Tuesday 6 March 2012

Ave Cleto Afonso - A Tragédia Humana (1965)

- O pá... José... José... Psciu... – e eu continuava a correr, atrás dele, todo ofegante e com o rosto alagado em suor. O movimento na rua era grande e uma grande mole de gente dificultava a passagem do tráfico motorizado por aquela artéria estreita. O ruído ensurdecedor das buzinas dos carros e dos foguetes, queimados sem cessar por petizes gaiatos, provocava uma aguda dor de cabeça.

Era dia da festividade do deus Ganesh. As moradias das famílias que a celebrava, estavam abertas às visitas. Cada uma delas tinha, sobre uma espécie de um altar improvisado e em artísticos nichos, a imagem do divino Gannpati.

Em um desses dias, não era, portanto, tarefa fácil atravessar a Rua Abade Faria. Em constantes ziguezagues, para evitar empurrões e “abraços” indesejados dos transeuntes, só um louco se atreveria a uma prova de corrida nessa medonha confusão.

- Ó homem de Deus... José... hei... psciu... Não, o desgraçado não atendia, apesar de saber ser “perseguido”. Corria quase a cambalear e já algumas vezes se prostrara involuntariamente aos pés dos transeuntes. Numa ocasião falhara por pouco em ser colhido por uma carroça, e numa outra, recebera uma valente bofetada de uma moça que fora magoada por ele acidentalmente. E eu corria atrás dele, qual outro louco.

Mas porque teria ela afinal interrompido tão bruscamente a conversa e começado a fugir como um touro assanhado? Lá devia ter as suas razões o homenzinho.

*

Em criança havíamos sido bons amigos, companheiros de alegrias e tristezas, e havíamos, muitas vezes, ocupado a mesma carteira nos primeiros tempos da nossa vida de estudantes. Mais tarde, completados os cursos secundários, que ele considerava um “diploma para a subsistência”, cada um de nós seguira rumos diferentes.

Embora não nos encontrássemos desde há bom tempo, alguns anos talvez, sabia que José se tornara devoto de deus Baco e estava quase desesperado, tentando, como dizia, esquecer-se a si próprio. Ninguém conhecia o motivo do estado mental em que se encontrava e tão-pouco era possível sondar-lhe o que se passava no seu íntimo. Assim, mal encontrei-me com ele, e isto foi logo atrás dos Correios e quase em frente do “Félix”, disparei-lhe sem delongas e tentei entrar direitinho no assunto.

- Então, José! Que grande prazer! Vais bem, homem? Só o local em que estás postado, é que não me cheira muito bem... – disse maliciosamente lançando um olhar em volta.

- Ham?... Hum?... Tu por cá... – saudou-me, com visível confusão, provocada pela inesperada referência à taverna próxima.

- Que tal vai a vida, José? Tudo bem em casa?

- Obrigado... felizmente... – mastigava entre dentes.

- Que é que te vai mal, santo homem? Vê lá se te pões mais alegre. Esta tua cara de laxante não é a mesma que conheci há tempos.

Não restava dúvida de que a conversa que se encetara, estava criando uma confusão medonha no espírito do meu interlocutor, que não proferira até lá nem uma única palavra nítida. A língua e o pensamento traíam-no. José estava em apuros.

- Mais alegre do que estou agora? Ah, é loucura, António! – gaguejou, limpando o polegar direito as gotas do suor que lhe orvalhavam a testa.

- Se soubesses...? Não! Não! Não posso! Não quero! Falar dela? Adeus, António... – e, volvendo as costas, queria afastar-se do local.

Amigavelmente pus-lhe a mão no ombro e fi-lo desistir do intento de me abandonar tão bruscamente

Se não pudesse conseguir arrancar nada mais a esta alma vagabunda, ao menos já sabia que uma ela era a causa do infortúnio do meu amigo, que coitado, devia ter sido incauto.

Puxei do bolso o maço de cigarros e estendi-o gentilmente. Misturando perguntas com baforadas de fumo, astutamente levei-o ao ponto da conversa que mais me interessava e consegui extorquir-lhe a confissão.

- Sabes, António, a chaga que me dilacera o coração, é enorme. Amei Sheila com ardor, mas... a-a-a-i-i (um longo suspiro era mais um indício do seu pesar). Não conheces Sheila?

- Se conheço! – apressei-me a fingir que conhecia a moça e, para não ter de falar mais, levei nervosamente o cigarro à boca.

- Pois é. É a mesma. Quando a conheci um dia... em... diabo! Já nem me lembro onde a conheci... Era uma moça invulgar. Tentar descrevê-la seria atrevimento criminoso. Cada traço da sua fisionomia era um reflexo de perfeição. A sua longa trança – uma espécie de serpente mitológica a derreter os corações gelados dos moços e a madeixa teimosa que caía sobre a sua tez – como que um exemplo a convite à persistência. Nunca tive oportunidade de ouvir a sua voz, que devia ser melodiosa, mas as suas respostas às minhas cartas eram cada vez mais prometedores e havia nelas um fogo de paixão... – descrevia o desiludido José, fixando um ponto longínquo e alheio até à minha existência naquele local. Uma delas, por exemplo, dizia: “... se soubesses... o destino parece ter-nos talhado um para o outro...”. A minha convicção era cada vez maior de que Sheila me correspondia e esta última carta não podia deixar dúvidas. Sheila havia-me feito prisioneiro...”

A cada entonação que a sua voz assumia, os seus olhos, até então lânguidos e melancólicos, se iam avivando e as constantes mudanças do seu semblante davam uma ideia grosseira de quão ardente devia ter sido o amor de José para com Sheila.

A tarde ia rapidamente cedendo lugar à noite. As multidões recolhiam-se apressadas para as suas casa. Os poucos que haviam chegado tarde, estugavam o passo de modo a poderem visitar o maior número de Chaturtis. Os fogos de artifícios eram cada vez mais brilhantes e das janelas e portas abertas jorravam feixes de luz festivas.

- Mas sabes, António, as suas cartas eram sempre dactilografadas. Podia ser que a própria Sheila fosse sensata e adoptasse esta atitude para não só deixar apanhar pelos seus. Era mais uma qualidade que apreciava nela. E quem poderia ter interesse em “aldrabar”, escrevendo cartas por Sheila? Um seu irmão, sim, tinha ares de maroto e fazia me suspeitar.

Esta última informação sobre o futurível cunhado, espicaçou-me a curiosidade e quando fixei a vista no rosto do meu interlocutor, vi na sua testa duas produndas rugas e o aspecto pensativo do seu semblante intrigou-me.

- Quando, no ano passado, - prossegui melancolicamente, o admirador de Sheila – no dia de Divali tive a dita de me encontrar com a menina dos meus olhos, foi esse o último dia normal da minha vida. Aquela testa de luzes lançou trevas sobre a minha existência. Então decidi esquecer-me... Não me restavam mais esperanças na vida...

- Conclui, homem, conclui a história! Naturalmente tomaste outra por Sheila e apanhaste uma “tampa” – gritei impacientemente, como se fosse um ouvinte que adquirira o direito de ouvir a história toda.

- Disse-lhe que... a.. amava...e... – gaguejava o infeliz Romeu, ao mesmo tempo que duas grossas lágrimas assomavam aos seus olhos – ela me respondeu: Tum re makkdda! Mhojea zoteak lagonam!

E, sem mesmo se despedir de um amigo que havia encontrado depois de uma longa temporada, o pobre do José corria a bom correr, sem dar ouvidos à minha fraca voz.

- José... Jooséé... Psciu.... Psciu... – tudo era em vão. Talvez fosse a caminho de qualquer templo de Baco. Queria esquecer-se a si próprio. O irmão de Sheila era maroto...

Passou-se isto há dois anos atrás. Se fosse agora, com certeza não teria corrido atrás do José.

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