Friday, 10 February 2012

António Furtado - Apreciação Literária de Hipólito de Menezes Rodrigues (1966)

Lá pelas alturas de 1924, conheci Hipólito Menezes Rodrigues em Lisboa. Tempos depois, viria a descobrir o grande espírito de Adeodato Barreto, de quem fui compadre e o poeta Eucaristino Mendonça, autor do poemeto “Hindus”, de ritmo sensualista e pagão, vivo e colorido.

Natural de Goa Velha, Hipólito Rodrigues fez o curso de Farmácia e era um dos candidatos para o lugar de Director da Escola de Farmácia de Goa. A maior parte de concorrentes era de goeses. Havia alguns portugueses, mas de traça cotação académica.

Tornou-se nesse tempo obrigatório o concurso de provas práticas para se poder manejar com destreza o candidato favorecido. O Governo Português tinha as suas razões: não fosse um canarim estar à testa dessa Escola que até aí fora monopólio de portugueses. A escolha caberia ao Governo. E, de facto, consagrou-se a tradição, preterindo os goeses prestimosos.

H. Rodrigues sentiu-se deprimido. Malograda a sua ânsia de voltar para Goa, requereu para uma das vagas de Farmácia do “Império Português”. Ao tempo, a escolha de goeses para funções públicas não era bem vista e dava lugar a prolongadas demoras. H.R., de compleição delicada, com uns olhos sonhadores, de extrema bondade e cheios de uma suave melancolia, tentou, durante essa pausa, dar forma aos seus ideais e sentimentos de esteta.

Em 1925 ou 26, encontrámo-nos no quarto do Dr. Aniceto Dias, de quem o Poeta era amigo dedicado. Aí, num desses encontros, ele revelou a sua “mania de versejar”. Conquanto tivéssemos apreciados a sua acurada forma literária, os versos que lera, retratavam um sentido trágico da vida. Um amostra:

Quando é que, ó bendito íris da paz,
Sossegar a minha ânsia tu virás
E dar por finda a minha amargura?

E mais esta:
Nas ruínas da minha alma destronada
De mortas ilusões, de rotos desenganos,
Como antigo profeta, eu choro a derrocada.

De certo, bruxeleava aí o prenúncio dum poeta que revelaria depois a sua plena florescência. O seu lirismo terno, quase imaculado, iria ao encontro de almas simples e bondosas. O seu estro afasta-se então do pessimismo, para sublimar-se num amor como o de lendas. A poesia “Súplica” aureola de luz uma moreninha que é para ele, santa:

Ó diz-me tu, diz, santa moreninha,
E não sejas má, ventura minha,
Que me tens amor, que gostas de mim...
E os nossos almas como o olor das rosas
Irão voando, romeiras vaporosas,
Agradecer a Deus ventura assim... 

Esse lirismo cresce em intensidade na poesia – "Nosso Amor no Campo" – tão ingénua e sensibilizadora, que lembra o naturalismo dos conhecidos protótipos de romantismo que um Bernardino de St. Pierre imortalizou no Paulo e Virgínia. É apologia do “Amor e Cabana”:

Que nos importa a nós, ó minha terna amada,
Que não possamos ter uma vida faustosa,
Essa vida infeliz, mentida, simulada,
Essa vida grotesca, enervante, ruidosa?

Que nos importam a nós palácios doirados,
Com soberbos jardins e varandins em flor,
A água saltitando em repuxos prateados,
Em libações subtis dum penetrante olor?

Se a nossa vida é linda como a manhã,
Fresca e pura como uma rosa a florir,
Se temos neste campo a alegria sã
Sob um céu de anil que nos parece sorrir!
Se o nosso peito alberga um amor puro e santo
Com pureza do lírio e ardor da mocidade
Um sonho de luar, de divinal encanto,
Amor sem pompa, sem riqueza, sem vaidade!

Lágrima, estrela que da miséria tombou,
Deus a recebeu e Deuc no céu a guardou.
Caminheiros de luz, de clarões infinitos,
Benditos sejais vós, oh! Mil vezes benditos!

O Prof. Sr. Pe. Filinto Dias, no seu Esboço da História da Literatura Indo-Portuguesa”, mostra no poema "Histabílis" que Menezes Rodrigues retratou a mudança e instabilidade da Vida tal como fez o brasileiro Raimundo Correia no soneto "As Pombas".

A propósito na Derrocada M. Rodrigues anseia pelo regresso dos seus sonhos e compara-os a pombas:

Quem me dera que voltasssem
Meus sonhos e remoçassem
A minha alma envelhecida!...
Como pombas que tornassem
E já nunca mais deixassem
A sua antiga guarida!...

Um poeta portugueês cujo nome não me ocorre, deixou sobre um tema igual um soneto magnífico. Os últimos versos do 2o terceto terminam assim:

Voltam pombas aos seus pombais
Os meus sonhos, porém, não voltam mais...

O que mais me impressionou no nosso Poeta é a sua tendência para canções ou quadras populares. Algumas destas têm tal poder emotivo que, se fossem vulgarizadas em Portugal, o povo as teria cantado. Neste género há aí um poeta consagrado: Augusto Gil. Os seus versos vão de boca em boca. O livrinho Luar de Janeiro poderia intitular-se Cancioneiro do Povo.

Vejamos algumas das quadras de H. Rodrigues. Numa destas, define o amor:

Quatro letras se traçavam
Duas sílabas se fundiam
E ninguém soube dizer
O quanto elas definam.
O seu tema predilecto gira em volta de morenas:
Morenas, lindas morenas,
Morenas de tentação,
Todos vós, lindas morenas,
Sois a nossa perdição!...

E mais esta:

Com o fulgor do teu olhar
Porque me queimas, Maria?
Vem bailar, sorrir, cantar,
Vem, que a lua nos alumia.
E esta outra:

Já te vi, minha bela rosa,
Num presépio cheio de luz.
Sorrindo toda jubilosa
Ao nosso Menino Jesus.

Compare-se esta quadra com a Augusto Gil:

Ficaste a rezar até
Manhã dentro, manhã alta
Como é que tens tanta fé
E a caridade que te falta?

Parece que Fernando Leal escreveu um soneto com um significado não muito diferente. Vou reproduzir truncado o que de memória me ficou:

Amas a Cristo, Nosso Senhor,
Que morreu por toda a gente
E não me tens amor
Eu que morro por ti somente...
Outra quadra do nosso poeta:
Palavras, eu as ouvi
Palavras, eu as deixei...
As mágoas que elas me deram
A ninguém eu as direi.

E esta de Augusto Gil:

Se aquilo que a gente sente
Cá dentro, tivessse voz,
Muita gente, toda a gente
Teria pena de nós.

E mais esta do nosso poeta:

Eu sei que me perdi, sei que pequei,
Porque o destino me não quis matar,
Quando tão desolada e só busquei
Trabalho honrado e ninguém mo quis dar.

E esta de A. Gil:

E há no mundo quem afronte
Uma mulher quando cai!
Nasce água limpa na fonte
Quem a suja é quem lá vai. 

Para terminar, mais duas quadras do nosso poeta:

Os versos que te cantaram
A prosa que te esculpiu
Nem se quer esboçaram
O que o meu peito sentiu.

Vejo aromas a evolar
Murchar flores no jardim
Mas jamais verás murchar
A que floriu dentro de mim!

Depois de passar a vista por esse precioso bouquet de poesias de Hipólito Rodrigues que o seu irmão, Alberto Rodrigues, outro poeta de merecimento, enfeixou com o título de Luz e Sombras, fica-se com a impressão de que essas poesias foram escritas, não com um plano premeditado, mas conforme lhe acorresse límpido veio de inspiração.

De certo, Hipólito Rodrigues enriqueceu as letras portuguesas com tão carinhoso sentimento que poucos poetas do se tempo o teriam ultrapassado em intensidade lírica, superior aprumo e vibração. Por isso mesmo, Alberto Rodrigues merece apreço dos que amam as belas letras, por ter arrancado do esquecimento esse poeta suave, de infinita ternura para os sofrem e de coração rasgado para os que lhe abrissem o coração, ofertando-lhe, em ritmo e graça, redobrado amor.

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