Sensibilidade altamente poética, vibrando às angústias da situação humana presente e expressando-me em cânones modernos, Orlando da Costa, nosso jovem conterrâneo, foi, há coisa de dois anos ou menos, saudado por um grande diário de Lisboa como o valor mais representativo no actual panorama literário de Goa.
Pela sua formação intelectual (é licenciado em História e Filosofia), e uma sensibilidade estética esquisita, determinada pela circunstância de ser filho da terra, Orlando da Costa oferecia a mais forte esperança de vir a apresentar-se um raro intérprete da alma goesa. E de facto, pouco tempo passou, e precisamente em Fevereiro de 1961, Orlando da Costa brindou as letras portuguesas com um novo livro, desta feita um romance, “O Signo da Ira”, todo ele ambientado em Goa e que, sem favor algum, basta para firmar os seus créditos como um romancista de garra, perfeitamente a ombrear-se com os contemporâneos de maior vulto, na moderna literatura portuguesa.
“O Signo da Ira” tecnicamente filia-se na corrente do romance social. Popularizado por um John Steinbeck, um Caldwell, um Jorge Amado (em Portugal tem seguidores em Fernando Namora, Redol, etc), o romance social quadra admiravelmente para veículo de expressão das ideologias sociais mais variadas, pelo recurso a um inesgotável material humano, susceptível de transfiguração artística.
Da terra que lhe dera berço, lembra Orlando da Costa, um dia, aos 18 anos, quando dela se separara, junto com a saudade amorosa, um travo de angústia pela miséria que via à roda, uma revolta por uma condição humana que um código social implacável e multissecular canonizara, votando a um destino negro sem saída, um classe de seres, que assim vive a sua humilhação e opróbrio, à beira da prepotência e desmandos de uns poucos. “O Signo da Ira” materializa dramaticamente esta “condição humana”
Num pequeno povoado, vive um punhado de famílias curumbins, manducares do sinistro Bab-Ligôr, na preoccupação obsediante da colheita da vagana. Mundo baço este, pobre, de uma pobreza que toda a mais abjecta miséria, de um primitivismo chocante. Mas quanta humanidade ali, quanta verdade naquelas almas labregas e rudes: Natel nascendo às surpresas inquietas do amor; Bostião sonhando o seu lar após a colheita da vangana; Quitrú vivendo dia a dia, hora a hora, a alegria do seu primeiro filho que tem no ventre; Coinção, de alma grande e bela, sacrificando num gesto heróico a sua felicidade e vida; Jaqui, Pedru, Rumão... Que painel de figuras humaníssimas e magistrais!
Sobre esse fundo, que se afiguraria pobre estofo, Orlando da Costa construiu uma trama admirável, que se lê de um fôlego, com um cescendo de interesse até o fim.
Mas o que faz a grandeza de “O Signo da Ira” não é tanto o equilíbrio da carpintaria romanesca – raro num que se estreia no género – como o sopro de um lirismo ímpar que perpassa pelas páginas deste livro, misturado a uma profunda melancolia que nos comove até o fundo. Indubitavelmente Orlando da Costa ama esta terra com todas as fibras da sua grande alma. Este seu amor, aliado a uma sensibilidade poética das mais puras, faz-lhe descortinar belezas virgens nesta terra onde menos imagináramos, recorrer a imagens de sabor regionalíssimo e, por isso mesmo, de recorte admiravelmente fino e impecável, tudo na magia de um estilo sóbrio e de uma harmonia surpreendente.
Eis numas amostras respigadas à toa, como ele casualmente se refere a Natel virand ao Amor:
Quase ausente da terra, Natalparece ter os sentidos mais atentos e sensíveis, como se fosse capaz de ouvir o próprio capim a crescer... A sua pele esticada e escura está luzidia, como as folhas da jaqueira lavadas pela chuva (p.29)
E só um poeta podia ter colhido num instantâneo maravilhoso a imagem de beleza e ternura que Pedrú bêbado, inconscientemente gravou, naquele dia em que passeava despreocupadamente a sua folga, e brutalmente se viu açoitado por um expedicionário “pacló”, não menos bêbedo que ele:
Rumão era o responsável pelo fim que tivera a filha, não tinha dúvidas – pensa Pedrú – mas o outro, o outro, gozando de uma revoltante impunidade, amesquinhara-o até onde se pode, agredindo-o e lançando-o à terra num dia em que, no meio de uma alegria imperfeita mas Sabrosa, gozava com os outros um dia de descanso, bebendo fenin e comendo grão assado (p.263)
O que caracteriza a arte de “O Signo da Ira” é esta poesia funda, que bebe as raízes numa visão telúrica da paisagem dos homens e coisas. Por isso, os conflitos que Orlando da Cosa descreve, se desenrolam sempre contra o fundo duma natureza cruel e cega; homens em briga ou diálogo com a terra. Ainda a psicologia das reacções se determina por uma instintiva comunhão da natureza, que empresta à sua arte uma luz vivíssima. Veja-se o episódio em que o soldado expedicionário às furtivas no bambual espreita o banho de Natel ao poço:
“... E resolvera espiá-la, de longe. Aí a tinha. Nunca o seu coração se alvoraçara daquela maneira (...) Talvez fosse do sol que os iluminava a ambos, do ar transparentes e livre, do verde que cresce no chão para ir acabar no alto dos cajueiros da encosta. Como se ela estivesse inteiramente só – pensou ainda – tudo fosse dela.. só dela (p.129-130).
E que dizer do desfecho, após a confissão inesperada de Natel ao Padre Antú? É toda uma página de um lirismo arrebatador, sim senhor!
Terminemos.
Quando só contava 18 anos, deixara Orlando da Costa esta sua terra. Levara consigo então, na sua alma ardente, todo um poema de luz e melancólica tristeza. No gemido da opressão, no olhar dorido de tanto sofrer ele suspeitara um grito de revolta, uma faísca incontida. Quantos anos passaram desde que Orlando da Costa nos deixou! Por isso, a versão que ele nos oferece, a ser verdadeira, é válida também para os dias de agora. A gangrena deve continuar, túmida de bichos, prestes a rebentar. Mas processar-se-á necessariamente a evolução das instituições do passado por uma viragem brutal, sob o signo da ira?
Um decidido pendor para uma certa “visão da vida” é propícia a falsear a realidade sobretudo num artista, tentando-o a carregar os tons nos aspectos sombrios. Como resultado imediato, a criação dos personagens ressente-se na verosimilhança, pecando naquela “lógica interior” de que nos fala algures Fialho.
Verdade, as crianções de “O Signo da Ira” são terrivelmente perfeitas, nem Orlando da Costa lhes empresta uma interioridade psicológica, absurda naquelas almas simples. Mas poder-se-á outrotanto dizer do Bab Ligôr?
Que ferocidade, injustiça e cinismo naquela figura sinistra! Pretenderá Orlando da Costa apresentá-lo como tipo do batcará goês?!
Era tão bom que Orlando da Costa, afim de vencer incertezas, contactasse de parto, esta nossa realidade, de novo. De certo lhe surgiriam, então, novas luzes e nos daria mais depoimentos da sua pena brilhante, que nos fizessem vibrar às nossas belezas ignoradas, amar a nossa querida terra, chorar a miséria do nosso povo.
Pela sua formação intelectual (é licenciado em História e Filosofia), e uma sensibilidade estética esquisita, determinada pela circunstância de ser filho da terra, Orlando da Costa oferecia a mais forte esperança de vir a apresentar-se um raro intérprete da alma goesa. E de facto, pouco tempo passou, e precisamente em Fevereiro de 1961, Orlando da Costa brindou as letras portuguesas com um novo livro, desta feita um romance, “O Signo da Ira”, todo ele ambientado em Goa e que, sem favor algum, basta para firmar os seus créditos como um romancista de garra, perfeitamente a ombrear-se com os contemporâneos de maior vulto, na moderna literatura portuguesa.
“O Signo da Ira” tecnicamente filia-se na corrente do romance social. Popularizado por um John Steinbeck, um Caldwell, um Jorge Amado (em Portugal tem seguidores em Fernando Namora, Redol, etc), o romance social quadra admiravelmente para veículo de expressão das ideologias sociais mais variadas, pelo recurso a um inesgotável material humano, susceptível de transfiguração artística.
Da terra que lhe dera berço, lembra Orlando da Costa, um dia, aos 18 anos, quando dela se separara, junto com a saudade amorosa, um travo de angústia pela miséria que via à roda, uma revolta por uma condição humana que um código social implacável e multissecular canonizara, votando a um destino negro sem saída, um classe de seres, que assim vive a sua humilhação e opróbrio, à beira da prepotência e desmandos de uns poucos. “O Signo da Ira” materializa dramaticamente esta “condição humana”
Num pequeno povoado, vive um punhado de famílias curumbins, manducares do sinistro Bab-Ligôr, na preoccupação obsediante da colheita da vagana. Mundo baço este, pobre, de uma pobreza que toda a mais abjecta miséria, de um primitivismo chocante. Mas quanta humanidade ali, quanta verdade naquelas almas labregas e rudes: Natel nascendo às surpresas inquietas do amor; Bostião sonhando o seu lar após a colheita da vangana; Quitrú vivendo dia a dia, hora a hora, a alegria do seu primeiro filho que tem no ventre; Coinção, de alma grande e bela, sacrificando num gesto heróico a sua felicidade e vida; Jaqui, Pedru, Rumão... Que painel de figuras humaníssimas e magistrais!
Sobre esse fundo, que se afiguraria pobre estofo, Orlando da Costa construiu uma trama admirável, que se lê de um fôlego, com um cescendo de interesse até o fim.
Mas o que faz a grandeza de “O Signo da Ira” não é tanto o equilíbrio da carpintaria romanesca – raro num que se estreia no género – como o sopro de um lirismo ímpar que perpassa pelas páginas deste livro, misturado a uma profunda melancolia que nos comove até o fundo. Indubitavelmente Orlando da Costa ama esta terra com todas as fibras da sua grande alma. Este seu amor, aliado a uma sensibilidade poética das mais puras, faz-lhe descortinar belezas virgens nesta terra onde menos imagináramos, recorrer a imagens de sabor regionalíssimo e, por isso mesmo, de recorte admiravelmente fino e impecável, tudo na magia de um estilo sóbrio e de uma harmonia surpreendente.
Eis numas amostras respigadas à toa, como ele casualmente se refere a Natel virand ao Amor:
Quase ausente da terra, Natalparece ter os sentidos mais atentos e sensíveis, como se fosse capaz de ouvir o próprio capim a crescer... A sua pele esticada e escura está luzidia, como as folhas da jaqueira lavadas pela chuva (p.29)
E só um poeta podia ter colhido num instantâneo maravilhoso a imagem de beleza e ternura que Pedrú bêbado, inconscientemente gravou, naquele dia em que passeava despreocupadamente a sua folga, e brutalmente se viu açoitado por um expedicionário “pacló”, não menos bêbedo que ele:
Rumão era o responsável pelo fim que tivera a filha, não tinha dúvidas – pensa Pedrú – mas o outro, o outro, gozando de uma revoltante impunidade, amesquinhara-o até onde se pode, agredindo-o e lançando-o à terra num dia em que, no meio de uma alegria imperfeita mas Sabrosa, gozava com os outros um dia de descanso, bebendo fenin e comendo grão assado (p.263)
O que caracteriza a arte de “O Signo da Ira” é esta poesia funda, que bebe as raízes numa visão telúrica da paisagem dos homens e coisas. Por isso, os conflitos que Orlando da Cosa descreve, se desenrolam sempre contra o fundo duma natureza cruel e cega; homens em briga ou diálogo com a terra. Ainda a psicologia das reacções se determina por uma instintiva comunhão da natureza, que empresta à sua arte uma luz vivíssima. Veja-se o episódio em que o soldado expedicionário às furtivas no bambual espreita o banho de Natel ao poço:
“... E resolvera espiá-la, de longe. Aí a tinha. Nunca o seu coração se alvoraçara daquela maneira (...) Talvez fosse do sol que os iluminava a ambos, do ar transparentes e livre, do verde que cresce no chão para ir acabar no alto dos cajueiros da encosta. Como se ela estivesse inteiramente só – pensou ainda – tudo fosse dela.. só dela (p.129-130).
E que dizer do desfecho, após a confissão inesperada de Natel ao Padre Antú? É toda uma página de um lirismo arrebatador, sim senhor!
Terminemos.
Quando só contava 18 anos, deixara Orlando da Costa esta sua terra. Levara consigo então, na sua alma ardente, todo um poema de luz e melancólica tristeza. No gemido da opressão, no olhar dorido de tanto sofrer ele suspeitara um grito de revolta, uma faísca incontida. Quantos anos passaram desde que Orlando da Costa nos deixou! Por isso, a versão que ele nos oferece, a ser verdadeira, é válida também para os dias de agora. A gangrena deve continuar, túmida de bichos, prestes a rebentar. Mas processar-se-á necessariamente a evolução das instituições do passado por uma viragem brutal, sob o signo da ira?
Um decidido pendor para uma certa “visão da vida” é propícia a falsear a realidade sobretudo num artista, tentando-o a carregar os tons nos aspectos sombrios. Como resultado imediato, a criação dos personagens ressente-se na verosimilhança, pecando naquela “lógica interior” de que nos fala algures Fialho.
Verdade, as crianções de “O Signo da Ira” são terrivelmente perfeitas, nem Orlando da Costa lhes empresta uma interioridade psicológica, absurda naquelas almas simples. Mas poder-se-á outrotanto dizer do Bab Ligôr?
Que ferocidade, injustiça e cinismo naquela figura sinistra! Pretenderá Orlando da Costa apresentá-lo como tipo do batcará goês?!
Era tão bom que Orlando da Costa, afim de vencer incertezas, contactasse de parto, esta nossa realidade, de novo. De certo lhe surgiriam, então, novas luzes e nos daria mais depoimentos da sua pena brilhante, que nos fizessem vibrar às nossas belezas ignoradas, amar a nossa querida terra, chorar a miséria do nosso povo.
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