acorda agora. Sorri para a mulher. Há qualquer coisa de glutão no seu olhar. O toucinho se calhar me lembra a música dos versos de Jagadish “Ek Git Morta”. Kavi, qual é seu fado?

Rui de Erasmo Jaques - Consolidando Laços Culturais (1977)

Mão amiga trouxe-me “O Heraldo” com as admiráveis linhas que me dedicas. Na verdade foi com emoção e alegria que li e reli o teu conceito sobre interdependências de duas Pátrias. Emoção por saber de quem vinha, de meu dilecto amigo Walfrido Antão, filho do saudoso e nunca esquecido Dr. João Camilo Antão. Como ele estará satisfeito por saber que os filhos prosseguem com honra e orgulho a tradição da família!

Alegria por saber que o teu ideal é acompanhado por Alguém em Portugal. Refiro-me à Sua Excelência o Senhor Presidente da República, General António Ramalho Eanes. Vivendo nesta querida Goa nos anos de 58 e conhecendo-a bem, o então Tenente Ramalho Eanes, ouvi da sua boca, dias antes de minha saída, num jantar de amigos, quanto o aprazia ver um intercambio total entre Índia e Portugal, mas principalmente, entre Goa e Portugal – dada as grandes afinidades que existem entre os dois Povos. Tu, o Dr José Rangel, que foi companheiro no Liceu da minha saudosa Vanda, o Dr. Carmo de Azevedo, o Eng. Francisco Pinto de Abreu, a Selma Vieira Velho – minha afilhada – como tantos outros que, tentam tornar mais sólidos os elos que ligam Índia e Portugal.

Nós, pobres homens, que procuramos transmitir aos nossos filhos a cultura brilhante de uma civilização que outrora florescia em todo o mundo – opulenta, fecunda a cintilante – e que hoje renasce das suas próprias cinzas com as frágeis criaturas que vejo pulular por todas essas escolas nas aldeias, vilas e cidades de Goa! Se as crianças são o esteio de uma Nação, não há dúvida que Goa, digo que a Índia tem um futuro brilhante diante de si... Mas há necessidade de transmitir a essa mocidade os gloriosos feitos dos seus antepassados, para que vejam neles, o orgulho de um povo com personalidade própria.

É bom conhecido de todos que o povo indiano possui antiquíssimos textos filosóficos de que S. Tomás de Aquino não teria dúvidas em se servir se esses textos tivessem sido conhecidos na Europa da Idade Média. A única finalidade de todos essas obras filosóficas que começaram a aparecer em princípios do primeiro milénio antes do Cristo é atingir o conhecimento da verdade suprema – Goana. É esta, naturalmente, a finalidade de toda a filosofia – o saber. Existe, porém, uma grande diferença entre o sistema indiano e o sistema ocidental. No Ocidente quando estudamos filosofia, principiamos pelo raciocínio, isto é, a lógica; passamos depois para o estudo do mundo visível (cosmologia) e o mundo ultravísivel (metafísico); continuando pelo estudo da alma humana (psicologia) das suas relações morais (ética)l; e fundamos o curso filosófico com o estudo de Deus (teologia). O método indiano é totalmente diferente. O estudo começa com Deus, continua com Deus e acaba com Deus. Deus é tudo. O resto não tem nenhum interesse para o filósofo indiano. Porquê? Porque Deus é o único ser que verdadeiramente existe. EKAMEVA ADVYTA “não há nada depois de Deus”.

Ora, meu caro Walfrido, há necessidade cada vez mais de o Ocidente – que caminha, como bem dizes, para um existencialismo atroz e devastador – beber nesta Índia um pouco de humanismo, onde todo o povo, desde os tempos mais longínquos, se acha imbuído de que Deus se espelha na alma humana. E consequência lógica dessa ideia é o dever que homem tem de imitar Deus. Quando no “Gita” Krishna explica a Arjuna como se acha completamente desligado de todas as coisas do mundo, diz-lhe (IX, 9: VI, 46), isto é: desliga-te tu também de tudo, e faz-te como eu.” Também Cristo, por palavras idênticas, exprimiu anos depois, o mesmo conceito. Mas esquecendo, o Ocidente dorme, e a Índia, esta Índia, renasce para futuro grandioso da sua antiquíssima civilização e com a preocupação que todo o indiano tem de conhecer Deus, inspirou aquela preciosa oração que desde século VI antes de Cristo em que se escreveram os Upanishadas, milhares de indianos repetem diariamente com verdadeiro fervor:

Do não ser ao ser guiai-me;

Das trevas à luz guiai-me;

Dar morteà imortalidade, guiai-me

(Bradaranya Ka Upsnishad 1-3-28)

Há necessidade, meu caro Walfrido, que as duas Pátrias se unam em elos cada vez mais fortes para que o Homem não se perca:

No mar tanta Tormenta e tanto dano

Tantas vezes a morte apercibida;

Na terra tanta guerra, tanto engano,

Tanta necessidade aborrecida!

Onde pode acolher-se um fraco humano,

Onde será segura a vida curta,

Que não se arme e se indigna o Céu

Contra um bicho da terra tão pequeno.

Camões, Canto I, est. 606

Ao terminar, concluo com um abraço evocando a saudação que o poeta do Ramaiana pôs na boca do guerreiro para sua mulher, saudação que dirijo a todos os amigos de Goa: a bandeira que me acompanha segue comigo para a frente, mas adejando ao vento para trás é como o meu coração que por ti palpita.

Monday 15 July 2013

Clara de Menezes - Travo de Amargor (1977)

Gosto de estar na penumbra no presente,
Queima-me a ardente luz do teu olhar,
Sei que não é propósito magoar
Quem te adora até perdidamente.

O meu coração disso se ressente,
Mas não posso fugir ao duro azar,
Que anda a açoitar o nosso quente lar,
Com máscara a fingir-se alvinitente.

Estou na escuridão sem alvorada,
Que bela será a rósea madrugada
Se me vier tirar deste torpor!

Sei conquistar a real felicidade,
Lutar contra a maré da adversidade,
Mas evitar o travo de amargor!

Agostinho Fernandes - Quadro Vivo (1955)

Um quadro vivo que parece raro porque é... clandestino. Recém-casados. Lar ideal. Ricos e felizes. Todos comentam: uma perene lua de mel.

Ele trabalha num escritório e ri-se: lembra-se do antigo namorado da sua esposa. Era efeminado, franzino e fora despedido quando este entrar em cena. Era uma vitoria. A primeira vitória. Não era, pois, verdade o que os seus colegas disseram. Não era idiota e gebo afinal. Até a mulher gostara... e casara. Agora ela só a ele amava, a ele, o marido. Este adorava-a. Idolatrava-a.

Ainda ontem ela dissera: vou ser mãe. Que satisfação. Que júbilo! Ele? Pai?! Morria de alegra!

Voltava sempre às Ave-Marias. Eram logo beijos e abraços... um nunca mais acabar.

Naquele dia pensou voltar cedo. Uma surpresa para a esposa adorada. Presentes. Chapéus. Perfumes, e umas rendazinhas para o bebé. Entrou como de costime, sem bater a quase desmaiou: ele conspurcando-lhe o sagrado tálamo nupcial. Ele, o efeminado, o que fora despedido!

José Rangel - O Poeta e o Amor (à volta do livro 'Destino' de Judite Beatriz de Sousa) (1955)

A poesia é a quintessência do do sentimento humano. E ela a intérprete fiel e sagrada de toda a gama de sentimentos que palpitam na alma humana.

Nos seus versos, que têm, por vezes, a extensão dum sorriso ou duma lágrima, todo um mundo de volúpia e sofrimento, de anseios que arroubam, de desilusões que ferem.

Se na prosa, o homem pode elevar às alturas a sua arte, é na poesia que ela se sublime, quando tocada pela asa de espiritualidade, por aquela unção religiosa que a envolve por vezes, dum halo e misticismo...

O poeta é um ser superior, por que ultra-sensível. Qualquer sentimento, o mais banal, vibra nele com uma intensidade dolorosa, e se constela dum manto de estrelas, que espargem poalhas de luz, cujo brilho, não ilumina, muita vez, os olhos prosaicos, porque a distância que os separa é imensa...

É por isso, que o poeta é considerado um ser à margem das realidades tangíveis da vida e é apodado de sonhador...

Não! O poeta não vive de quimeras. Mas arrancando da realidade a sua própria carne que lateja e uiva, tece-lhe uma grinalda de flores, envolve-a de um manto diáfano de fantasia, para cobrir a nudez forte da verdade... E como o olhar humano não é bom psicólogo, e vê as coisas pela rama, isso o leva a julgar que o mundo do poeta é fictício, ilusório...

O poeta é um iluminado. Com aquela visão profunda que perscruta a alma dos homens e das coisas, ele ausculta em pequenos nadas da vida, o mistério que vive nele.

Que tem de extraordinário, um sorriso que se entreabre cândido e meigo ou um suspiro que se evola choroso e compungido? É tão banal! Mas o poeta entrevê através a névoa que os cobre, almas que ora se banham de alegria, em que há sonhos doirados que se corporizaram, promessas ridentes que se cumpriram, ora estremecem de amargura e dor, ante sonhos desfeitos, esperanças desfolhadas..

E como estas pequenas emoções, têm reflexo invulgar na sua alma, elas carreiam para o seu estro, pérolas, que lhe servirão, para tecer o seu poema.

Como todo o ser humano, o poeta também tem o seu ideal, de que faz o móvel da sua vida, dando-lhe todo o calor da sua alma fremente, e o iluminando daquela luz interior tão suave e tão bela que vive imaculada no sacrário do seu coração.

Mas o seu ideal, é por vezes, incompreendido. Ele sofre com isso. A sua alma amarfanha-se de dor, que lhe anavalha a alma.

Mas, é o próprio sofrimento que o eleva àqueles édenes de beleza a que o seu coração aspira, onde vive uma paz serena e luminosa, que dulcifica a alma e santifica a dor. É ele que cria as estrofes mais belas e mais sentidas.

Diversos sentimentos fazem vibrar a lira do poeta. Mas nenhum deles arranca dela acordes tão maviosos, como esse sentimento subtil e indefinível, que tendo a razão de ser em si próprio, viva do seu próprio sangue que lhe dá cada vez nova seiva; o Amor.

Sentimento dos mais elevados, que fremem na alma do poeta ele exala-o e o transfigura, tornando-o um ser diferente dele próprio.

Sentimento universal, que caldeia no mesmo cadinho, almas nos pares, a palpitarem do mesmo anseio, ele vive de braço dado com a Dor, quando este anseio vive isolado e incompreendido, quando a chama que ilumina uma alma, ao revés de aquecer outras almas só depara com gélida frieza...

O poeta, então, não procura apagar esta chama, mas fazendo dela a lâmpada a alumiar-lhe o estro, vai arrancando do seu alaúde, as mais sentidas endechas. E só depois de extravasado, às vezes duma forma irregular e impulsiva, todo o fogo que arde na sua alma e restar dele só cinzas e o olor duma saudade, é que o poeta depõe por momentos a sua lira, para a retomar e qual paladino do seu coração, continuar a trilhar por outras veredas, à busca de novos rumos para o seu Ideal...

Vem estas considerações ao bico da pena, á propósito do livro de poemas, que a jovem poetisa Judite Beatriz de Sousa acaba de dar à luz da publicidade.

Poetisa de alto quilate, que tem feito a nossa admiração pelos seus versos prenhes de beleza, de há muito esperávamos, que de dispersiva que era a sua lira, ela se enfeixasse num livro de versos, que espelhasse a sua verdadeira, alma de Artista e Mulher.

E cá temos agora “serena, clara, carinhosa, palpitante de viva emoção e humana beleza” a cantar aquilo que na sua alma mais vibrou: o Amor.

Seguindo a máxima de imortal Goethe “faz da tua dor um poema”, ela dá-nos hoje, poemas de admirável contextura, em que a elevação do pensamento e sentimento se alia à singeleza da frase e onde estua uma alma superior, qeu amou, com aquela acrisolada paixão que só os artistas podem ter e por isso mesmo sofreu e hoje se entrega à tristeza e ao abandono.

“O que amei foi tanto e há tanto tampo

Eu tenho as mãos cheias de abandonos...

E todo o mistério de dramas ocultos

A doer os meus olhos tarjados de mágoa”

Estes poemas constituem um longo estendal de amarguras, cuja leitura nos faz comungar do mesmo sentimento que a torturou, mais parecendo que é a nossa alma que neles suspira de dor...

“O meu poema é a minha grande dor

Porque é a mesma dor de toda a gente!”

Só os compreenderá, quem os possa sentir na sua carne e no seu sangue, ou parafraseando Júlio Dantas, é preciso lê-los com aquela mesma ternura com que foram escritos, para beijar a mão que os traçou.

Nestes poemas, sobressai, não só a beleza dos versos mas principalmente a beleza da alma da Mulher, embora eles nos dêem só uma parte dessa alma, pois as palavras por mais eloquentes que sejam, nunca podem traduzir à justa todo um rosário de anseios suspensos, lutas inglórias, e negros desesperos que se agitam na alma humana e os melhores poemas são aqueles que nunca se puderam escrever...

Fernando Namora, p poeta do “Mar de Sargaços” teve este desabafo doloroso, no final dum dos seus versos: “Ah! Covardes versos: nada dizeis do que sinto!”

Nos seus versos, a autora parece seguir a corrente modernista, em que “cada um vive consigo, entrega-se livremente à sua revelação, manifesta-se de acordo com o seu temperamento” e “o “único elo que os liga a todos entre si é o desejo de sinceridade, de quererem ser inteiramente eles, de cada um procurar um seus versos dar-nos a sua maneira própria de sentir, de pensar e de dizer”, sem se sujeitar a cânones estereotipados a que um poeta nunca pode confinar-se, renovação essa que, iniciada por Eugénio de Castro, continuada por António Nobre e ampliada por Mário de Sá-Carneiro e Fernando Pessoa, tem hoje poetas de gema num José Régio, Mário Dionísio, Fernanda de Castro, Mário Beirão, José Gomes Ferreira e outros.

Irmã gémea na poesia de Florbela Espanca (a que a comparou Mário Issac que prefacia o livro), essa “filha da charneca erma e selvagem que é o Alentejo, a Soror Saudade como lhe chamou o poeta Américo Durão, embora os ambientes de ambos sejam diferentes, elas se tocam e se irmanam porque viveu nelas o mesmo sentimento amalgamado de lágrimas.

Não pretendemos, com estas palavras, bordar considerações críticas à volta da sua alma, que não temos fôlego para tanto, mas tão somente, focando à verdadeira luz à sua alma de Mulher e o sentimento que nela germinou e tão bem frutificou, dar-lhe a nossa plena adesão espiritual, a quem cantou com tanta beleza é verdade, sentimentos que não são nossos.

Este livro é o primeiro passo na senda íngreme e dolorosa que é a glória. Temos a certeza que Judite Beatriz de Sousa, com a grandeza do seu espírito e a sinceridade do seu coração, saberá lutar contra todas as vicissitudes e ganhará a palma de glória que é a suprema aspiração de todos os artistas.

Judite Beatriz de Sousa - Certeza (1955)

O que aconteceu agora
Já devia acontecer
- Não me atormentam receios
Porque prendi a verdade

O que devia chegar
Já chegou. E o que vai partir
Tinha também de se ir embora.
- Não me dói o meu anseio
Nem eu tenho de esperar
Pela tristeza da hora.

Estes silêncios não doem
Como incertezas
Ou reticências
Porque tudo o que
Tinha de ser!

Não há mágoa
Nem lembrança
- apenas há esperança
e - porque não – há certeza
de eu já poder esquecer.

Walfrido Antão - Setembro e as Alegrias Campesinas (1955)

Setembro, mês encantador por excelência, é para o goês o período de tempo em que as espigas louras, que madeixas queridas de alguma Madalena, ondeiam ao sabor dos ventos e amadurecem lentamente sob a acção benéfica dos raios solares.

Quando a colheita se aproxima, o agricultor exulta de alegria, pois já não há de sofrer privações nem fome.

A seara apresenta bom aspecto e eis tudo para ele. Manhã cedo, quando rubra aurora ainda se esconde no horizonte, hesitante e prometedor, alguns homens musculados de troncos espadaúdos, cor de azeviche/azevinho, a que o vulgo chama begarins, acompanhados de uma fila de mulheres e raparigas, um rancho de Evas roliças, dirigem-se para a várzea. Lá, foices na mão por entre o canto harmonioso e terno de mandós e dulpodas, ceifam, isto é cortam as espigas que montoados num lugar serão transportadas pelos homens até a eira, onde segue a debulha por um grupo de bois andando sempre à roda e a espiga deixa cair o doirado bate que é levado em cestos para casa do agricultor.

A ceifa, de índole nativa tão original, tão pitoresca, foi cantada por Floriano Barreto em estrofes maviosas que lembram o murmúrio doce e acariciante das manilhas nos punhos das encantadoras ceifeiras.

Natureza bravia, viço, encanto, poesia, tudo se junta nas várzeas. Ali brotam os primeiros anseios de amor. “O amor ao ar livre, na solidão imensa do campo”, de que nos fala Júlio Diniz nas “Pupilas” e Walter Scott na “Dama do Lago” tem a dignificá-lo a sinceridade, franqueza, nobreza de conduta do carácter e ainda o modo de sofrer. É aí que o amor – esta palavra mágica cantada pelos poetas e prosadores de todos os tempos como faísca electrizante da vida – tem a sua mais elevada expressão.

Em noites luarentas, enquanto o grilo com o seu zumbido estridente irrita o agricultor, rapazes e raparigas, cestos à cabeça, em franca conversa, alicerçam sob bases sólidas o seu futuro lar sem convencionalismos nem enredos caprichosos a entorpecer a beleza do seu sonho...

No conhego remansoso do seu “Lar”, ele, o agricultor em simples e modesta festinha, reúne toda a sua família e expande-se de alegria. E por meses fora, ele renova a sua intensa labuta, com um sorriso franco a bailar nos lábios e um celeiro farto na sua modesta casinha.

Depois de labuta insana e pesada de três meses, a maior parte dos jovens, goza as férias de Setembro na inebriante poesia das suas aldeias. Aproveitamos estes poucos dias em que os livros se espreguiçam languidamente nas pastas e aproximemo-nos com ele que, no esquecimento longínquo da várzea, Grangeia o suficiente para o seu viver e doutros, e ergue preces clamorosas ao Senhor pela bendita dádiva de Setembro.

Agostinho Fernandes - Haverá Vida no Sol?! (1955)

Ainda reinam controvérsias sobre o assunto. Contanto, é um facto mais ou menos assente: há possibilidades de existência de seres vivos no planeta Marte. Nada mais natural. Na verdade, como se pode admitir que de tantas planetas constituintes do sistema solar, de tantos astros conhecidos que pululam pelos espaços, e, de entre inúmeros que nem os mais poderosos aparelhos engendrados pelos cérebros humanos conseguem ver, ou sentir apenas, só o nosso planeta, seja habitado por seres vivos? Até parece um absurdo pensar que essa dádiva seja tão somente monopólio da Terra...

As mentes dos cientistas e investigadores ferveram e lá chegaram à conclusão de que havia possibilidades de vida no Marte... Mas, porque pensaram só no Marte? Com certeza porque é o planeta cujos condições, sob todos os pontos de vista, mais se aproxima das da Terra. Isto está bem se nós pensarmos na existência duma vida semelhante à nossa, mas, os restantes planetas podem ter seres vivos diferentes das no nosso, com outras necessidades, outras exigências...

Já é de todos sabido que os seres vivos tem um grande poder de adaptação. Vejamos o que se passa com esses seres ínfimos que nós chamamos bactérias. Tem a sua temperatura óptima onde proliferam maravilhosamente, mas estas mesmas bactérias podem viver a temperaturas mais altas ou mais baixas, desde que a passagem dum dado grau de calor ao outro seja gradual. Em resumo, acabam por se adaptar. Descobriu-se a penicilina e em voz alta declarou-se uma guerra fatal aos micróbios. A vitória durou pouco. Os nossos minúsculos inimigos tornaram-se resistentes a este prometedor antibiótico, isto é, adaptaram-se a ele...

Se, mesmo dentro do nosso planeta, a natureza dota os seres vivos de tão amplo espectro de adaptação, o que será em relação ao outro?...

O sistema solar é constituído de Mercúrio, Vénus, Terra, Marte, Júpiter, etc, girando todos em volta duma grande fonte calorífica que é o Sol... Alem de outras coisas, o qeu nos leva a duvidar da existência de vida noutros planetas são as largas diferenças de temperatura. Todos os planetas recebem o calor do Sol. É claro que o mais próximo dele receberá mais em relação ao seguinte. Como é que nós avaliamos este calor? Em relação ao calor da Terra. Quando dizemos que Vénus é mais quente, subentendemos que o é em comparação com a Terra. Da mesma forma, o Marte é menos quente.

Na Terra estamos habituados a ver seres que não resistem a um inframinimo e a um determinado inframaximo mas, lá por isso, não podemos dizer que Júpiter onde a temperatura não atinge o nosso mínimo, se no Vénus onde ela é superior a nosso máximo, não haja vida. A única coisa que podemos afirmar é que não pode haver seres vivos iguais aos da Terra.

O que dissemos da temperatura podemos agora generalizar para o resto. Assim, é possível, por mais absurdo que isso pareça, que nos planeta desprovidos de água haja seres vivos que possam viver sem ela, naqueles em que falta ai se viva na absoluta ignorância deste fluido e que na constituição física desta vida entrem elementos que nós ainda não conhecemos ou que não existem na terra e que lhes permitam adaptar ao meio em que vivem...

Quem sabe se há seres no estado líquido, se há seres voláteis ou em qualquer outro estado por nós ignorado?

O que pensarão de nós e do nosso planeta os possíveis habitantes desses mundos? Sabendo que a sua Ciência não excedeu a nossa, o mesmo problema misterioso que é hoje para nós sê-lo-á para eles também... Os seus cientistas devem estar a martelar a cabeça e os aparelhos para responder as perguntas: O “haverá vida noutros planetas?”, “haverá vida na Terra?”

O que dissemos dos planetas podemos prolongar até a miríade de astros, de próprio Sol onde a temperatura atinge cifras inacreditáveis... Quem sabe se no Sol não existem seres no estado gasoso?

Cedo ou tarde chegar-se-á à Lua... e ao Marte. O homem não descansará enquanto não ponha lá o pé... levará consigo tudo o que for preciso para se adaptar àquele meio... Não tardará muito que os demais planetas o tentam também... Também lá chegará...

...E qualquer dia, os nossos descendentes ainda ouvirão, no aeroporto interplanetário, diálogos como este:

- Adeus, querida. Trabalhos urgentes chamam-me a Platão. Espero que não me sejas infiel na ausência...

E a esposa algo comovida:

- Adeus, amado. Boa viagem e feliz regresso...

Ou então terão no jornal em letra minúscula como se fosse uma coisa vulgar... e os simpáticos noivos seguiram viagem ao Sul para lá gozarem a “lua de mel”...

- E lá haverá vida, diferente da nossa, não importa, mas haverá vida no Sol...

Tuesday 9 July 2013

VS Prabhu - Resposta a AA Bruto da Costa

A próposito do artigo do ilustre co-editor deste jornal Sr. Dr. Carmo Azevedo, sobre as “Castas e classes na sociedade goesa”, vem o Dr. A. A. Bruto da Costa, por quem nutro grande consideração pela coragem e desassombro com que combateu os desmandos e as prepotências durante a ditadura de Salazar, com um artigo “Os Costas e as castas” (30/07/1975). Estou escrevendo em marata uma história de Goa sobre a ditadura de Salazar e é forçoso confessar que o nome do Dr. A. A. Bruto da Costa ocupa um lugar dominante.

O Dr. Bruto da Costa diz que os Costas combateram as castas, mas não diz a que casta pertenceram os Costas. O Dr. Ghurya, eminente historiador e sociólogo indiano, no seu livro “Caste e Class”, diz o seguinte: “Caste is an endogamous group. Endogamy is the summary of caste system. Endogamy is a rule of marriage. It prescribes close in-marriage i.e. marriage within the group. A person of a particular caste or sub-caste. A Brahmin was expected to marry a daughter of a Brahmin and within the Brahmin community; a person of sub-caste for example, a Saraswat was expected to marry a daughter ofa Saraswat. Marriages outside the caste were not only forbidden but also the descendents of such persons were considered casteless and debarred from caste membership”.

Esta é a opinião unânime de todos os historiadores indianos. Ainda Megasthenes, que viveu na Índia na antiguidade, escrevia o mesmo. O Sr. J. J. Da Cunha no seu livro a “Nossa Terra” (Estudos Económicos Financeiros, Sociais e Internacionais). Volume II, p.g. 252, diz que os Costas de Margão são indo-africanos e como não eram puros brâmanes não foram admitidos na Confraria de Deus Espírito Santo de Margão, que era exclusivista. Isso é o que dizem os historiadores.

Vamos agora à sociologia na prática. Diz o Sr. Dr. Bruto da Costa que o seu bisavó, Constâncio Roque da Costa “deixava escrito do próprio punho o seu testamento, datado de 8 de Fevereiro de 1882, em que fazia esta recomendação: “que a sua filha Leopoldina (única nascida até então entre as filhas) devia casar “com pessoa análoga à sua qualidade e a seu contento e SEM ATENÇÃO À CASTA porque não reconheço outra a do MÉRITO e PROBIDADE e reputar-se-á como ingrato qualquer dos meus herdeiros que contestar esta minha paternal disposição”

O que é interessante saber é quantos Costas teriam casado fora da casta “comungando nas ideias” dos seus ascendentes? Não haveria entre membros doutras castas pessoas de “mérito e probidade”, “aptidão”, “talentos e virtudes examplares”! Dizem-me que recentemente (não “nos séculos de ignorância e despotismo”) uma descendente dos Costas quis casar com um chardó “de mérito e probidade” mas houve forte oposição da família e só devido à insistência da rapariga o casamento se realizou! Uma outra descendente dos Costas, que tinha um namoro com um seu companheiro de colégio foi afastada, pelos pais, do rapaz de “talento e virtudes exemplares” só porque este era um “crioulo”.

Diz o sociólogo americano Loland E. Honsiz que na Índia todos os políticos e reformadores sociais proclamam aos quatros ventos que não acreditam nas castas mas quanda chega a hora de dar de casar seu filho ou filha, a primeira coisa que procuram saber é a casta do futuro genro ou nora!

AA Bruto da Costa - Os Costas e as Castas (1975)

Não será, de certo, deslocado que eu venha, a propósito das considerações largamente expendidas neste diário pelo Sr. Dr. Carmo Azevedo, sob a epigrafe “Castas e Classes na Sociedade Goesa”, relembrar factos e atitudes ora ignorados, quando não tenham chegado até os nossos dias desvirtuados ou intencionalmente deformados. Antes pelo contrário, quero crer que, sobre ser oportuno, isso constitui para mim uma obrigação.

Constâncio Roque da Costa, meu bisavô, um dos três primeiros deputados às Cortes, sendo outros dois o nosso patrício Bernardo Peres da Silva e o europeu António José Lima Leitão, antes de embarcar para Lisboa, na charrua “Luconia”, dirigia aos seus concidadãos uma proclamação em que, além do mais, frisava: “a vossa regeneração depende de serem decepados de raiz todos os estabelecimentos feudais, cachopos os mais temíveis contra a igualdade e contra o sagrado direitos do homem, e que deveis aspirar a serdes nivelados em tudo e por tudo aos cidadãos de Portugal.”

“Riscai da vossa memória essa odiosa distinção das castas, puritanismos e outras invenções anti-sociais, filhas do orgulho e ignorância, ficando na inteligência que são estas as fontes reais das vossas desgraças. Esforçai a manter a consideração que as Cortes vos dão, detestando os odiosos nomes de vassalos e colonos, certos de que terão elas muito a peito as vossas prosperidades, como inseparáveis do seu crédito, pois do contrario servir-lhes-á de confusão a vitória, que Portugal alcançou sobre o bruto Adamastor, vitória que faz e fará época gloriosa nos anais da história” (Quadros Históricos de Goa por J.C. Barreto Miranda – Vol. 3, p.g.91 até 92).

Não só tanto. Dados os perigos da viagem e a incerteza do regresso, deixara escrito do próprio punho o seu testamento, datado de 8 de Fevereiro de 1822, em que fazia esta recomendação: que a sua filha Leopoldina (única nascida até então entre as filhas) devia casa “com pessoa análoga à sua qualidade e a seu contento e SEM ATENÇÃO À CASTA, porque não reconheço outra que a do mérito e probidade (as maiúsculas são minhas) e reputar-se-á como ingrato qualquer dos meus herdeiros que contestar esta minha paternal disposição” (Geneaologia da Família Costa de Margão” por Joaquim Bernadino Catão da Costa, p.4)

Projecto de Lei

Comungando nas ideais do pai e plenamente integrado nelas, Bernardo Francisco da Costa, quando deputado às Cortes, apresentava ao Parlamento um projecto de lei tendente a serem riscados dos estabelecimentos píos e outras quaisquer corporações dos estados da Índia todos os artigos que dessem preeminência e exclusivo a alguma casta ou cor, por forma que só o mérito e aptidão para o desempenho fiel das restantes disposições fossem os títulos únicos a exigir dos que nessas associações pretendam entrar. E justificando o mesmo, proferia este discurso:

“Senhores: A carta constitucional, este código, que felizmente é a lei fundamental do estado, não admite entre cidadãos outra distinção que a de seus talentos e virtudes. E não limita os seus benefícios só ao continente do reino mas abriga também debaixo da sua protectora sombra os povos das mais possessões de Portugal.

Contudo nos estados da Índia há confrarias que nos seus estatutos até agora conservam a cláusula de não se aceitar para seus irmãos aqueles que não pertencem a uma determinada casta, embora tenham talentos e virtudes exemplares, manifestamente reconhecidos; e semelhante cláusula, que aí foi introduzida nos séculos da ignorância e despotismo, atravessando incólume os tempos e zombando altiva das ideias do século, ainda hoje é religiosamente cumprida, à vista da autoridade pública que tem imediata inspecção e ingerência nesses estabelecimentos.

...Infelizmente, no templo de Deus, que pregou a igualdade e proclamou a fraternidade, aí mesmo se foi entronizar distinções altamente repugnantes à razão, à lei de Cristo, e à caridade que esses institutos professam. Hasteando a bandeira da união e igualdade universal dos homens, ensinada pelo Deus que morreu por sustentá-la, erigiu-se logo ao pé um monumento a distinções absurdas e divisões repugnantes; e este suplantou aquela!

Hoje que a civilização transpõe todas as barreiras e derruba todos os obstáculos, hoje que as leis dos homens proclamam também a igualdade, é inqualificável a conservação de tais cláusulas, que subsistem apesar mesmo desses povos, que só por obrigados se submetem à maior parte dos regulamentos existentes que desejam reformados.

O absurdo e contra-senso dessas clausulas são tanto mais notáveis, quando fazem parte de instituições pias, cujo fim é a beneficência, a adoração da Divindade, e tanto mais odiosas quanto se praticam no século actual e em frente da letra do vosso código fundamental e da nossa santa religião, que proclamam a fraternidade, a igualdade e a liberadade.”

António Anastásio Bruto da Costa (outro filho de Constâncio Roque da Costa e meu avô, de quem levo o nome) combateu igualmente com vigor toda a discriminação baseada na casta ou na cor, sustentando a igualdade dos cidadãos, igualdade esta garantida pela Carta Constitucional e proclamada, cerca de dois mil anos antes, do alto do Golgotá.

Esforços Baldados

No entanto, todos os esforços empregados para extirpar as diferenças resultantes das castas foram baldados. A proposta apresentada por Bernardo da Costa às Cortes foi remetida para Goa pelo Ministro da Marinha, para sobre ela se pronunciarem as autoridades civis e eclesiásticas.

Ou porque a proposta ou informação do prelado e do governador nunca mais veio ou porque ela foi contrária por razões que não foi dado conhecer, a referida proposta, não obstante a insistência do seu autor, não foi submetida à discussão e aprovação dos Cortes.

Correm anos. Estamos em 1948. D. José da Costa Nunes, Arcebispo de Goa e Patriarca das Índias Orientais, na sua provisão de 12 de Março, informando ter recebido após a sua chegada a Goa, “várias exposições sobre questões de confrarias, privilégios de gãocares e assuntos concomitantes, coisas estas que julgávamos enterradas”, declarava ser de admitir “a constituição de corporações religiosas destinadas somente a determinados grupos sociais”, nomeadamente de brâmanes, chardós e sudras.

Ao tomar conhecimento dessa Provisão, escrevia eu em 9 de mês seguinte a S. Exa. Revma. uma carta manifestando a minha surpresa e o meu desacordo. Depois de acentuar que “tais causas não ressuscitariam e que existiam porque não foram enterradas” dizia:

“Desde os meus verdes anos, venho combatendo distinções castistas. Se elas não são de admitir, e eu não admito, na vida social, muito menos o podem ser nas confrarias, instituições de piedade e culto católico. Compreenderá, portanto, V. Exa., que ninguém mais do que eu aplaude – e com as mãos ambas – a resolução de V. Exa. não deixar “medrar o exclusivismo nas confrarias”. Com igual satisfação, registo a decisão de não consentir no predomínio de “classes fechadas” dentro da Igreja. Mesmo por isso tanto maior é a minha surpresa e mágoa ao verificar que tivesse faltado a necessária força para não contemporizar, “um pouco” que seja, com as tendências locais. É que se tenha consentido que os brâmanes, os chardós, os sudras, os farazes, etc. etc. formem, se quiserem, confrarias privativas!

“To be or not to be, dizia Hamlet. Consentir ou não consentir, eis a questão. Autorizar que se formem “confrarias privativas” sob a base de casta, não acha V. Exa. que é deixar medrar: o exclusivismo nas confrarias? Não será permitir que se salte por cima do espírito da Igreja?”

“Afinal das contas, V. Exa. se limitou a bem pouco: a franquear aos fieis em geral somente a confraria do Santíssimo e isto por os direitos e os privilégios a ela anexados pertenceram “a todos os católicos e não exclusivamente a uma casta ou grupo social”

Confrarias Privativas

O Nobre Prelado respondia-me pela volta do correio, nestes termos:

“Tem alguma razão. Deus sabe a repugância que sente ao transigir com a formação de confrarias privativas, num meio social como o de Goa. Mas alguns párocos asseguraram-me ser este o único meio de resolver a “questão confrarial”, como cá se diz.

“Parece-me, todavia, a availar pelo que chega a meu conhecimento, que esta questão não ficou resolvida. Se me convencer de que a transigência não surtiu o efeito desejado, voltarei ao rigor primitivo.”

“Mas deixe-me desfazer-lhe um certo equívoco: a condenação do exclusivismo não foi determinado por uma questão de castas, mas por haver alguns grupos sociais organizados em confrarias que chamaram exclusivamente a si certos privilégios pertencentes a todos os católicos. Daí a reacção dos excluídos, os quais pretendiam não entrar no grupo, mas conquistar os privilégios monopolizados.

“Ora, desde que se ponha termo a tal monopólio, como se pôs, não há inconvenentes de maior em permitir confrarias privativas, como em toda a parte do mundo são permitidas. Assim, há confrarias ou associações pias de médicos ou advogados, de engenheiros, de agricultores, de carpinteiros, de pescadores, de motoristas, etc.”

Em nova carta fazia significar a S. Exa. Revma. Que uma coisa era a formação de confraria na base profissional e outra na base de castas. E acrescentava: “No primeiro

(Segue na 2a. Página)

caso a diferença que se estabelece é entre duas profissões. Assim, os advogados pertencentes a diferentes castas podem agrupar-se em uma única confraria. No segundo caso, a diferença que se estabelece é entre um individuo e outro individuo, ou seja entre um brâmane, um chardó ou um sudra. Em outras palavras, quer isto dizer que um advogado sudra ou chardó não pode reunir-se numa confraria com um brâmane ou vice versa.”

Não passavam dois meses. Aproveitando a primeira oportunidade que se lhe oferecerem, o ilustre Antíste, num gesto que tanto o dignifica e exalta, reconheceu o seu engano.

Provisões Revogadas

Por circular de 7 de Junho do referido ano, retirava a autorização dada a formação de confraria exclusivistas entre membros de castas e gauncarias, revogando as suas Provisões de 15 de Agosto de 1946 e 12 de Março de 1945.

Justificando a sua nova determinação frisava:

“Só as pessoas de visão acanhada ou os orgulhosos que se julgam infalíveis, se recusam a mudar de parecer e a alterar decisões tomadas.”

“Não fica mal a ninguém modificar a sua opinião, perante os inconvenientes resultantes de medidas anteriormente estabelecidas.”

“Isto vem a propósito do compromisso duma confraria submetida há dias à minha aprovação.”

“Num dos artigos declarava se que só os brâmanes podem fazer parte da confraria. Em abono deste princípio exclusivista, citava-se a minha Circular de 15 de Agosto de 1946. Fui ler a citação. De facto, lá estava, com surpresa minha, a autorização para se fundarem associações pias acentuadamente exclusivistas.”

“Costumando ser lógico no meu pensamento, desta vez falhou a lógica, se considerarmos as inúmeras vezes que condenei o exclusivismo.”

“Sem pretender diminuir a minha incoerência, devo explicar que a permissão para formar confrarias castistas foi como que um enxerto introduzindo no meu pensamento a pedido de alguns, que julgava terminarem assim as “questões confrarias”.

Posso assim dizer afoitamente que fui um dos que levaram o Patriarca Costa Nunes a dar o golpe final no exclusivismo baseado na casta, que predominava nas nossas confrarias.”

Não vá sem ficar dito: o factor ‘casta’, felizmente, por muito tempo, não influiu na politica. Todos gauddés, sudras, brâmanes, chardós, estavam unidos. Constituíam uma força. Uma força sempre pronta a enfrentar, com coragem e dessassombro, os demandos e as prepotências do Poder.

Laxmanrao Sardessai - Aqueles Momentos (1966)

Quero agarrar entre os dedos
Aqueles momentos vagos
Que se esbatem no passado,
Profundo como os seus suspiros,
Vastos como os meus pensamentos,
O rosto da minha mãe moribunda,
Varada por um golpe duma epidemia,
Com a luz baça nos olhos,
A procurar-me.
Era eu então uma criança
De oito anos...
Rolaram hoje cinquenta
Sobre este infortúnio.
A minha memória
Pálida, nublada,
Não pode fixar as linhas
Daquele rosto
Que nunca mais vi,
E aqueles momentos,
Quais pombas minúsculas
Ainda brilham
A distancias infinitas
Na luz dourada!

Walfrido Antão - Telo de Mascarenhas, ou Um Padrão Ocidental na Situação Indiana (1979)

“Mal com os homens por amor à terra; mal com El Rei por amor à terra”

Cada homem tem direito a um sonho ou posto burocrático e não há que assacar culpas à grandeza imensa do Sonho como tal ou a limitação dos mangas-de-alpaca sim senhor El Rei dos Algarves, Yes Sir Milord of Wheat Fields of Punjab, o colonialismo é uma antítese do self-government com todo o seu manto de CORRUPÇÃO. No caso da Burocracia ou do self-employed man de negócios a ascensão ou declínio depende de um certo numero de constantes entre os quais conta a habildade de adorar o sol nascente e a intriga palaciana o problema do sonho é um caso diferente. O sonho de um homem letrado afasta-o das massas como numa contradição infeliz, essas mesmas massas humanas em cujo benefício o sonho visita o Homem. Tal foi o caso trágico do sonho de Telo de Mascarenhas. Nascido na aldeia de Velção, quase meu coaldeano, o Dr. Telo de Mascaranhas teve de ir a Coimbra como escolar de Direito para reconhecer as suas raízes indianas e juntamente com Adeodato Barreto, o grande e infeliz poeta que morreu até a consumação do ideário marxista numa aldeia de Portugal, com José Paulo Teles e outros (conforme leio num dos exemplares da “Índia Nova”) fundou o Instituto Indiano anexo a Biblioteca da Faculdade de Letras. Eram os anos 1920, a literatura portuguesa dividia-se entre o Surrrealismo de Almada Negreiros e a poesia épica decantada no ocultismo de Fernando Pessoa ou a trágico desespero de Mário de Sá Carneiro. O liberalismo democrático de António José de Almeida vivia horas de agonia e o MONGE de Coimbra preparava-se para tomar de assalto a velha Lisboa das naus que tinham vindo à Índia e marinheiros de Alfama. A longa noite da Ditadura com seus mitos glorificadores do Imperador Máximo de Aquém e Além Mar ia espalhando seu véu de sombras por sobre esse tão belo povo português, um povo capaz de uma cultura humanista como provam António Sérgio e Jaime Cortesão. Não se ouve falar mais do Instituto Indiano em Coimbra. “A Índia Nova” que chega a publicar uma mensagem de Tagore vê os seus redactores já formados e com família bem portuguesa. Adeodato Barreto recusa-se a burocratizar o pensamento em tacho oportunista que lhe podia dar pão e vinho e mantém-se firme a um ideário de redenção económica que lhe nega suficientes para se tratar e tratar dos seus, morrendo quase em penúria. São dos anos 1940 algumas traduções de obras de Tagore que aparecem em Lisboa da lavra de Telo Mascarenhas e que, muito embora venham via língua francesa, constituem uma bela introdução da alma indiana ao povo português. Anos 1949 e Telo Mascarenhas surge-nos aqui em casa fresco de Lisboa e Porto para convidar meu pai que ao tempo era presidente da câmara de Mormugão para presidir uma conferência no Casino de Vasco da Gama sobre “Primavera e os Poetas de Amor”, conferência esta que não se chegou a realizar por a polícia portuguesa ter cheirado o indianismo do autor. Tinha eu 13 anos de idade e admirava-o de improvisar versos às flores, às plantas, ao palmeiral tudo com invocações aos deuses indianos. É um poeta, pensava eu e por lá o teria esquecido, quando embrulhado entre revistas femininas de Bombaim começou a enviar-nos cópias do “Ressurge, Goa” do exílio. Há idealismo na sua Invocação quando rezava alto “edificaremos sobre o mar, sobre a terra, sobre as estrelas, a glória da nossa Terra Imortal”. Quem poderá negar que ele amava Goa?

Poeta do campestre, do rural como se diria agora, com profundas influências de Gil Vicente e Rodrigues Lobo, Telo de Mascarenhas provou-se um misfit, quem sabe um inconveniente que não sabia Konkani e Marata aos grupos políticos de Bombaim que trabalhavam pela libertação de Goa.

A política indiana não é para poetas ou idealistas e o exemplo mártir de um Tristão Bragança Cunha ou um Jaypracasha Narain (a este claram o grito de Revolução total com uma bolsa de um crore de rupias) chega-nos para não alimentarmos quaisquer dúvidas a este respeito. No caso de Tristão Bragança Cunha e tantos outros heróis esquecidos como Polly da Silva que foi a morrer aos 30 e poucos anos num curral basta-nos o facto de o Sonho de alguns ter sobejado para os mineiros, em especial uma família, continuarem a gozar do Poder. Uns sofreram para os mineiros continuarem a gozar os privilégios.

Como disse atrás, o Sonho de um homem letrado afasta-o das massas. No caso de Telo de Mascarenhas que depois de sofrer dez longos anos de prisão havia tentado entrar na politica, o resultado foi constrangedor. As massas não vão pelos sacrifícios, vão sim pelos símbolos comunalistas, daí a tragédia da democracia dos analfabetos com seu corolário de self-government is always better than alien rule. É ainda cedo demais para se pronunciar sobre a validade de um sonho, só a História poderá abarcar o Juízo final. Entretanto fica-nos a morte de um homem de letras portuguesas, um cativo do teatro vincentino e um devoto nem sempre regular das canções de escárnio e mal-dizer de que nos deu provas no Ressurge Goa dos anos de exílio.

Amigo da minha família, Telo de Mascarenhas impôs-se-me sobretudo pelo amor à Terra regado com anos de cárcere no exílio. Pena foi que educado mentalmente nos padrões da cultura jurídica do mundo latino não pudesse ajustar-se ao calão da Terra de que tanto se orgulhava. Dele se podia dizer “mal com os homens por amor à Terra, mal com El-Rei por amor à Terra”.

Como homem de Letras, Telo de Mascarenhas merece ser notado como poeta da tradição vicentina, das canções de escárnio e mal-dizer, um improvisador à velha moda portuguesa das desgarradas, um antigo que não chegou a alcançar os movimentos modernos da poesia e prosa portuguesa. Sendo assim, um poeta da língua lusa, era natural que até o sonho do Nacionalismo ficasse a mercê de suspeição e dúvida porque o local só aceita, porque compreende, unicamente o que se lhe diga em vernáculo ou no colonial mas ganha-pão inglês.

Curvando-nos reverentes perante a grandeza do sonho que permitiu aos Capitalistas maior mobilização de Depósitos e Investimentos em construções, alta de preços de terrenos e melhores facilidades de ensino para os filhos de mães goesas embora com um self-government corrupto, pedimos a Higher Power que nos tolha a mão antes de atirarmos a primeira acusação de Telo de Mascarenhas a paz do silêncio e da verdade junto da campa do grande esquecido Nascimento Mendonça.

Saturday 8 June 2013

RA - Quanto vale uma simples factura ou ditam os preços a subida da temperatura (1957)

O caro leitor já comprou um fato, não é verdade? Pois não se admire com a pergunta, porque, quase sempre, encarregamos disso as nossas consortes (a palavra não quer significar que elas seja “um poço de sorte” por nos terem conhecido) e elas é que tratam da escolha do padrão, discutem o preço, pedem para cortar uma polegada mais alegando que a fazenda encolhe, enfim, revolvem uma loja põem à prova a resistência dos nervos do empregado do balcão, e no final descobrem um defeitozinho que justifique um desconto de oito tangas.

Insisto, pois, com o caro leitor!

- Já comprou tecido para uma fatiota?

- Já, sim senhor!

- Esplêndido! Eu, também.

Ainda há dias entrei num estabelecimento da capital, e, com aquele ar superior de quem tem muitas Quintas lá na terra (é corrente ouvir-se: ‘tenho umas quintazinhas lá na aldeia que me dão umas quantas pipas’) disse para o empregado: “Ora eu quereria uma fazenda para fato... e o homem nem de deixou dizer mais nada, correndo solicito para as prateleiras e tirando a fazenda que lhe parecia, a matar para a minha aparência de proprietário de ‘Quintas’. O patrão interveio para elogiar o tecido e a afirmar “sob sua palavra” que o mesmo não perdia a cor, sendo baratíssimo para a qualidade. Não deixei que acabasse o seu brilhante discurso. Atalhei-o quando, possivelmente, iria cair no capítulo de mais difícil digestão: o preço. Disse-lhe que sim senhor, que estava encantado com o padrão e a qualidade, que há muito procurava em todas as lojas aquela fazenda e, por não ter encontrado, já tinha desistido de a comprar. Feliz a hora em que tinha trasposto as portas do seu estabelecimento, porque via renovarem-se as esperanças de adquirir o fato com que há muito sonhava. Pena é que hoje não possa ser – disse-lhe eu. Retomei aquele ar de proprietário de Quintas (tenho uma todas as semanas) e atirei-lhe, olhando por cima dos meus óculos: Sabe, eu hoje – e acentuei com ênfase a palavra ‘hoje’ – quero uma coisa qualquer, daquelas ‘para bater’, um tecido inferior, de baixo preço.

O dono da loja, retribuindo em hipocrisia, afirmou que ia apresentar imediatamente o que eu desejava, artigo muito bom, de categoria e baixo somente no preço... um preço módico de 6 rupias a jarda. Mesmo assim fiz encher de peças o balcão (quanto aprendemos com as mulheres!), e foi preciso recorrer a um catálogo de amostras para escolher o padrão mais harmonioso com o tom da minha tez (tanta exigência chega a ser uma tristeza!). Três jardas cortadas, pago o custo... e um pedido que quase nunca fazemos: “se não se importa passa-me uma notazinha... só para ficar com o nome da Casa... o senhor foi tão amável!...”. Acrescentei ainda, “não posso esquecer esta fazenda!...”

Dois dias depois recebia em recado pelo qual o alfaiate – aquele que empresta alguma estética ao fardo que arrasto – me existia “mais um palmo” de tecido para a gola.

Eis-me de novo no estabelecimento que possui a jóia de fazenda que eu disse ambicionar e que nunca desejei nem em sonhos. Atende-me um outro empregado.

- Olhe, eu queria um palmo desta fazenda... um momento... tenho aqui a amostra.

O rapaz procurou por aqui e por ali, acabando por encontrar a mesma peça donde tinham sido cortadas as preciosas três jardas de calibre 6 (segue na quarta pagina)

(seis rupias, claro!).

- Posso cortar? É somente um palmo que deseja, não é verdade?

- Sim, corte!

- Quanto é?

- Ora, a sete rupias a jarda...

- A sete rupias a jarda? Mas está enganado!

- Não... não... Como sabe a nossa casa tem preços fixos... e não podemos baixar nem uma poiçá...

- ... Mas está provado que podem subir!

- Não, nunca! Temos a maior consideração pelo freguês etc etc.

- Então como me explica que eu tivesse comprado esta fazenda, desta mesma peça, a 6 rupias?

- V. Exa. está equivocado.

Calmamente procurei no meu porte-papéis a factura do dia 30 de Março (sim, compras só no fim do mês) e submeti-a a cuidadosa apreciação do leal zelador do “Preçário” da “casa dos preços fixos”. O moço desatou a abanar a cabeça com a rapidez dum pêndulo de relógio que adianta oito horas nas vinte e quatro, e respondeu: “Sim... Senhor pode levar.”

E assim, por ter solicitado uma factura, salvei-me de perder umas tangas num palmo de tecido “para bater”... mas ainda hoje penso se naquela casa de “preços fixos” se não teria verificado um fenómeno físico que o empregado não me soube explicar. Vejamos o caso: quando comprei as três jardas, - há muito as chamadas lâmpadas eléctricas tentavam imitar os lumes dos diuleiôs, corria um ventinho agradável e a temperatura era bastante amena; três dias passados quando comprei o tal “palmo de fazenda” batiam as 16 horas, o sol escaldava, tudo estava quente como brasa. Não teriam os preços sofrido, com a subida de temperatura, uma dilataçãozinha... ali, naquela casa de PREÇOS FIXOS?