Thursday 15 March 2012

Pedro Correia-Afonso - A Cor Local na Obra de Orlando da Costa (1961)

A favor do impulso que a minha curiosidade recebeu das opiniões contrárias que ouvi sobre o livro, sem dúvida empolgante, de Orlando da Costa – “O Signo da Ira” – acabei de o ler em poucas horas. Li-o também cativado logo de princípio, pelo aviso prévio do autor:

“A narrativa que se segue trata de pessoas e factos imaginados. Nela apenas a terra pretende ser verdadeira e a natureza em que ela se integra e se exprime. Tudo o mais é pura obra de ficcionista, em que à evocação, por um lado, e à imaginação, por outro, se aliou um destino de tragédia, subitamente revelado a cada um dos personagens que neste romance morrem ou sobrevivem. É neste encontro com o sentido trágico, o desespero humano na salvação e na destruição, a trajectória secreta, os pólos tangíveis do signo da ira”


Quando cheguei ao fim do livro facilmente acreditei que pessoas e factos sejam imaginados. O hediondo Bab-Ligôr tinha de ser inventado, Rumão, o taverneiro receptador de furtos parece retrato apanhado ao vivo mas pode sem dificuldade dar-se por imaginado em certos traços. Porque é que Orlando da Costa acharia prazer em gerar mostroengos deste calibre é para mim um mistério. Pelo menos a saudade poderia tê-lo levado a encarreirar o romance por veredas mais aprazíveis, sob o signo do amor. Mas de gustibus, diz o ditado, non est disputandum.

Seja como for, o que após a leitura do livro e em face dos copiosos apontamentos que tomei à sua margem, posso afirmar sem hesitação que, precisamente, é a “terra” e “a natureza em que ela se integra e se exprime” que são neste romance o traço mais falso e inventado.

É bastante estreito o horizonte em que este episódio se desenrola. O povoado onde os curumbins e as curumbinas de sua invenção vivem a sua vida de tragédia e sofrimento, sem, pelos modos, uma nota sequer, uma tonalidade sequer de alegria e de vivacidade, deve ficar situado algures atrás da capela de S. Joaquim de Bordá, no bairro de Marlém. No curto espaço de tempo em que a novela se desenolve e atinge o seu desenlace, nenhum ser vivo – homens, búfalos e cães – se move para além dos sítios de Gogola dum lado, Torçanzori para outro e o largo onde se reúne, defronte da cadeia civil, a feira anual da Conceição. O horripilante Bab-Ligôr, gancar de Margão e confrade, deve viver nas proximidades da Redação de “A Vida”.

Mas a leitura do livro francamente não desperta em mim o menor sentido de ambiência familiar. Gastei muita sola de sapato calcurriando pelos sítios de Gogola, Fatordá, Marida, Agally, até para alem de Arlém. As pedreiras são-me tão íntimas como as morodas e as vanganas. Mas francamente nunca me ocorreu que “a laterite exposta ao sol estonteante” faça “lembrar carne viva”. Talvez recordada à distancia de algumas décadas de anos e de milhares de quilómetros. Vista de perto, não. A coisa mais rebuscada e forçada que se encontra nestas imagens que o valor constrói para, a seu modo, dar vida e cor ao seu estilo e ao seu tema. Muito interessante, muito agradável talvez aos olhos de quem o leia em Lisboa mas muito artificial para quem o leia colocado no centro mesmo da sua paisagem local. Em um sítio tem Orlando da Costa esta estupenda comparação: “as várzeas de cômoro e cômoro ficarão entumecidas e dóceis como uma fêmea cercada pelo desejo e pela saciedade”.

Esta impressão de artificialidade, este sentido de arbitrário começa-se a sentir logo de entrada porque a própria sinfonia de abertura com que, entre vibrações de arcos a rufar de tambores, Orlando introduz o seu espectáculo soa a falso aos ouvidos dos conhecedores. Se não vejamos:

“Quando chegam as monções de nordeste, diz-se que chegaram os terrais. Mal sentem esse cheiro a terra que todos os anos desce dos contrafortes dos Gates e percorre o mesmo caminho dos rios e pequenas cordilheiras até chegar às planícies mais baixas, os búfalos sabem que novamente a terra os espera.

Soprando as copas verdejantes dos cajueiros e das mangueiras e espanejando docemente as olas no alto dos coqueiros, os terrais vão deixando um rasto de fertilidade até encontrarem o mar. À sua passagem, a cacimba cai lentamente e vai ensopando a superfície das terras lavradias e humedecendo o capim das encostas e caminhos.”

Quando eu pretendi classificar no meu íntimo este romance de Orlando da Costa, no seu conjunto de situações imaginadas, de comparações outrées, de posições forçadas e suspeitando que o jovem autor pretende, no fundo, insinuar no espírito qualquer tese ou teoria peculiar, ocorreu-me – desculpe Orlando o dizê-lo com franqueza – o termo de nefelibata. O dicionário deu-me esta definição em sentido extensivo e depreciativo: ‘Indivíduo que dominado por um suposto ideal, não atende aos factos da vida positiva, nem às lições da experiência”.

Francamente falando, aqui até a metereologia de Orlando da Costa é nefelibata.

A monção (não as monções) do nordeste é a que sopra sobre nós a partir de Novembro (o episódio abre-se realmente a fins de Novembro). Ela traz o terral (não os terrais). A monção do nordeste é a nossa estação fria e seca e portanto os caudais que Orlando vê com os seus olhos de saudade descerem dos Gates e percorrem os mesmos caminhos que os rios etc. não existem senão na sua imaginação. Os terrais não deixam atrás de si nenhum rasto de fertilidade se por isto o autor que falar dos nateiros que as águas correntes largam no seu percurso. Só trazem prosaicamente constipações, recrudências de situações asmáticas e, em velhos que se descuidem, a congestão cerebral. A cacimba é um fenómeno real mas ela, não vai ensopando as terras lavradias. A pior coisa que a cacimba faz é molher as copas das mangueiras e fazer, segundo a expressão vulgar, “crescer a floração”. Neste ambiente de meteorologia descompassada, é francamente ridícula a definição que no seu breve glossário Orlanda dá da vangana “vangana é a semeação que aproveita os terrais.” Donde se verifica que Orlando se acha persuadido de que terrais são realmente cursos de água. Erra também quando, no mesmo glossário, chama serôdio à cultura do arroz que se faz no período de monção do sudoeste. Serôdio é um adjectivo português que, tratando-se de frutos, significa “o que aparece no fim da estação própria”. O termo que Orlando quer é soródio, peculiaridade de Goa, derivado do concani sorodd.

Mais uma confusão de Orlando: em fins de Novembro nem homens nem búfalos sentimos “esse cheiro à terra” nem o tal cheiro é trazido pelas águas descendo dos contrafortes dos Gates; sentimos este cheiro, uns com agrado – os agricultores, outros com repugnância – os que tem propensão para espirros e constipações, as primeiras chuvas de Abril ou de Maio, quando as pancadas de água em batendo na terra seca fazem saltar a fina poeira que nos fere as pituitárias.

Tudo isto é evidentemente uma série de gaffes, produto da sua condição de pessoa dominada por um ideal que não atende aos factos da vida positiva nem às lições de experiências, contanto que possa tirar efeitos literários. Há muitas dessas espalhadas pelo livro. Diz por exemplo às pp.15: ‘Todos os anos, por duas vezes, se cultiva o arroz. Somente nas casanas, terras baixas paludosas, que marginam os rios, a cultura interrompe de oito em oito anos, e os campos são utilizados para a salgação de peixe, deixando-se inundar de água e retemperando, assim, a força produtiva.”

Tendo guardado ainda uma reminiscência das coisas de Goa. Orlando tem dos seus tempos de infância algumas ideias vagas. Sabe que de algum modo as palavras salgação e peixe estão ligadas com as casanas, mas as duas palavras não estão ligadas entre si. O que se faz é a salgação das casanas com a introdução das águas salgadas dos rics e aproveita-se a ocasião para a criação e pesca de peixe. Também quanto às várzeas retemperaram as suas forças com a tal alagação, Orlando não deve sair do âmbito da sua missão de romancista constatando tais detalhes porquanto os agrónomos estão, aqui há anos, a clamar que a alagação dos campos só concorre para a sua deterioração e os únicos que aproveitam com a situação são os pescadores de água turva. Na verdade, provocam-se tais alagações porque o peixe rende mais que o arroz. Mas isto é outro assunto que de resto devia interessar ao criador do tipo “Bab Ligor”. Se o seu herói não fosse de Bordá de Margão mas de qualquer dessas aldeias marginais do Zuari, aposto que se ocuparia, no intervalo da sua faina de desinquietar as filhas dos mundcares, na rendosa campanha de... salgação de peixe.

Agora uma pergunta: merece ou não o género literário de que me estou ocupando a classificação de nefelibata?

Para responder cabalmente a esta pergunta, há que estudá-lo sob o ponto de vista da sua ambientação sociológica e religiosa. Será ou não esta igual ou semelhante à ambientação metereológica e agronómica?

Procuremos estudá-lo.

Apolinário Soares - Tempo (1981)

O tempo é útil, o TEMPO é dinheiro
Tenha juízo, seja matreiro;
Ele passa, voa depressa;
Mãos à obra é o que interessa.

Tudo volta, tudo impera;
Passa a doença, a saúde recupera;
Mas TEMPO passando nunca regressa,
Nem pessoa morta na vida ingressa.

Este mundo é para os que sabem aproveitar;
A vida é para os que querem trabalhar;
Mais vale tarefa bem feita,
Do que a incerta, em qualidade.

O trabalho dignifica o homem,
Acaba com a miséria e a fome;
Põe de parte a ociosidade
E constrói uma nova Sociedade.

Maputo, 1981

Telo de Mascarenhas - Jawaharlal Nehru, Homem de Boa Vontade (1975)

Em meados de Setembro de 1948 haviamos chegado a Nova Delhi, de regresso a Portugal, deslumbrados e curiosos de conhecer a vida da Índia Independent. Setembro é um mês ameno, com maciezas de veludo no ar, pronúncias do Outono, que é a estação mais deleitável do ano.

A um motorista do carro estacionado no parque de Hotel, um Sickh, de barbas façanhudas de Ali Baba, dou o endereço: “Panditji Ghar” (casa do Pandit). Em Nova Delhi todo o mundo conhece a casa do Primeiro Ministro Pandit Jawaharlal Nehru. Era como o “Abre-te, Sésamo!”. Uma palavra mágica que criava boa vontade e obtinha todas as facilidades.

A residência do Primeiro Ministro Nehru, no Teen Murti, rodeada de um vasto parque e jardins em plena floração, na manhã em que lá chegaremos, estavam cheios de sol e aromas. Canteiros de rosas vermelhas, amarelas e da cor de púrpura, flores favoritas de Nehru (talvez porque o seu nome, Jawaharlal, quer dizer rosa vemelha dedicada à Deusa Kali). Ele trazia sempre a florir na botoeira do seu Sherwani um botão de rosa.

Uma vez, volvidos anos, sobre a nossa entrevista e quando vivíamos em Nova Delhi, Nehru presidiu às cerimonias do Dia de Independência, no Forte Vermelho, com uma rosa amarela na botoeira do seu Sherwani. Como estivéssemos próximo, perguntamos-lhe:

“Desespero, Excelência?”

“De modo nenhum. Felicidade,” disse Nehru, sorrindo, talvez regozijado da nossa ignorância acerca do significado das cores na Índia. Segundo a convenção ocidental, amarelo significa desespero e desolação.

Naquele tempo, logo após Independência, havia grande escassez de géneros alimentícios em toda a Índia. Nehru, então, não só aconselhou o povo a cultivar hortaliça, cereais, como ele próprio os nos largos talhões do seu parque para suplementar sua mesa com tais géneros.

Quando Nehru acabou de conversar com um grupo de pobres refugiados, vítimas da partilha da Índia, na sala de espera, eu declinei a minha identidade e apresentei-lhe as credenciais (cartas que recebera em Portugal), e ele, prontamente, conduziu-me para a sala de visitas, ampla, confortável e soalheira, deitando sobre o jardim em flor, com as paredes ornamentadas com os retratos de quase todos os líderes asiáticos.

Após a conversa convencional entre duas pessoas que se conhecem pela primeira vez, o Primeiro Ministro perguntou-nos pelas novidades de Portugal e falou-nos em tom amargurado sobre a situação e do totalitarismo de Salazar e disse: “faremos todo o possível para libertar Goa das garras do colonialismo”. E acrescentou: “Valer-nos-emos primeiramente de meios diplomáticos e como ultima ratio , doutros meios aconselháveis pelas circunstâncias.”

“Após a Libertação que futuro de Goa, Excelência?”

“Goa será um estado autónomo dentro da Índia, preservando a sua língua e cultura e, até a língua e cultura portuguesas, seus usos e costumes, para que Goa e Pondicherri sejam duas janelas na Índia abertas sobre o Ocidente. Não queremos que Goa perca a sua identidade, as suas crenças e o seu modo de vida” asseverou Nehru.

O Primeiro Ministro Nehru era uma pessoa bastante azafamada, com mil problemas a solver no limiar da Libertação. Era também pessoa cheia de vida e dinamismo. Não quisemos abusar da sua bondade e cortszia com que nos recebera apesar de andar atarefado. Autógrafos numa fotografia sua e no “The Discovery of Índia”, duas lembranças suas, põem ponto final a nossa tão desejada entrevista.

Friday 9 March 2012

Mário da Silva Coelho - À Memória de Mahatma Gandhi (1963)

Luta primordial, a eternal luta
Entre Deus e Satan, a luz e a treva,
Continua indecisa na disputa,
Na cegueira do prélio em que se cava.

Por toda a parte e em cada alma bruta,
De início como na época coeva,
Na perene batalha feia e abrupta
Ora aflora o bem, ora o mal se eleva.

Homem, o combatente de Satan!
Mas Deus é a verdade que perdura
Na alma e lhe aponta a próxima ma hã

A sempre, pela imperial noite escura,
À consciência humana, escrava e chã,
A voz de Deus – guerra a Satan! – murmura.

RV Pandit - Dois Poemas sobre Mahatma Gandhi (1968)

“Terra Imortal”

Terra
Onde os caminhos
Ensopados em sangue
Os corações ardendo
Em tormentos…

A humanidade
Aprodrecendo
No lodo da escravidão
Em cada casa…

Ali, naquela terra
Nasceu um Mahatma…
Mar de amor e de caridade
Que, do íntimo do seu coração
Deu o néctar a vida imortal
Os ensinamentos
Da verdade, caridade
Amor e dedicação
Que fez reviver
Milhões de cadáveres
Resurgir
Da pobreza e do inferno...

BEM a alto conservando
O estandarte da Liberdade
COMO o sândalo
Exaurindo-se
O prestígio da liberdade
Do trabalho, da abnegação
Exemplificando...

Sim, sim
É dele
Esta terra imortal...

“Terra Infeliz”

O santo
Cuja vida
Foi um sacrifício
Que nutriu
O amor da terra...
Cuja luz
Iluminou
Os quatro cantos da terra...

A cegueira, a ignorância
A arrogância e a falta da fé
A teimosia e a brutalidade
Fez verter o seu sangue
Nessa terra
Ai!... 

É a mesma terra infeliz!

Wednesday 7 March 2012

Gaby Neves - Admoestação (1962)

Porque ris
Porque choras
Porque mostras como agora
A tua podridão!
Para mim é só fraqueza...
Fraqueza que uma alma sente
Quando sente a solidão.
Mas para os outros...
Não rias
Não chores
Não abras ingenuamente
As portas do coração
Para os outros
Não é tristeza
Sendo a própria fraqueza
Sinónimo de devassidão.

Tuesday 6 March 2012

Visnum Porobo Sincró - O Esconderijo (1972)

Para ocultar o que sinto,
Quando não quero ser claro,
Tenho um esconderijo meu próprio!
Ninguém sondou a consciência
Nem tão pouco a alma humana,
Para todos ela é insondável;
Indecifrável na realidade,
E não se pode saber nunca,
Os íntimos de quem quer!
É coisa já determinada!!
Um homem discreto é respeitado,
Porque ninguém o pode avaliar;
Para isso são úteis os esconderijos!!

Bailon de Sá - São João Baptista (1975)

Precursor: qual aurora do esplendor
Do Sol, transluzindo no horizonte,
Cândido, mas terrível no fervor
Do seu verbo mordaz e escandecente.

Na sua base a montanha estremeceu,
E turgesceu-se o vale como um seio
(como o mar encapela um escarcéu)
mordido por um velho e doce enleio.

Contorce Herodias no seu leito
Adúltero – qual verme numa brasa –
Urdindo a negra trama no seu peito,
P’ra extinguir o remorso que lhe abrasa.

Em ritmos de volúpia, Salomé
Vem dançando perante o ignóbil rei,
E quase a volitar, pé ante pé,
Da aproxima-se e diz: “mãe, não sei,

Ao Tetraca que devo eu lhe pedir,
Pela galharda oferta que me fez?
Um sinistro clarão trai-lhe o sentir
“Ah! Já tenho nos dentes a minha rês:

Nesta salva a cabeça do Batista!”
Cochicha... Triste o rei, acede porém.
E sem mais, Salomé, lúbrica artista
E pôs na mãos crispados da sua mãe.

Cabeça do Batista, eis a Verdade,
Que nós em vão tentamos degolar:
Há Rhodanos na senda da Maldade,
Que, às furtivas, se podem congelar!

(Nota) Diz uma lenda que Salomé, quando a caminho de Lião, acompanhada de sua mãe e Herodes, ora destronados e exilados, atravessava o Rhodano, vendo-o coberto de gelo, quis patinar, mas ficou submergida até o pescoço. Enquanto estrebuchava, o gelo foi-se, aos poucos, apertando-a como um garrote, até que a cabeça ficou separada do tronco.

Ave Cleto Afonso - A Tragédia Humana (1965)

- O pá... José... José... Psciu... – e eu continuava a correr, atrás dele, todo ofegante e com o rosto alagado em suor. O movimento na rua era grande e uma grande mole de gente dificultava a passagem do tráfico motorizado por aquela artéria estreita. O ruído ensurdecedor das buzinas dos carros e dos foguetes, queimados sem cessar por petizes gaiatos, provocava uma aguda dor de cabeça.

Era dia da festividade do deus Ganesh. As moradias das famílias que a celebrava, estavam abertas às visitas. Cada uma delas tinha, sobre uma espécie de um altar improvisado e em artísticos nichos, a imagem do divino Gannpati.

Em um desses dias, não era, portanto, tarefa fácil atravessar a Rua Abade Faria. Em constantes ziguezagues, para evitar empurrões e “abraços” indesejados dos transeuntes, só um louco se atreveria a uma prova de corrida nessa medonha confusão.

- Ó homem de Deus... José... hei... psciu... Não, o desgraçado não atendia, apesar de saber ser “perseguido”. Corria quase a cambalear e já algumas vezes se prostrara involuntariamente aos pés dos transeuntes. Numa ocasião falhara por pouco em ser colhido por uma carroça, e numa outra, recebera uma valente bofetada de uma moça que fora magoada por ele acidentalmente. E eu corria atrás dele, qual outro louco.

Mas porque teria ela afinal interrompido tão bruscamente a conversa e começado a fugir como um touro assanhado? Lá devia ter as suas razões o homenzinho.

*

Em criança havíamos sido bons amigos, companheiros de alegrias e tristezas, e havíamos, muitas vezes, ocupado a mesma carteira nos primeiros tempos da nossa vida de estudantes. Mais tarde, completados os cursos secundários, que ele considerava um “diploma para a subsistência”, cada um de nós seguira rumos diferentes.

Embora não nos encontrássemos desde há bom tempo, alguns anos talvez, sabia que José se tornara devoto de deus Baco e estava quase desesperado, tentando, como dizia, esquecer-se a si próprio. Ninguém conhecia o motivo do estado mental em que se encontrava e tão-pouco era possível sondar-lhe o que se passava no seu íntimo. Assim, mal encontrei-me com ele, e isto foi logo atrás dos Correios e quase em frente do “Félix”, disparei-lhe sem delongas e tentei entrar direitinho no assunto.

- Então, José! Que grande prazer! Vais bem, homem? Só o local em que estás postado, é que não me cheira muito bem... – disse maliciosamente lançando um olhar em volta.

- Ham?... Hum?... Tu por cá... – saudou-me, com visível confusão, provocada pela inesperada referência à taverna próxima.

- Que tal vai a vida, José? Tudo bem em casa?

- Obrigado... felizmente... – mastigava entre dentes.

- Que é que te vai mal, santo homem? Vê lá se te pões mais alegre. Esta tua cara de laxante não é a mesma que conheci há tempos.

Não restava dúvida de que a conversa que se encetara, estava criando uma confusão medonha no espírito do meu interlocutor, que não proferira até lá nem uma única palavra nítida. A língua e o pensamento traíam-no. José estava em apuros.

- Mais alegre do que estou agora? Ah, é loucura, António! – gaguejou, limpando o polegar direito as gotas do suor que lhe orvalhavam a testa.

- Se soubesses...? Não! Não! Não posso! Não quero! Falar dela? Adeus, António... – e, volvendo as costas, queria afastar-se do local.

Amigavelmente pus-lhe a mão no ombro e fi-lo desistir do intento de me abandonar tão bruscamente

Se não pudesse conseguir arrancar nada mais a esta alma vagabunda, ao menos já sabia que uma ela era a causa do infortúnio do meu amigo, que coitado, devia ter sido incauto.

Puxei do bolso o maço de cigarros e estendi-o gentilmente. Misturando perguntas com baforadas de fumo, astutamente levei-o ao ponto da conversa que mais me interessava e consegui extorquir-lhe a confissão.

- Sabes, António, a chaga que me dilacera o coração, é enorme. Amei Sheila com ardor, mas... a-a-a-i-i (um longo suspiro era mais um indício do seu pesar). Não conheces Sheila?

- Se conheço! – apressei-me a fingir que conhecia a moça e, para não ter de falar mais, levei nervosamente o cigarro à boca.

- Pois é. É a mesma. Quando a conheci um dia... em... diabo! Já nem me lembro onde a conheci... Era uma moça invulgar. Tentar descrevê-la seria atrevimento criminoso. Cada traço da sua fisionomia era um reflexo de perfeição. A sua longa trança – uma espécie de serpente mitológica a derreter os corações gelados dos moços e a madeixa teimosa que caía sobre a sua tez – como que um exemplo a convite à persistência. Nunca tive oportunidade de ouvir a sua voz, que devia ser melodiosa, mas as suas respostas às minhas cartas eram cada vez mais prometedores e havia nelas um fogo de paixão... – descrevia o desiludido José, fixando um ponto longínquo e alheio até à minha existência naquele local. Uma delas, por exemplo, dizia: “... se soubesses... o destino parece ter-nos talhado um para o outro...”. A minha convicção era cada vez maior de que Sheila me correspondia e esta última carta não podia deixar dúvidas. Sheila havia-me feito prisioneiro...”

A cada entonação que a sua voz assumia, os seus olhos, até então lânguidos e melancólicos, se iam avivando e as constantes mudanças do seu semblante davam uma ideia grosseira de quão ardente devia ter sido o amor de José para com Sheila.

A tarde ia rapidamente cedendo lugar à noite. As multidões recolhiam-se apressadas para as suas casa. Os poucos que haviam chegado tarde, estugavam o passo de modo a poderem visitar o maior número de Chaturtis. Os fogos de artifícios eram cada vez mais brilhantes e das janelas e portas abertas jorravam feixes de luz festivas.

- Mas sabes, António, as suas cartas eram sempre dactilografadas. Podia ser que a própria Sheila fosse sensata e adoptasse esta atitude para não só deixar apanhar pelos seus. Era mais uma qualidade que apreciava nela. E quem poderia ter interesse em “aldrabar”, escrevendo cartas por Sheila? Um seu irmão, sim, tinha ares de maroto e fazia me suspeitar.

Esta última informação sobre o futurível cunhado, espicaçou-me a curiosidade e quando fixei a vista no rosto do meu interlocutor, vi na sua testa duas produndas rugas e o aspecto pensativo do seu semblante intrigou-me.

- Quando, no ano passado, - prossegui melancolicamente, o admirador de Sheila – no dia de Divali tive a dita de me encontrar com a menina dos meus olhos, foi esse o último dia normal da minha vida. Aquela testa de luzes lançou trevas sobre a minha existência. Então decidi esquecer-me... Não me restavam mais esperanças na vida...

- Conclui, homem, conclui a história! Naturalmente tomaste outra por Sheila e apanhaste uma “tampa” – gritei impacientemente, como se fosse um ouvinte que adquirira o direito de ouvir a história toda.

- Disse-lhe que... a.. amava...e... – gaguejava o infeliz Romeu, ao mesmo tempo que duas grossas lágrimas assomavam aos seus olhos – ela me respondeu: Tum re makkdda! Mhojea zoteak lagonam!

E, sem mesmo se despedir de um amigo que havia encontrado depois de uma longa temporada, o pobre do José corria a bom correr, sem dar ouvidos à minha fraca voz.

- José... Jooséé... Psciu.... Psciu... – tudo era em vão. Talvez fosse a caminho de qualquer templo de Baco. Queria esquecer-se a si próprio. O irmão de Sheila era maroto...

Passou-se isto há dois anos atrás. Se fosse agora, com certeza não teria corrido atrás do José.

Thursday 1 March 2012

Guilherme de Melo - A Estreia Literária de Uma Poetisa Goesa (1952)

Através de Armindo Santos, nosso camarada da Imprensa moçambicana, recentemente chegado a Goa onde se encontra em serviço militar, foi-nos dado ler uma interessante crítica de Guilherme de Melo – jovem e apreciado jornalista Laurentino – ao livro “Destino” da nossa conterrânea Judite Beatriz de Sousa.

Essa crítica - publicada, com o título acima, na edição de 24 de Janeiro findo do “Notícias”, importante diário de Lourenço Marques – não só pela honestidade da sua concepção, mas também, e especialmente, por dizer respeito a um livro da outrora de uma goesa, merece ficar registada nesta página semanal de “O Heraldo”, da qual, aliás Beatriz Judite de Sousa, foi apreciada colaboradora.

Por tal motivo, passamos a transcrever com a devida vénia essa crítica do nosso prezado colega de Moçambique.


Com o lacónico e, ao mesmo tempo, incomensurável título de Destino – ou não concordais que pode, nesta simples palavra, saber todo um universo de sonhos e de esperanças, de lutas e desesperos, de alegrias e de lágrimas? – acaba Judite Beatriz de Sousa de trazer para as mãos do Mundo o seu primeiro livro de poemas.

Se outro valor não tivera, com efeito, esta pequena obra de estreia, ainda assim merecia que a ela dedicássemos um pouco de atenção e interesse, quanto mais não fosse pelas circunstâncias pouco vulgares que envolvem o seu aparecimento: Judit Beatriz de Sousa nasceu na velha e portuguesíssima Goa e jamais da sua terra natal saiu. Assim, como muito bem aponta Mário Isaac no curto prefácio à coletânea dos poemas: “não sofreu, portanto, a influência do tão discutado meio ambiente e, se juntarmos a isto o facto de não haver europeus entre os seus descendentes, conclui-se que a poetisa de “Destino” é, para além do mais, um produto da cultura portuguesa na Índia”

Razão, pois, mais do que suficiente, para que a pequena obra litéraria, composta e impresssa na Imprensa Nacional de Goa, contenha, a par do natural interesse que sempre em nós suscita a estreia de uma poetisa ou de um poeta, um especial motivo de atenção e estudo.

Vejamos, pois, o que, na verdade, “Destino” nos oferece como obra poética.

O fulcro da colectânea define-o a poetisa no décimo terceiro poema justamente com o nome “Destino”: vai pelos caminhos da Vida andando, sem norte, sem farol, sem um guia, a si próprio fazendo companhia, agora vai sozinha.

“Porque houve alguém mais forte
que te arrancou dos meus braços
quando
com as almas plenas de sol,
Caminhávamos sonhando,
Teus passos paralelos aos meus passos”

E agora vai sozinha, “como um coração sobre as águas a boiar”.

“como aquele que caminha
porque tem de caminhar!”

É, pois, o Amor, o Amor com tudo o que possa conter de alegria e mágoa, de dor e prazer, de renúncia e abandono, de exaltação e sofrimento, de ânsia e de desespero, de fé e ilusão, o mundo em que se desfia o rosário das vinte a tantas poesias que Judite Beatriz de Sousa reuniu neste seu livro, em que a Artista e a Mulher se confundem a cada passo, numa união curiosa e tendo, por vezes, como resultado, momentos de rara beleza poética:

“Parti num barco sem idade,
Feito só de silêncio musical da noite
E de vigílias de ansiedade,
Para um país sem fronteiras,
Sem caminhos.
Onde as asas não se quebram
Nas barreiras...”

Ou, por exemplo, esse belíssimo “Elegia”, quanto a nós um dos melhores, senão mesmo o melhor poema do livro:

Meus dedos eram de barro
(ou de terra humedecida);
Quiseram prender o Sonho
Trazê-lo mais para a Vida.

Mas ai! Que o Sonho se foi
Como fumo de cigarro...
Os meus desejos partidos,
Meus pobres dedos quebrados.
Meus dedos eram de barro”

Apaixonada, a Mulher sobrepuja, por vezes, a Poetisa, como no poema em que, num lirismo quase exacerbado, num rompante de masoquismo puro, depois de gritar o seu Sonho desfeito, porque ele passou na sua Vida para não voltar conclui que passou afinal apenas

“para que colasses a boca nos teus passos
religiosamente
apaixonadamente!”

Mas, conhecedora perfeita de que a Vida não é só amor e desilusão, sonho de lirismo e romance desfeito:

“Bebe mais Sol. Amor, e encara a Vida!
- já lá vai o tempo das janelas
floridas de roseiras,
e, debaixo delas,
a estrofe sentida
de amantes sonhadores...

Agora há mais espinhos,
E menos flores,
Mais pedras nos caminhos,
Mais esperas, canseiras,
Mais ilusão mentida!
Bebe mais Sol, Amor, e encara a Vida”

A Poetisa chega ao fim com um viajante que alcança uma fronteira – “fronteira de Alma”, lhe chama. E, aí parada agora nessa fronteira alcançada, queima, na fogueira em si mesma acesa, “tudo o que foi mentira, tudo o que foi Passado”m para, depois de tudo queimar, se encontrar a si mesma.

“Eu só – no meu quarto parado,
De parades pasmadas limitando a curva sinuosa do Futuro
Lá fora, o escuro...”

O escuro – ou o Mundo, talvez o Mundo onde Judite Beatriz de Sousa, estamos certos, não hesitará em entrar, de passos bem firmes, pisando a estrada aberta à sua frente, vivendo a Vida, sentindo-a, tocando-a, palpando-a, cantando-a nos seus versos de Poetisa que realmente é.

Visum Porobo Sincró - A Juventude (1972)

Sempre alegre, livre de preconceitos,
Vigor no trato, coração generoso,
Afabilidade irmanada da Nobreza
Audácia impensada espontânea!
A juventude é livre de pesadelos,
Nada a recear do Mundo desleal;
Para eles tudo é água, tudo fácil
A mocidade de nada receia!

A juventude é atleta, gosta de jogos
Cricket, football, tennis e quantos mais
Sempre a pensar nos prazeres mundanos
Nunca se demora a pensar no futuro
Para eles tudo é hoje, neste momento
A juventude de hoje é assim!

José Rangel - Síntese (1977)

“Goa has a distinct personality and it would be a pity if this was taken away” – Jawaharlal Nehru

Labuta insana,
Na colmeia humana!
Levaste
E levantaste
O nome
Da tua Terra;
Suportaste
Agruras de fome
Em tempo de guerra;
Recriaste
A imagem do teu torrão
Em época de paz
Em alheias plagas,
E as chagas
Da nostalgia do teu coração
Dulcificaste
Com o bálsamo que o amor natal traz.

Duas grandes civilizações,
Ricas de pensamentos e acções,
Deram carácter ao teu ser.
Por isso é dos outros prazer
Em ti ver
A mística do Oriente
E a vibração do Ocidente.

Cantas com a mesma alma
Mandós, ovis, dhalos e fados;
Com naturalidade vestes a gama
De trajes variegados.
Tu és: Hindu, Cristão, Moiro;
Mas o teu ethos é o mesmo.
E este tesoiro
Não se formou a esmo.

Pois vives em invejável harmonia
Com o teu semelhante;
E nessa atmosfera de sinfonia
Cresces, trabalhas, e segues avante!

Ouve, meu irmão:
Peço não te rales
Com o chauvinismo
A pôr-se em bicos de pés,
E a acusar-te de desnacionalismo.
São complexos da frustração.

Tu és goês e indiano,
E sempre te orgulhaste de o ser.
Não foi Gilberto Freyre, o mestre lhano,
Que falou de o Ocidente e o Oriente em ti conviver?
Por que temeis o ataque doidivano,
Se tens o imortal Nehru para te defender?