Friday 24 February 2012

Orlando da Costa - “Ao Escrever “O Signo da ira” paguei uma dívida para com a minha terra e a minha gente” (1962)

Com numerosoa assistência, mas sem desnecessários formalismos, o que veio sem dúvida propiciar o alegre convívio e a excelente camaradagem reinantes no jantar na “Cozinha Alentejana”, realizou-se a anunciada homenagem ao escritor dr. Orlando da Costa, recentemente distinguido com o Prémio Ricardo Malheiros, atribuído pela Academia das Ciências ao seu livro “O Signo da Ira”.

À direita e à esquerda do homenageado sentara-se, respectivamente, a senhora de Massaud Moisés, o professor catedrático e escritor de origem brasileira em visita ao nosso pais e especialmente convidado a participar deste jantar, e a escritora Lília da Fonseca.

Entre os assistentes, encontravam-se alguns destacados vultos das letras e artes portuguesas, além dos amigos e admiradores de Orlando da Costa, que lhe promoveram esta tão simpática quanto merecida prova de apreço.

No final, o escritor Urbano Tavares Rodrigues, que em belo improviso traçou o perfil psicológico e criador de Orlando da Costa disse calorosamente: “O Signo da Ira é um livro forte e puro onde se verificam indissociáveis a qualidade literária e a qualidade humana do seu autor; porque seja qual for o modelo estético ou a concepção sociológica adoptada pelo escritor, através do realismo critico, do realismo socialista ou do “nouveau roman”, o essencial para se conseguir um bom romance é ter talento. Mas –acentuou – algumas obras transcendem esse acabamento artístico, na medida em que se tornam, palpitantes documentos de comunicação humana – é o caso de “O Signo da Ira” que, paradoxalmente, apesar do seu título, se revela um livro de comunhão entre os homens, um livro do amor”.

Concluiu afirmando que a Academia das Ciências, ao honrar com o prémio “Ricardo Malheiros” “O Signo da Ira”, se honrara a si própria, assumindo uma nobre função reveladora dos valores do espírito nem sempre respeitados entre nós.

Falou, a seguir, o homenageado: “penso que incondicionalmente devo e posso repartir a minha alegria, a intocável serenidade interior deste momento com todos os presentes e com muitos ausentes”.

Referindo-se, depois, às suas ligações com o “Cancioneiro Geral”, prosseguiu: “No entendimento da confusão achei a clareza e na coragem a única virtude combativa. Nos meus tempos de juventude, dei tudo quanto podia dar em provas de atitude e em provas de testemunho e guardo para sempre a consciência serena de não ter mentido e de não me ter traído”.

Continuando a falar sobre o neo-realismo, disse ter-lhe ficado a dever a sua maturidade de escritor. Mais adiante, observou: “Tal como nas genealogias das famílias, os movimentos não se repetem; nenhuma aquisição sua se repete. Tudo se repercute. Tal como alguns outros autores e livros ultimamente publicados, considero-me e ao meu romance “O Signo da Ira”, uma repercussão actual, directa e conscientemente, do neo-realismo, na literatura de língua portuguesa”.

Aludindo, seguidamente, à liberdade de expressão, Orlando da Costa declarou: “Desejaria prestar a minha admiração aos intelectuais e escritores portugueses aqui presentes e aos ausentes que têm incansavelmente defendido, como algo de sagrado e indiscutível, o direito à livre expressão e à livre criação artística”.

Wednesday 22 February 2012

Carmo Sabóia - O Mosquito e o Junco (1966)

Há já um ror de anos numa selva, perto de um rio, chamado Ganges, vivia um poderoso maharajá de nome Rama, senhor de uma avultada quantia de oiro e prata.

Um belo dia, o soberano mandou chamar todos os ourives e escultores ao seu palácio, ordenando-lhes que se apresentassem lá com os seus últimos trabalhos, pois desejava escolher a obra mais primorosa, para ter na sua corte.

Vieram lá ter com o nobre muitos artistas, em cumprimento à sua ordem uns, velhos com barba já cheia de cãs; outros novos em que a barba mal tinha despontado. E cada um pôs-se a exibir as suas obras: arrecadas, broches, braceletes, pulseiras, eu sei lá...

Entretanto, comparecem lá um jovem de tal modo alto e delgado que ao inclinar-se, parecia um junco vergado pelo vento. Este mancebo trazia uns anéis trabalhados com tanto primor que o soberano assombrado ao ver aquela obra tão válida prometeu oferecer-lhe carradas de ouro e prata para fabricar milhares de anéis.

No dia seguinte, o artista pôs mãos à obra.

O fidalgo permanecia silencioso, imóvel; comtemplativo ao lado do exímio cinzelador, pois gostava de ver aquelas mãos de dedos compridos e delgados que se mexiam como pernas de aranhas, trabalhavam com tanta celeridade e mestria...

Quando dava por terminado um par de anéis, pulava de contente, levantava a cabeça e o seu olhar passava por uma janela e ia perder-se num carreiro de terra vermelha, lá muito ao longe, entre os exuberantes palmares daquela pitoresca selva, a beira do rio. E o nobre aproveitava aquelas breves pausas para lhe observar que a obra se ia aperfeiçoando cada dia mais. E o artista baixava os olhos e punha-se outra vez a trabalhar.

Num abrir e fechar dos olhos deslizaram os dias e, uma manhã, o insigne artífice deu por acabado o seu trabalho. E foi nosso altura que o fidalgo lhe disse:

“Vamos carregar todos os anéis numa canoa e amanhã iremos distribui-los pelos seus amigos.”

E assim fizeram. Encheram uma canoa de anéis e lá se foram ao rio.

Era uma tarde sombria, quente, pesada. Nuvens negras escureciam os ares e uma chuva torrencial entrou a se espalhar por terra. Entretanto, na margem cantou um martinho e um bando de gralhas atravessou o rio e escondeu-se na floresta um vento desabrido e uma vaga entrou na canoa que imediatamente foi a pique.

O maharajá e o artista conseguiram nadar até à margem do rio e puseram-se a olhar daí para as ondas, esperando que as águas lhes devolveriam o que lhes tinham arrebatado. E, quando cessou a intempérie, pela noite, o soberano disse ao cinzelador que fosse voando... e perguntasse a todos se tinham visto seus anéis: notou-lhe também que ele ficaria na margem do rio, esperando que o rio lhe devolveria os anéis.

E foi desde essa noite que o maharajá que se transformou em junco, e o artista em mosquito. É por este motivo que os juncos ficam nas margens dos rios, esperando que os rios lhes devolvam os anéis e os mosquitos parecem perguntar:

“Os meus anéis? Os meus anéis?”

Se non è vero, è bene trovato

Tuesday 21 February 2012

Leopoldo da Rocha - O Signo da Ira de Orlando da Costa (1961)

Sensibilidade altamente poética, vibrando às angústias da situação humana presente e expressando-me em cânones modernos, Orlando da Costa, nosso jovem conterrâneo, foi, há coisa de dois anos ou menos, saudado por um grande diário de Lisboa como o valor mais representativo no actual panorama literário de Goa.

Pela sua formação intelectual (é licenciado em História e Filosofia), e uma sensibilidade estética esquisita, determinada pela circunstância de ser filho da terra, Orlando da Costa oferecia a mais forte esperança de vir a apresentar-se um raro intérprete da alma goesa. E de facto, pouco tempo passou, e precisamente em Fevereiro de 1961, Orlando da Costa brindou as letras portuguesas com um novo livro, desta feita um romance, “O Signo da Ira”, todo ele ambientado em Goa e que, sem favor algum, basta para firmar os seus créditos como um romancista de garra, perfeitamente a ombrear-se com os contemporâneos de maior vulto, na moderna literatura portuguesa.

“O Signo da Ira” tecnicamente filia-se na corrente do romance social. Popularizado por um John Steinbeck, um Caldwell, um Jorge Amado (em Portugal tem seguidores em Fernando Namora, Redol, etc), o romance social quadra admiravelmente para veículo de expressão das ideologias sociais mais variadas, pelo recurso a um inesgotável material humano, susceptível de transfiguração artística.

Da terra que lhe dera berço, lembra Orlando da Costa, um dia, aos 18 anos, quando dela se separara, junto com a saudade amorosa, um travo de angústia pela miséria que via à roda, uma revolta por uma condição humana que um código social implacável e multissecular canonizara, votando a um destino negro sem saída, um classe de seres, que assim vive a sua humilhação e opróbrio, à beira da prepotência e desmandos de uns poucos. “O Signo da Ira” materializa dramaticamente esta “condição humana”

Num pequeno povoado, vive um punhado de famílias curumbins, manducares do sinistro Bab-Ligôr, na preoccupação obsediante da colheita da vagana. Mundo baço este, pobre, de uma pobreza que toda a mais abjecta miséria, de um primitivismo chocante. Mas quanta humanidade ali, quanta verdade naquelas almas labregas e rudes: Natel nascendo às surpresas inquietas do amor; Bostião sonhando o seu lar após a colheita da vangana; Quitrú vivendo dia a dia, hora a hora, a alegria do seu primeiro filho que tem no ventre; Coinção, de alma grande e bela, sacrificando num gesto heróico a sua felicidade e vida; Jaqui, Pedru, Rumão... Que painel de figuras humaníssimas e magistrais!

Sobre esse fundo, que se afiguraria pobre estofo, Orlando da Costa construiu uma trama admirável, que se lê de um fôlego, com um cescendo de interesse até o fim.

Mas o que faz a grandeza de “O Signo da Ira” não é tanto o equilíbrio da carpintaria romanesca – raro num que se estreia no género – como o sopro de um lirismo ímpar que perpassa pelas páginas deste livro, misturado a uma profunda melancolia que nos comove até o fundo. Indubitavelmente Orlando da Costa ama esta terra com todas as fibras da sua grande alma. Este seu amor, aliado a uma sensibilidade poética das mais puras, faz-lhe descortinar belezas virgens nesta terra onde menos imagináramos, recorrer a imagens de sabor regionalíssimo e, por isso mesmo, de recorte admiravelmente fino e impecável, tudo na magia de um estilo sóbrio e de uma harmonia surpreendente.

Eis numas amostras respigadas à toa, como ele casualmente se refere a Natel virand ao Amor:

Quase ausente da terra, Natalparece ter os sentidos mais atentos e sensíveis, como se fosse capaz de ouvir o próprio capim a crescer... A sua pele esticada e escura está luzidia, como as folhas da jaqueira lavadas pela chuva (p.29)

E só um poeta podia ter colhido num instantâneo maravilhoso a imagem de beleza e ternura que Pedrú bêbado, inconscientemente gravou, naquele dia em que passeava despreocupadamente a sua folga, e brutalmente se viu açoitado por um expedicionário “pacló”, não menos bêbedo que ele:

Rumão era o responsável pelo fim que tivera a filha, não tinha dúvidas – pensa Pedrú – mas o outro, o outro, gozando de uma revoltante impunidade, amesquinhara-o até onde se pode, agredindo-o e lançando-o à terra num dia em que, no meio de uma alegria imperfeita mas Sabrosa, gozava com os outros um dia de descanso, bebendo fenin e comendo grão assado (p.263)

O que caracteriza a arte de “O Signo da Ira” é esta poesia funda, que bebe as raízes numa visão telúrica da paisagem dos homens e coisas. Por isso, os conflitos que Orlando da Cosa descreve, se desenrolam sempre contra o fundo duma natureza cruel e cega; homens em briga ou diálogo com a terra. Ainda a psicologia das reacções se determina por uma instintiva comunhão da natureza, que empresta à sua arte uma luz vivíssima. Veja-se o episódio em que o soldado expedicionário às furtivas no bambual espreita o banho de Natel ao poço:

“... E resolvera espiá-la, de longe. Aí a tinha. Nunca o seu coração se alvoraçara daquela maneira (...) Talvez fosse do sol que os iluminava a ambos, do ar transparentes e livre, do verde que cresce no chão para ir acabar no alto dos cajueiros da encosta. Como se ela estivesse inteiramente só – pensou ainda – tudo fosse dela.. só dela (p.129-130).

E que dizer do desfecho, após a confissão inesperada de Natel ao Padre Antú? É toda uma página de um lirismo arrebatador, sim senhor!

Terminemos.

Quando só contava 18 anos, deixara Orlando da Costa esta sua terra. Levara consigo então, na sua alma ardente, todo um poema de luz e melancólica tristeza. No gemido da opressão, no olhar dorido de tanto sofrer ele suspeitara um grito de revolta, uma faísca incontida. Quantos anos passaram desde que Orlando da Costa nos deixou! Por isso, a versão que ele nos oferece, a ser verdadeira, é válida também para os dias de agora. A gangrena deve continuar, túmida de bichos, prestes a rebentar. Mas processar-se-á necessariamente a evolução das instituições do passado por uma viragem brutal, sob o signo da ira?

Um decidido pendor para uma certa “visão da vida” é propícia a falsear a realidade sobretudo num artista, tentando-o a carregar os tons nos aspectos sombrios. Como resultado imediato, a criação dos personagens ressente-se na verosimilhança, pecando naquela “lógica interior” de que nos fala algures Fialho.

Verdade, as crianções de “O Signo da Ira” são terrivelmente perfeitas, nem Orlando da Costa lhes empresta uma interioridade psicológica, absurda naquelas almas simples. Mas poder-se-á outrotanto dizer do Bab Ligôr?

Que ferocidade, injustiça e cinismo naquela figura sinistra! Pretenderá Orlando da Costa apresentá-lo como tipo do batcará goês?!

Era tão bom que Orlando da Costa, afim de vencer incertezas, contactasse de parto, esta nossa realidade, de novo. De certo lhe surgiriam, então, novas luzes e nos daria mais depoimentos da sua pena brilhante, que nos fizessem vibrar às nossas belezas ignoradas, amar a nossa querida terra, chorar a miséria do nosso povo.

Sunday 19 February 2012

Laxmanrao Sardessai - Simplicidade (1965)

Dai-me, ó Deus, palavras singelas,
E simples, claras –
O céu azul é simples,
É simples o mar azul
Simples e claros o sol e a lua
É clara a água do fonte
São claros os olhos do infante,
Simples é a alma do santo
Tudo o que é universal
É simples e claro
E vasto e profundo
Quero, pois, ser simples
Como o sol, a lua e o mar
Mas vasto como eles.
Reside na simplicidade
O mistério do Universo.
Dai-me, ó Deus, uma alma
Simples e clara
E palavras também simples
Para cantar em versos simples
A maravilhosa simplicidade do Universo!

Friday 17 February 2012

Loximona Sardessai - Areia Branca (1965)

Areia branca… branca…
E perto as palmeiras
Colunas brancas, brancas
Encimadas de olas verdes
Ao sabor da brisa, balouçam ligeiras
E as sobe lesto o jovem rendeiro,
Despreocupado canta na copa sentado
E vê o mar verde-azul
Onde as brancas velas,
Quais ideias dum santo,
Avançam graciosas – serenas
E canta – canta
Forte e alegre
Dominando o céu, o mar e a terra
Areia branca… branca
E perto as palmeiras.

Laxmanrao Sardessai - Um Ideal me Acena (1965)

Quero recuar... recolher para o silêncio.
Sede da escuridão que encerra luz!
Silêncio em que o espírito se dilata
E se funde no invisível a força perdida
Em companhia dos que querem fama e glória,
Poder e riqueza, discursos e aplausos,
Elogios e chefias! Só isto e nada mais!
Estou num dilema. Dum lado está
A solidão, o silêncio que eleva.
E doutro: o turbilhão que rebaixa.
Mas um ideal de longe me acena...
Convidando para o sacrifício!
Não? Não recuo. Vou para a frente,
Cercado dos espectros da ambição
E de tudo o mais que odeio.
Mas vou com coragem e decisão
Porque um ideal me acena!

Thursday 16 February 2012

Laxmanrao Sardessai - Eu Cresço em Força (1966)

Eu cresço em força...
Quando vejo os outros desfalecerem
Porque sei que a minha força
Um dia irá insuflar neles
Novo sopro e nova vida.
Podem cair todos, todos,
Se eu continuar firme e forte
Como o monte que não se abala
Quando vê cair, pelo varrer da tempestade,
Todas as árvores
Que cresceram no seu dorso.
Podem cair todos, todos,
Que da poeira da sua queda,
Surgirão outros
Mais fortes, mais fortes...

Wednesday 15 February 2012

Manohar Sardessai - Não Chores, Flor Mimosa (1964)

Não chores, flor mimosa,
Acalma-te e não chores,
O teu amado foi colher
Estrelas floridas.
Também nós sentimos a solidão
E, no peito, da dor a opressão,
E, como meninos desamparados,
O buscamos por todos os lados,
A sua força era
O teu e meu vigor.
Não chores, flor querida,
Serena-te, não chores.
Também o nosso coração
A ele o havíamos consagrado.
Também nos punge hoje
O espinho do amargor.
Antes que tuas pétalas murcham,
Enxuga as lágrimas, sossega,
Não chores, flor mimosa
Acalma-te, não chores.
O seu sorriso luminoso
Em noite de lua cheia há-de-brilhar,
Sua cor avermelhada
Despontar na madrugada.
Sua memória perfumada
Jamais se há-de apagar.
Não chores, flor mimosa,
Acalma-te, não chores.

(tradução livre da poesia “Roddam naka fula!” de Manohar Sardessai)

Tuesday 14 February 2012

Laxmanrao Sardessai - Paredes (1966)


Não quero essas paredes e estes tectos
Que estorvam o ar e a luz
Quero inundar-me em pleno
Nos raios solares.
Quero respirar o ar, puro e fresco,
Quero sentir a noite
No seu silêncio escuro e profundo
Quero a chuva torrencial
A zurzir-me como látegos
E nela tiritar...
Quero devorar a vide livre
Das montanhas e dos mares,
Quero assim, dilatar
O meu corpo e a minha alma
E envolver no meu abraço
A Eternidade!

Laxmanrao Sardessai - Momentos (1965)

Há na minha vida
Momentos...
Pungentes... cortantes...
Mas, momentos
Que assaltam,
Vaidades e grandezas fátuas,
E regeneram.
Momentos,
Justos e intemeratos,
Como juízos íntegros
Que me facultam
Visão rara
Que aponta e realça
As minhas faltas,
Sepultadas no passado,
Que o vulgo reputa glorioso
E me exalta.
Momentos
Que são duros como a verdade,
Inexoráveis, como a fatalidade,
E tingem de extrema humildade
A minha altiva personalidade.

Momentos
Que, quais raios celestes.
Iluminam, de noite, a terra
E deixam, ver, em um instante,
O sorvedouro que está diante.
Momentos
Pungentes, cortantes
Mas benfazejos,
Que dimanam da Graça Divina
Como o orvalho dos Céus!

Laxmanrao Sardessai - A Sementeira (1966)

Eu faço a sementeira das ideias
Que são como as almas
Que animam os corpos.
Mas dizem-me os sisudos:
“Tuas ideias são abstractas
E não alimentam...”
Abstracta é a luz,
Geradora da vida.
Abstracto é o ar que se respira,
Abstracto o céu
Que é o continente
De toda a matéria.
Assim são abstractas,
Muito mais abstractas
Do que a luz, o ar e o céu –
As minhas ideias que alimentam
As almas de todos os homens.

Monday 13 February 2012

Laxmanrao Sardessai - Ideias e Rupias (1965)

Eu tenho as ideais e outros, as rupias
E um conflito eterno reina entre elas.
Quantas vezes, quantas,
Ofereceram-me rupias.
Que me dariam tudo:
Palácio e criados,
Carros e vinhos,
Sedas e diamantes,
E também belezas!
E em troca – só queriam ideias!
Que tentação!
Mas fui feliz em a sacudir.
Pois se desse as ideias,
Seria apenas um cadáver!
Agora sou pobre, sim.
Mas tenho as ideias
Que engendram revoluções!

Friday 10 February 2012

António Furtado - Apreciação Literária de Hipólito de Menezes Rodrigues (1966)

Lá pelas alturas de 1924, conheci Hipólito Menezes Rodrigues em Lisboa. Tempos depois, viria a descobrir o grande espírito de Adeodato Barreto, de quem fui compadre e o poeta Eucaristino Mendonça, autor do poemeto “Hindus”, de ritmo sensualista e pagão, vivo e colorido.

Natural de Goa Velha, Hipólito Rodrigues fez o curso de Farmácia e era um dos candidatos para o lugar de Director da Escola de Farmácia de Goa. A maior parte de concorrentes era de goeses. Havia alguns portugueses, mas de traça cotação académica.

Tornou-se nesse tempo obrigatório o concurso de provas práticas para se poder manejar com destreza o candidato favorecido. O Governo Português tinha as suas razões: não fosse um canarim estar à testa dessa Escola que até aí fora monopólio de portugueses. A escolha caberia ao Governo. E, de facto, consagrou-se a tradição, preterindo os goeses prestimosos.

H. Rodrigues sentiu-se deprimido. Malograda a sua ânsia de voltar para Goa, requereu para uma das vagas de Farmácia do “Império Português”. Ao tempo, a escolha de goeses para funções públicas não era bem vista e dava lugar a prolongadas demoras. H.R., de compleição delicada, com uns olhos sonhadores, de extrema bondade e cheios de uma suave melancolia, tentou, durante essa pausa, dar forma aos seus ideais e sentimentos de esteta.

Em 1925 ou 26, encontrámo-nos no quarto do Dr. Aniceto Dias, de quem o Poeta era amigo dedicado. Aí, num desses encontros, ele revelou a sua “mania de versejar”. Conquanto tivéssemos apreciados a sua acurada forma literária, os versos que lera, retratavam um sentido trágico da vida. Um amostra:

Quando é que, ó bendito íris da paz,
Sossegar a minha ânsia tu virás
E dar por finda a minha amargura?

E mais esta:
Nas ruínas da minha alma destronada
De mortas ilusões, de rotos desenganos,
Como antigo profeta, eu choro a derrocada.

De certo, bruxeleava aí o prenúncio dum poeta que revelaria depois a sua plena florescência. O seu lirismo terno, quase imaculado, iria ao encontro de almas simples e bondosas. O seu estro afasta-se então do pessimismo, para sublimar-se num amor como o de lendas. A poesia “Súplica” aureola de luz uma moreninha que é para ele, santa:

Ó diz-me tu, diz, santa moreninha,
E não sejas má, ventura minha,
Que me tens amor, que gostas de mim...
E os nossos almas como o olor das rosas
Irão voando, romeiras vaporosas,
Agradecer a Deus ventura assim... 

Esse lirismo cresce em intensidade na poesia – "Nosso Amor no Campo" – tão ingénua e sensibilizadora, que lembra o naturalismo dos conhecidos protótipos de romantismo que um Bernardino de St. Pierre imortalizou no Paulo e Virgínia. É apologia do “Amor e Cabana”:

Que nos importa a nós, ó minha terna amada,
Que não possamos ter uma vida faustosa,
Essa vida infeliz, mentida, simulada,
Essa vida grotesca, enervante, ruidosa?

Que nos importam a nós palácios doirados,
Com soberbos jardins e varandins em flor,
A água saltitando em repuxos prateados,
Em libações subtis dum penetrante olor?

Se a nossa vida é linda como a manhã,
Fresca e pura como uma rosa a florir,
Se temos neste campo a alegria sã
Sob um céu de anil que nos parece sorrir!
Se o nosso peito alberga um amor puro e santo
Com pureza do lírio e ardor da mocidade
Um sonho de luar, de divinal encanto,
Amor sem pompa, sem riqueza, sem vaidade!

Lágrima, estrela que da miséria tombou,
Deus a recebeu e Deuc no céu a guardou.
Caminheiros de luz, de clarões infinitos,
Benditos sejais vós, oh! Mil vezes benditos!

O Prof. Sr. Pe. Filinto Dias, no seu Esboço da História da Literatura Indo-Portuguesa”, mostra no poema "Histabílis" que Menezes Rodrigues retratou a mudança e instabilidade da Vida tal como fez o brasileiro Raimundo Correia no soneto "As Pombas".

A propósito na Derrocada M. Rodrigues anseia pelo regresso dos seus sonhos e compara-os a pombas:

Quem me dera que voltasssem
Meus sonhos e remoçassem
A minha alma envelhecida!...
Como pombas que tornassem
E já nunca mais deixassem
A sua antiga guarida!...

Um poeta portugueês cujo nome não me ocorre, deixou sobre um tema igual um soneto magnífico. Os últimos versos do 2o terceto terminam assim:

Voltam pombas aos seus pombais
Os meus sonhos, porém, não voltam mais...

O que mais me impressionou no nosso Poeta é a sua tendência para canções ou quadras populares. Algumas destas têm tal poder emotivo que, se fossem vulgarizadas em Portugal, o povo as teria cantado. Neste género há aí um poeta consagrado: Augusto Gil. Os seus versos vão de boca em boca. O livrinho Luar de Janeiro poderia intitular-se Cancioneiro do Povo.

Vejamos algumas das quadras de H. Rodrigues. Numa destas, define o amor:

Quatro letras se traçavam
Duas sílabas se fundiam
E ninguém soube dizer
O quanto elas definam.
O seu tema predilecto gira em volta de morenas:
Morenas, lindas morenas,
Morenas de tentação,
Todos vós, lindas morenas,
Sois a nossa perdição!...

E mais esta:

Com o fulgor do teu olhar
Porque me queimas, Maria?
Vem bailar, sorrir, cantar,
Vem, que a lua nos alumia.
E esta outra:

Já te vi, minha bela rosa,
Num presépio cheio de luz.
Sorrindo toda jubilosa
Ao nosso Menino Jesus.

Compare-se esta quadra com a Augusto Gil:

Ficaste a rezar até
Manhã dentro, manhã alta
Como é que tens tanta fé
E a caridade que te falta?

Parece que Fernando Leal escreveu um soneto com um significado não muito diferente. Vou reproduzir truncado o que de memória me ficou:

Amas a Cristo, Nosso Senhor,
Que morreu por toda a gente
E não me tens amor
Eu que morro por ti somente...
Outra quadra do nosso poeta:
Palavras, eu as ouvi
Palavras, eu as deixei...
As mágoas que elas me deram
A ninguém eu as direi.

E esta de Augusto Gil:

Se aquilo que a gente sente
Cá dentro, tivessse voz,
Muita gente, toda a gente
Teria pena de nós.

E mais esta do nosso poeta:

Eu sei que me perdi, sei que pequei,
Porque o destino me não quis matar,
Quando tão desolada e só busquei
Trabalho honrado e ninguém mo quis dar.

E esta de A. Gil:

E há no mundo quem afronte
Uma mulher quando cai!
Nasce água limpa na fonte
Quem a suja é quem lá vai. 

Para terminar, mais duas quadras do nosso poeta:

Os versos que te cantaram
A prosa que te esculpiu
Nem se quer esboçaram
O que o meu peito sentiu.

Vejo aromas a evolar
Murchar flores no jardim
Mas jamais verás murchar
A que floriu dentro de mim!

Depois de passar a vista por esse precioso bouquet de poesias de Hipólito Rodrigues que o seu irmão, Alberto Rodrigues, outro poeta de merecimento, enfeixou com o título de Luz e Sombras, fica-se com a impressão de que essas poesias foram escritas, não com um plano premeditado, mas conforme lhe acorresse límpido veio de inspiração.

De certo, Hipólito Rodrigues enriqueceu as letras portuguesas com tão carinhoso sentimento que poucos poetas do se tempo o teriam ultrapassado em intensidade lírica, superior aprumo e vibração. Por isso mesmo, Alberto Rodrigues merece apreço dos que amam as belas letras, por ter arrancado do esquecimento esse poeta suave, de infinita ternura para os sofrem e de coração rasgado para os que lhe abrissem o coração, ofertando-lhe, em ritmo e graça, redobrado amor.

Laxmanrao Sardessai - Esperança (1965)

Ao 'tornatto' Sérgio Carvalho

Vi-te falar, o outro dia,
E vi nos teus olhos refulgirA flama do amor pátrio
E no teu rosto expandir-se
A dignidade ferida do povo.
Falaste pouco,
Mas nas tuas palavras ardentes
Vi o fogo da alma e o ideal
Que te anima.
Elas para mim valem mais
Que tantos discursos elaborados
Dos nossos políticos consumados
Porque tuas palavras, simples e claras,
Revelaram a tua infinita coragem
E a tua decisão.
Ó jovem! Tu és a nossa esperança
No futuro próximo e distante!

Laxmanrao Sardessai - Eu Canto a Sua Glória (1966)

Chove a cântaros e sopra rijo,
Arvores frágeis caem,
Rios de água rubis correm pelas ruas,
O céu turvo solta bramidos constantes,
E a louca chuva varre a superfície da terra
E tudo está envolto numa nevosa densa.
Aves e animais recolhem
Aos seus asilos quietos,
Voam os telhados das casas,
Os ramos das árvores
Se estorcem em doída fúria,
Os homens tremem
Envoltas nas trevas;
Um deles balbucia
“Meu filho partiu hoje
De avião para Europa”.
Lamuria o segundo:
“O barco da mina mercadora
Está em perigo”.
O terceiro chora:
“Ainda não fiz
A colheita de cebolas”.
O quarto diz:
“Está estragada
A cultura da minha pimenta”.
O quinto queixa-se:
“Maldita chuva!
Não posso sair
Que a rua está lamacenta
E o meu calçado ficará sujo”.
Só eu folgo com esses êxtases da Natureza
E, de corpo e alma,
Participo na sua dança violenta
E canto a sua glória.

Monday 6 February 2012

Laxmanrao Sardessai - Os Meus Sonhos (1965)


Às vezes, quando estou só
É longe do tumulto da cidade
A contemplar o céu, tão simples
Nas suas cores e linhas
Saem da minha alma
Umas avezinhas brancas, brancas
Que batendo as asas começam a voar
Na direcção do horizonte rubro
E os contemplo embevecido, comovido
Porque saíram da minha alma
Que as alimentou, as acariciou
Durante meses e anos!
Mas agora me abandonaram
Ávidas de liberdade e acção
Fatigadas do cativeiro da minha alma
Encerradas nas trevas da inacção!
Mas eu as contemplo quais pontos
Alvos rubros ou doirados
Em busca da celeste vastidão
São as minhas ideias!

Friday 3 February 2012

Visnum Porobo Sincró - Matrimónio (1962)

Sempre é praxe depois da união,
Irem os noivos caminhando a par
Bem-aventurados e unidos pelo coração,
Lema seguido pl’os que anseiam o lar,
Iguais desejos, virtudes mesmas tornam
Namoro feliz; para ser cimentada a base
Afanosamente almejando se igualam
Entre louros e bênções a última fase!
Alcancem todos os gozos e felicidades.
Bem guiados e intimamente unidos,
Enfiando as mãos em todos os sentidos,
Lembrando sempre de Deus nas necessidades
Sempre unidos nas boas e más ocasiões;
Tenham um lar ditoso cheio de prosperidades.

Thursday 2 February 2012

Adeodato Barreto - O Génesis da Mulher (1963)

Poesia, escrita pelo Autor aos 17 anos, provavelmente quando partia para Portugal: “Com a ingenuidade própria dos verdes anos, e muito em segredo, transmitiu ao papel os anseios de vida amorosa que lhe desabrocharam na alma. Numa exaltação romanesca, pôs em verso as primeiras experiências sentimentais, que tanto se nutriam de grandes esperanças como de pequenas desilusões. E uma vez que se picou nos espinhos de certa rosa, deixou correr o fio de inspiração, temperando-o com azedume nestas graciosas redondilhas (Lúcio de Miranda)

Deus, logo que fez as flores,
Parou e pôs-se a cismar...
- Falta a flor dos meus amores.
Vou outra flor inventar.

Colheu lírios e boninas,
Rosa... cravo e malmequer,
Mogarins, zaiôs e cravinas...
E fez de tudo a mulher.

Viu, porém, que a nova flor
Era a que mais graça tinha
Disse, então, cheio de amor:
- Não és só flor, és rainha!

Pôs-lhe na fronte a pureza,
Na boca um terno sorriso,
No coração a firmeza...
Esqueceu dar-lhe... juízo.

Clara de Menezes - Sino da Minha Aldeia (1972)

Tange o sino da aldeia. É a alvorada
Já em pé, reúne a roupa a lavadeira
E indo lesta a caminho da ribeira
Bate que bate até ficar cansada

Uma criança vai ser baptizada,
Segue um morto à morada derradeira,
Há casamento ou festa da Padroeira
E o sino canta sempre a sua toada

É meio-dia e ele convida-nos a orar
E o lavrador do campo a descansar
Após uma manhã de árduo labor.

São as ave-marias e ele toca
E a gente da minha aldeia invoca
O auxílio da Virgem, com fervor.