Sunday 11 August 2013

Walfrido Antão - Diário de um Poeta em Férias: O Sonho e a Nausea (1968)

Esta noite choveu granizo na aldeia. Será? Não. Deve ser cacimba mas a aldeia traz um ar levado, fresco, loução como o de certa mulher ainda inocente. Lembra-me certas sequencias do filme “La notti bianchi” (Noites brancas) de Dino de Laurentes. “Noites Brancas” era se não me engano o título dum romance de Dostoiewsky que Dino de Laurentis usou para fazer ciente ao mundo o talento e a Arte da atriz Maria Scholl.

Leio um poema de Jagadish intitulado “Ek Git Morta”. Há música, sensibilidade, intuição artística no seu verso. “Kavi” é poeta em Concanim. Será Jagadish poeta? Nem por sombras pensar o contrário. O caso do “Kavi” ou poeta lembra-me uma noite na Casa de Fados em Alfama. Berta Cardoso cantava “Aquele amor foi à Índia”. Tristão da Silva apresenta-me um escolar de Coimbra – Pinheiro ou Torres, não me lembra já. Alto, espadúado, “machakaz” como se dizia lá. Grosso como diria uma certa Nur Jehan que eu conheçø. A poesia e o físico. E acrescentava Tristão da Silva que ele era poeta. E ele sabia o que dizia porque era Artista também. Ser artista é ter coração, sangue, alma, nervos, sensibilidade e um grande amor ao homem condenado à Morte.

A Morte, essa sim é a única certeza existencial. Daí o absurdo, o desespero, a angústia e o “l’homme revolté” de que fala Albert Camus. A escolha vem depois. O “choisir” de que difere um Sartre. Como “Camus” diz ao abrir tragicamente “Le Mythe de Sysiphe” – “o único problema verdadeiramente filosófico é o do suicídio”. Como dizia uma vez Camus no Café Deux Magots, se o homem tem de morrer após uma vida inteira de trabalho, de estudo de cultura, então já não existem valores. Vale vazar até à náusea a existência condenada ao não valor ou seja o silêncio da “funérea Beatriz de mão gelada”. E a Esperança de que falam os neo-existencialista com os “Beatles” ou os “Hippies” que falam da meditação transcendental da Índia? Aquela Corrente, aquela Voz? Qual é o significado do “Thee” de que rezam os escritos de Swami Vivekananda? E Cristo esse Herói do Amor que perguntado se era Deus respondeu “tu o disseste”.

Está uma madrugada nevoenta agora. Mulheres vão a caminho do verzedo. Uma Quitéria, uma Rosa, uma Letícia, quem sabe: a pimenta cujo cheiro atraía caravelas do século quinhentista como diria Oliveira Martins, o arroz provisão e celeiro da fome de um ano, uma melancia, vegetais quem sabe.

Sim, tenho de ler o que Amadeu escreve sobre o arroz. O arroz, suor e sangue de todo um povo que os açambarcadores resolve em notas e ofícios ou em termos de agiotagem e lucros. Para resolver os problemas do povo seria bom que os grão-senhores descessem de suas majestades gabinetes até o povo para ver o sacrifício dessas Quitérias anónimas que sustentam a Cidade e os mercados.

Sim, tenho de deixar este diário. Aquela personagem “Sunita” pede-me que componha a sua história ou seu drama no meu conto: um amor proibido, a casta, a diferença de religião, um matrimónio arranjado, a África, a solidão, a ternura esfarrapada. Mas o jornal para quem escreve é como se fosse um primeiro amor que se não esquece. Como diz o Teles quando a gente entre para a Rádio é a mesma coisa.

O burguês acorda agora. Sorri para a mulher. Há qualquer coisa de glutão no seu olhar. O toucinho se calhar me lembra a música dos versos de Jagadish “Ek Git Morta”. Kavi, qual é seu fado?

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