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Monday, 15 July 2013

Agostinho Fernandes - Quadro Vivo (1955)

Um quadro vivo que parece raro porque é... clandestino. Recém-casados. Lar ideal. Ricos e felizes. Todos comentam: uma perene lua de mel.

Ele trabalha num escritório e ri-se: lembra-se do antigo namorado da sua esposa. Era efeminado, franzino e fora despedido quando este entrar em cena. Era uma vitoria. A primeira vitória. Não era, pois, verdade o que os seus colegas disseram. Não era idiota e gebo afinal. Até a mulher gostara... e casara. Agora ela só a ele amava, a ele, o marido. Este adorava-a. Idolatrava-a.

Ainda ontem ela dissera: vou ser mãe. Que satisfação. Que júbilo! Ele? Pai?! Morria de alegra!

Voltava sempre às Ave-Marias. Eram logo beijos e abraços... um nunca mais acabar.

Naquele dia pensou voltar cedo. Uma surpresa para a esposa adorada. Presentes. Chapéus. Perfumes, e umas rendazinhas para o bebé. Entrou como de costime, sem bater a quase desmaiou: ele conspurcando-lhe o sagrado tálamo nupcial. Ele, o efeminado, o que fora despedido!

Agostinho Fernandes - Haverá Vida no Sol?! (1955)

Ainda reinam controvérsias sobre o assunto. Contanto, é um facto mais ou menos assente: há possibilidades de existência de seres vivos no planeta Marte. Nada mais natural. Na verdade, como se pode admitir que de tantas planetas constituintes do sistema solar, de tantos astros conhecidos que pululam pelos espaços, e, de entre inúmeros que nem os mais poderosos aparelhos engendrados pelos cérebros humanos conseguem ver, ou sentir apenas, só o nosso planeta, seja habitado por seres vivos? Até parece um absurdo pensar que essa dádiva seja tão somente monopólio da Terra...

As mentes dos cientistas e investigadores ferveram e lá chegaram à conclusão de que havia possibilidades de vida no Marte... Mas, porque pensaram só no Marte? Com certeza porque é o planeta cujos condições, sob todos os pontos de vista, mais se aproxima das da Terra. Isto está bem se nós pensarmos na existência duma vida semelhante à nossa, mas, os restantes planetas podem ter seres vivos diferentes das no nosso, com outras necessidades, outras exigências...

Já é de todos sabido que os seres vivos tem um grande poder de adaptação. Vejamos o que se passa com esses seres ínfimos que nós chamamos bactérias. Tem a sua temperatura óptima onde proliferam maravilhosamente, mas estas mesmas bactérias podem viver a temperaturas mais altas ou mais baixas, desde que a passagem dum dado grau de calor ao outro seja gradual. Em resumo, acabam por se adaptar. Descobriu-se a penicilina e em voz alta declarou-se uma guerra fatal aos micróbios. A vitória durou pouco. Os nossos minúsculos inimigos tornaram-se resistentes a este prometedor antibiótico, isto é, adaptaram-se a ele...

Se, mesmo dentro do nosso planeta, a natureza dota os seres vivos de tão amplo espectro de adaptação, o que será em relação ao outro?...

O sistema solar é constituído de Mercúrio, Vénus, Terra, Marte, Júpiter, etc, girando todos em volta duma grande fonte calorífica que é o Sol... Alem de outras coisas, o qeu nos leva a duvidar da existência de vida noutros planetas são as largas diferenças de temperatura. Todos os planetas recebem o calor do Sol. É claro que o mais próximo dele receberá mais em relação ao seguinte. Como é que nós avaliamos este calor? Em relação ao calor da Terra. Quando dizemos que Vénus é mais quente, subentendemos que o é em comparação com a Terra. Da mesma forma, o Marte é menos quente.

Na Terra estamos habituados a ver seres que não resistem a um inframinimo e a um determinado inframaximo mas, lá por isso, não podemos dizer que Júpiter onde a temperatura não atinge o nosso mínimo, se no Vénus onde ela é superior a nosso máximo, não haja vida. A única coisa que podemos afirmar é que não pode haver seres vivos iguais aos da Terra.

O que dissemos da temperatura podemos agora generalizar para o resto. Assim, é possível, por mais absurdo que isso pareça, que nos planeta desprovidos de água haja seres vivos que possam viver sem ela, naqueles em que falta ai se viva na absoluta ignorância deste fluido e que na constituição física desta vida entrem elementos que nós ainda não conhecemos ou que não existem na terra e que lhes permitam adaptar ao meio em que vivem...

Quem sabe se há seres no estado líquido, se há seres voláteis ou em qualquer outro estado por nós ignorado?

O que pensarão de nós e do nosso planeta os possíveis habitantes desses mundos? Sabendo que a sua Ciência não excedeu a nossa, o mesmo problema misterioso que é hoje para nós sê-lo-á para eles também... Os seus cientistas devem estar a martelar a cabeça e os aparelhos para responder as perguntas: O “haverá vida noutros planetas?”, “haverá vida na Terra?”

O que dissemos dos planetas podemos prolongar até a miríade de astros, de próprio Sol onde a temperatura atinge cifras inacreditáveis... Quem sabe se no Sol não existem seres no estado gasoso?

Cedo ou tarde chegar-se-á à Lua... e ao Marte. O homem não descansará enquanto não ponha lá o pé... levará consigo tudo o que for preciso para se adaptar àquele meio... Não tardará muito que os demais planetas o tentam também... Também lá chegará...

...E qualquer dia, os nossos descendentes ainda ouvirão, no aeroporto interplanetário, diálogos como este:

- Adeus, querida. Trabalhos urgentes chamam-me a Platão. Espero que não me sejas infiel na ausência...

E a esposa algo comovida:

- Adeus, amado. Boa viagem e feliz regresso...

Ou então terão no jornal em letra minúscula como se fosse uma coisa vulgar... e os simpáticos noivos seguiram viagem ao Sul para lá gozarem a “lua de mel”...

- E lá haverá vida, diferente da nossa, não importa, mas haverá vida no Sol...

Thursday, 6 June 2013

Pedro Correia-Afonso - Agostinho Fernandes (1973)

Foi através de “A Literatura Indo-Portuguesa” de Vimala Devi e Manuel de Seabra que eu vim a conhecer o Agostinho Fernandes e o seu romance “Bodki”. Eis o que aqueles dois autores dizem de um e doutro:

“Se não foi o primeiro romance adulto da Índia Portuguesa (referência ao “Signo da Ira” de Orlando da Costa), “Bodki” é, sem dúvida, o mais importante.

“Agostinho Fernandes traduz nesta obra a sua experiência de clínico numa pequena aldeia do interior de Goa. Trata-se de um romance em primeira pessoa, autobiográfico na medida em que a confissão pessoal tem lugar numa obra de arte. Recém-formado, o autor – ou antes a principal personagem – preterido num concurso para delegados de saúde por um colega menos classificado mas melhor apadrinhado, decide exercer medicina em Maxém, na zona fronteiriça. Toda a obra é a luta que se vê obrigado a empreender contra os mitos, as superstições da população hindu e católica. O seu primeiro cuidade é estabelecer uma reputação, a fim de poder criar influência com que deter o gadhi, o feiticeiro hindu que mantém aquela gente agarrada às suas superstições tradicionais.”

“Feita a sua reputação, ao protagonista não faltam doentes, principalmente a gente humilda da terra. Mas a luta contra a ignorância e a superstição é uma constante de todo o livrom, sobre cujo enredo, além disso, paira, do principio ao fim, a sombra aziaga e misteriosa da bodki, alvo de todo o ódio e frustração da gente da aldeia. Mas quem é a bodki? Sabê-lo é condição indispensável para a perfeita compreensão da obra. Agostinho Fernandes, cônscio de que está a escrever para um público desconhecedor das tradições religiosas hindus (o livro foi publicado não em Goa mas em Lisboa), põe a explicação na boca da própria bodki, que a trasmite à filha Kamala, a heroína do romance. Bodki é um substituto do sati, o sacrifício da viúva na pira funerária do marido. As viúvas que se recusavam a este sacrifício tinham de considerar-se mortas para o mundo. Rapavam a cabeça, vestiam sari branco e retiravam-se da povoação, passando a ser consideradas aziagas, amaldiçoadas, pela deusa Agni, a deusa do fogo, a quem não tinham obedecido.

“O tema, a luta contra a ignorância; a moral, de que só elevando o nível cultural do povo, é possível vencer nessa luta, estão admiravelmente delineados. A intriga é aliciante e Bodki é certamente um dos romances mais bem construído da moderna literatura portuguesa, e um dos poucos romances portugueses com possibilidades de conseguir vasta audiência internacional por mérito próprio” (as expressões parentéticas são minhas).

Compreende-se que, lida a apreciação dos autores de “A Literatura Indo-Portugueses” quando esta obra apareceu; eu tivesse o mais vivo interesse em ler o romance de Agostinho Fernandes. Mas como ninguém em Goa, que eu soubesse, possuía um exemplar da obra, foi só recentemente em Lisboa que pude ler o livro, depois de o adquirir por uma ninharia, 5 escudos, num passeio ao pé do Chiado, posto à venda no chão por um livreiro ambulante que ainda tinha pelo menos meia dúzia de exemplares, todos em primeira mão.

O romance, publicado por conta própria pelo autor, com capa de Anita Estibeiro, em 1962, um ano apenas, portanto depois do “Signo da Ira” ter-se-ia, pelos vistos, vendido mal, o que mostra que, sem embargo de tudo o que dele dizem Vimala Devi e Manuel de Seabra, esta primeira tentativa literária de Agostinho Fernandes não teve sequer em Portugal a audiência que seria de prever para “um dos romances mais bem construídos da moderna literatura portuguesa” e “um dos poucos com possibilidades de conseguir vasta audiência internacional”.

Há aliás um manifesto exagero e algumas inexactidões na apreciação crítica de Vimala Devi e Manuel de Seabra. Para apontar duas destas, trata-se realmente de um romance autobiográfico numa certa medida, mas o autor não é a principal personagem, pois a principal personagem, a heroína, como se diz mais tarde, é Kamala, a filha da bodki e ela mesma em vias de se tornar, de qualquer modo, uma bodki, por morte do amante, o pintor Singh, sique e não parse, como se infere do próprio nome.

Bodki será de facto um romance com uma “intriga aliciante” e que “decorre todo num ambiente de grande suspense e dramatismo, que prende e arrasta o leitor”, mas não se pode dizer que seja “um dos romances mais bem construídos” de (toda) a moderna literatura portuguesa. A meu ver, há mesmo uma sobrecarga de episódios, alem de divagações, os tais “longos solilóquios” discutindo os méritos da medicina, problemas de consciência, etc., que quebram a unidade da narrativa, faltando-lhe precisamente aquilo que mais se gaba no romancista, “uma notável e instintiva noção de “medida””.

Ainda bem, pois, que os dois críticos reconhecem que Bodki está longe de ser um romance perfeito e tem defeitos, “tem-nos principalmente de estilo e técnica. Vê-se claramente que a Agostinho Fernandes falta “ofício”. A linguagem é por vezes descuidada, pouco precisa... Não admira que assim seja, pois Agostinho Fernandes não é, ao que consta, um “literato”, não frequentou tertúlias nem discutiu problemas de técnica e estética literária, talvez não possua mesmo uma grande cultura literária. Agostinho Fernandes é um escritor nato, que viveu e escrever espontaneamente, longe de influências e de “literatos”. É precisamente isto que, em minha opinião, dele destingue, de modo assinalado, o outro romancista goês contemporâneo Orlando da Costa, autor do “Signo da Ira”, Prémio Ricardo Malheiros de 1962.

Tuesday, 21 May 2013

Agostinho Fernandes - Ladrão (1955)

Fora um galo anunciava a madrugada. Surgiu mais uma ideia: se fosse ao cofre do patrão? Havia lá tanto dinheiro que ele, com certeza, não daria pela falta de uma notinha de 5... Rounar?! Ele que até então fora dos mais honestos? Roubar ele?... Mas cinco rupias não empobreciam o patrão! Ele que apodrecia de rico!... Ladrão! – dizia-lhe uma voz lá dentro... Desistiu... O número 20338 tornou a aparecer... “Ele também rouba! Roubam todos!” Saiu decididamente da cama. A mulher ressonava. A coberta esburacada descobria-lhe os voluptuosos seios nus. Abre de mansinho a porta. O filho mais novo acorda e grita pela mãe... Não se importa com ele, sai. O tempo urge, a escuridão é providencial...

Rasteja cautelosamente pelos corredores. Há luz na cozinha do patrão. A sua sombra projecta-se enorme na alvura da parede. Recua... Ganha ânimo, avança. Os seus passos ressoam nas lajes. Soa-lhe ao ouvido, cada vez mais a voz íntima: Ladrão!... Ladrão!... O patrão dorme profundamente. Na cadeira está o casaco. As chaves estão no bolso.... A sua mão treme toda... As chavezinhas parecem geladas... O patrão mexe-se, dá uma volta na cama...

Abre o cofre. Um estrondo medonho! Silêncio a seguir... Valerá a pena? E se o número for falso?... Tira uma notinha de cinco! Surge-lhe neste momento uma outra ideia: e fosse até Pondá consultar o “gaddi”?... Quem tira cinco tira dez... Chega-se até à porta... Recua ainda... Ladrão! Ladrão!... Não é nada... É apenas o coração que bate mais forte!...

... Ouve-se o rodar dum carro. Desperta do seu sono! Oh! Era um carro particular... E o tempo avança...

... As palavras do Gaddi soavam-lhe ainda aos ouvidos: “Vai sair o número 20338. Vá depressa que talvez ainda consegue bilhete.” Dizia o sono, dizia o Gaddi, dizia a sua consciência! Não! Não podia ser falso! Ia ser rico!

Apareceu a carreira. Lançou-se a ela, mas esta vinha tão cheia que o condutor, não recebia nem mais um passageiro. Para cúmulo estava lá um polícia!

Era de estoirar! Paciência!... Mas se chegar tarde? Perderia tudo! Não! Impossível! De qualquer forma tinha que enriquecer. Poderia enfim adquirir um terreno muito seu e construir lá uma casinha.... Comprar umas eiras de terra e uma junta de bois... Não haveria mais vexames do patrão para a sua esposa.. Mandaria os filhos à escola. Talvez pudesse montar um pequeno negócio. Um barzinho, talvez. Conseguiria ter um criado para dar ordens, e, quem sabe? Talvez viesse a ter pança como o patrão... Mas o auto demora-se muito. Assim não pode ser... E pose-se a correr a toda a brida... Os membros martirizam-se e os pulmões não aguentam. Já corria há mais de 20 minutos. De repente ouve o ruído do carro... Felizmente vinha quase vazio... Mete-se nele e ordena ao condutor: a máxima velocidade. O carro quase que voa mas, ao homem impaciente parece que anda como lesma. Mais, mais!...

Chega enfim a Pangim. Soavam 9 horas. A extracção começava às dez. Tinha ainda uma hora para procurar as cautelas miraculosas. Como um louco andou aqui e acolá pelas ruas. Nem um vendedor de lotarias! Teriam morrido todos? Na praça, ninguém. Foi ao bazar. Nada! Foi ao cinema! O mesmo! Sem dar por isso chegou ao pé da Provedoria de Assistência Pública. Mole imensa de gente esperançosa. Encontrou-se com um vendedor de bilhetes: “Tem cautelas?” “Não. Estão esgotadas.” Correu ao outro. Esta tinha muitas. “Tem o número 20338?” “Tenho sim. Quantas cautelas quer?” “Dê-me o bilhete inteiro!...” Comprou. Azar! Era de extração seguinte!... Devolveu. Correu ao terceiro, correu a muitos outros. Ninguém tinha. Chegou ao pé dum velhote! “Você tem com certeza. Dê-me! Pago o duplo!”. “Eu tenho, mas...” “Mas (segue na 4a página) o quê? Eu quero!” “Não, não tenho..” Levantou-o pela gola do casaco: “Dê-me! Ao menos uma cautela! Pago-lhe cinco rupias!” “Não, não tenho.” “Rogo-lhe de joelhos! Única cautela!” “Não!” Desconsolado sentou-se no chão ao pé do velho... Beijou-lhe os pés: “Uma, só uma” “Não!” Estava alquebrado! Já não podia mais... E... ladrão!...

... Momentos depois saía o número 20338 e dois homens desmaiavam ao mesmo tempo. O velho vendedor de lotarias, pobrezinho, feito rico num instante e o homem honesto feito ladrão...

Saturday, 27 April 2013

Agostinho Fernandes - Goa: Vinte Anos Depois (1977)

Foi em 1958, numa tarde de calor abrasador, o suor a escorrer pelo rosto marcado já pela infinda e melancólica saudade, que deixámos Goa a bordo do paquete “Índia”, rumo a novos horizontes, a aventura e ao desconhecido...

Já lá vão cerca de vinte anos... Vinte anos de tristezas e alegrias, de esperanças e ilusões, de luta e trabalho. Vinte anos de vivência profunda nas mais árduas condições, em choques constantes com civilações que não eram as nossas, vinte anos de acrisolado amor escondido algures num cantinho do ser por este pedaço de terra perdido na imensidão do mapa.

Agora regressamos...

Meu Deus! Como Goa se modificou! Como Goa desenvolveu! Como Goa se fez adulta! Como Goa nos pareceu estranha e quase hostil!

Logo nos primeiros dias Goa mostrou-se-nos algo desconhecida, tão diferente do querido torrão que deixáramos há apenas duas dezenas de anos... A invasão do progresso já chegara até Goa... Lindos e airosos prédios de vários andares, com estruturas e matizes ocidentais, desabrocham um pouco por todo os lados...

Pangim, cidade quase bucólica de então, languidamente debruçada, estende-se agora em mostros de aço e cimento pelo Campal fora, enquanto uma enorme ponte substitui os “ferry-boats”.

Vasco da Gama, jardim florido que já foi, é, presentemente, uma amálgama de edifícios...

Mapuçá, que é feito da sua arrogante e aristocrática fidalguia?

Margão perdeu a sua ancestral pacatez para dar lugar a um reboliço constante, num ir e vir continuo e estonteante de gentes e veículos, de vozes e ruídos, de buzinas e gritos: “Quepém... Sanvordém... Sanguém..., Varcá..., Orlim..., Carmonã...” Tan-laddu”, “Tan-laddu”, “Pan-supari”...

Longas e serpenteantes fitas de negro asfalto cobrem todas as estradas e mesmo as picadas insignifiantes indo morrer nos povoados mais afastados dos grandes centros.

A corrente eléctrica invadiu agressivamente até os casebres mais humildes do interior. Aqui e acolá pululam grandes complexos industriais substituindo gradualmente as antigas pequenas industrias quase artesanais.

As escolas galgaram, ao desafio, bairros e povoações numa luta desenfreada de expandir o sabor e a instrução atingiu níveis que nem sequer nos era dado sonhar... Santo Deus, tantos e tantos jovens com curso superior! Goa bem pode vangloriar-se da sua juventude.

Entretanto, potentes escavadores continuam a desentranhar as encostas dos Gates num ciclópico trabalho de extração de riqueza que em camiões, em comboios e em barcaças é drenada nos bojos de enormes cargueiros ancorados no magnífico porto natural de Mormugão...

“Ninguém mais poderá deter o progresso deste terra” – como diriam os brasileiros. Coom Goa modificou-se.

Céleres, os dias foram passando. Num frenesi constante, numa verdadeira luta contra o relógio, andamos, vimos, sentimos, sondamos, palpamos, convivemos e agora que estamos quase a deixar o nosso torrão natal, apesar do estonteante e salutar progresso, apensar do imenso desenvolvimento, apesar, ainda, do calor, quase insuportável, continua a ser a mesma Goa que deixámos duas décadas atrás.

São iguais as lágrimas comovidas dos familiares que nos querem tocar repetidamente para terem a certeza de que não estão a sonhar e de que a nossa presença aqui é mesmo real.

São mesmos os abraços dos velhos amigos que quase nos partem as costelas de tanto nos apertar.

E mesmo o sotaque: carinhoso dos conhecidos que cruzam connosco nas ruas e nos saúdam amigavelmente: “boró assa”?

São iguais as várzeas infindas já loiras de sazonadas, algumas já em plena faina de ceifa e debulha, são iguais os cantares dos “rendeiros” lavrando as palmeiras são idênticos os murmúrios dos ribeiros e regato na sua corrida interminável para o mar, é idêntico o pipilar gorjeante dos pássaros orquestrando o alvorecer.

Não mudou o olhar vivo e nos rostos das criancinhas a caminho da escola, não mudaram os deliciosos sabores das iguarias tipicamente nossas, não mudou o ruminar pachorrento dos bois vagueando pelos arrozais já ceifados...

Não! Goa, apesar de tudo mantém-se idêntica a si mesma! Até o esguio e solitário coqueiro ao pé dos rochedos, à sombra do qual rimamos os nossos primeiros versos de ingénua adolescência, continua hirto e vigilante, talvez um nadinha mais velho, desafiando o firmamento com as suas palmas generosamente abertas...

Não há dúvida, Goa continua a ser a mesma “Golden Goa” de sempre, onde ainda se pode acariciar com a vista o frondoso das suas matas e o verdor das suas plantações, onde a hospitalidade e o carinho continuam a não ser uma palavra vã, onde a poluição ainda não chegou, onde ainda se pode respirar, como bálsamo salutar, a paz, o sossego, a tranquilidade que no resto do mundo já se perderam há muito tempo...

É adeus novamente.

Obrigado Goa por nós ter possibilitado redescobrir um dos últimos recantos onde ainda é permitido sonhar, onde a esperança renasce, onde a vida n~åo nos parece tão vazia e inútil.

Mais uma vez obrigada Goa... e até breve.

Monday, 1 April 2013

Agostinho Fernandes - Tudo Voltará (1955)

…Ela morreu!... Morreu porque, coitada, lhe estalou o coração!

Mas terá morrido de facto? Teria deixado de existir? Sim! Aquele corpo de que ela ufanava de exibir as formas, já não existe! Desfez-se. Foi riscado o seu nome.

Para o diante, confundir-se-á com a terra, transformar-se-á nela, regressará à natureza de onde saíra para poucos dias.

Os seus órgãos despedaçar-se-ão em células, inúmeras células que perderão o poder de trabalhar, como unidades para uma unidade, destacar-se-ão egoisticamente, ganharão autonomia embora por pouco tempo e vir-se-ão libertas de escravidão do senhor – e todo – mas, por fim, degradar-se-ão também em compostos químicos cada vez mais simples até chegaram a elementos. O mesmo destino terá a brancura da roupa que lhe mascarou o corpo, as flores deliciosas que a acompanharam, as lágrimas que a molharam e o próprio palicete de pinho que lhe servira de lúgubre morada. Tudo se degradará, tudo se misturará entre si e com a terra, tudo o que foi votado à corrupção. Será uma massa anómala, idêntica a si mesma. Desaparecerão os antigos compostos químicos para se transformarem em neves, provenientes de mistura dos elementos daquelas diferentes unidades que a terra piedosamente recebeu no seu maternal seio.

Breve, tudo se dividirá em infinitas unidades químicas – os iões – que palatarão como bichos imundos presos a um corpo atirado à putrificação.

Terminações de raízes incautas obrigarão até lá. Absorverão sôfrega aquelas unidades de matéria e, a seiva fecunda correrá célere pelas veiazinhas da planta, ávida de distribuir pelos seus múltiplos órgãos aquele tóxico enverdecedor, vivificador!

Um botãozinho delgado, esquecido, banqueteará largamente naquela ceia fúnebre e daí uma flor policrómatica, viçosa, abrir-se-á impudica como uma mulher nua na cálamo nupcial.

Exalará aromas inebriantes... e as frescas brisas espalharão por toda a parte aquelas aromas fabricadas a partir de matérias pútridas... As abelhas não se demorarão em fecundar as flores sedentas de paixão, com o pólen fabricado enfim com a mesma matéria pútrida... E que deliciosas flores dali sairão?

E ninguém duvidará, ninguém pensará nisso. Deleitar-se-ão os olfactos com os magníficos aromas, galantear-se-ão as vistas com a harmonia das cores, muitos peitos se enfeitarão e se tornarão provocantes com aquelas flores, muitos paladares se saciarão com as frutas suculentas...?

Durará pouco! A natureza é pródiga e é avara ao mesmo tempo. Voltará tudo para ela. Os olfactos já não sentirão, as retinas não se admirarão, as flores murcharão e os frutos se transformar-se-ão em novas seivas e novos sangues.

Tudo voltará a natureza.. tudo, tudo o que de lá saiu. Não se perderá uma migalha, nem uma célula, nem um ião. Matematicamente tudo regressará a ela, para continuar a existir nela, eternamente. Nada se criará de novo, nem tão pouco se perderá, apenas se transformará largamente.

Sim. De facto. Embora se modifiquem integralmente os corpos e as suas formas, a natureza tem esse poder único: o de tornar imortal a sua matéria!

Agostinho Fernandes - Cortejo Fúnebre (1955)

O sino da igreja chorava lugubremente. À minha frente passava um cortejo, um cotejo fúnebre... Uma égua, velha e raquítica, com uma capa negra e desbotada, no costado, puxava languidamente o carro mortuário. De quando em quando as suas narinas dilatavam-se, e o olhar brilhava cínico com que dissesse: “uma besta viva a carregar uma besta morta!...”

Quem iria no féretro? Um velhote, diabético, vergado sob o peso da maldade? Qualquer jovem roubado à vida desvairada? Alguma mulherzinha subtraída às dores do parto...?

Atrás seguia gente: parentes e amigos, admiradores e indiferentes... Todos, num pouco à vontade, pareciam condenados... Alguns derramavam lágrimas hipócritas... Outros pareciam fulminados pela dor que não sentiam. Ainda havia alguns, talvez os mais sinceros, os mais honestos, que se entretinham a conversar.

Sem querer, sem mesmo pensar nisso, meti-me no cortejo, fui seguindo a égua cínica... O sino continuava chorando, continuava derramando lágrimas.. Como nada tinha a fazer pus-me a ouvir os comentários: “Coitadinha, estava para se casar...” “Tinha apenas vinte anos, mas que jóia de rapariga!...” “... Moça a valer, lá isso era! Que formas!...” “... Foi o coração que se estalou. E de namorar muito!” Não pude conter uma gargalhada! Que comentos! E a égua a ouvir tudo isto e a julgar...

Mas afinal porque seguia eu o cortejo? Com que fim? Nem sequer conhecia o ilustre cadáver...! Se ao menos aquilo divertisse...!

Passava-se por um restaurante. Raspei-me, meti-me por aí dentro e enquanto o café fumegava na chávena, o meu pensamento acompanhou o cortejo e voou até a casa dos mortos: lá estava ela, rapariga de 20, moça a valer e a quem o coração estalara! E o coração estalara exactamente quando se ia casar! As suas vestias imaculadas, vestias de virgem salientavam-se na escuridão da cova fria, cova de primeira classe! Vestiam-na de virgem para ser hipócrita mesmo depois de morta: davam-na um poisio de primeira classe para continuar a ser “classista”! Mas lá estava ela... O seu rosto não me parecia desconhecido. Talvez já a tivesse visto, talvez a tivesse visto muitas vezes! Sabe-se lá?... Talvez ao passar por mim, toda perfumada, toda orgulhosa das suas formas a tivesse desejado secretamente... Talvez já a tivesse despido muitas vezes com o olhar! Poderia perguntar quem era ela. Mas, para quê? Que me interessava isso? Ela estava lá. Um montão de células podres!... Aquele coração que estalara já não bateria mais! O sangue estagnar-se-ia nas veias, o cérebro deixaria de pensar, os músculos não se moveriam, os nervos não conduziriam e o seio não arfaria outra vez! Ninguém mais a desejava, ninguém mais se importará com ela, pertencerá ao passado e, daqui a dias eu próprio me esquecerei dela e do cortejo fúnebre...

Saturday, 29 October 2011

Agostinho Fernandes - Até breve, Goa (1982)

O autor do artigo que se vai ler é sr. dr. Agostinho Fernandes, médico goês, hoje radicado nas Caldas da Rainha. É autor de um romance intitulado Bodki, com capa de Anita Estibeiro, publicado em Lisboa. É o segundo romance adulto goês (o primeiro é, como se sabe, Signo da Ira de Orlando da Costa), ambientado em Goa, numa região sertaneja, onde exercia a profissão de médico e em que dominava a figura de mau agoiro de uma viúva hindu de cabeça rapada)

Após um dia particularmente laborioso e fatigante estava a descansar o espírito por uns momentos olhando distraído para o pequeno escran do televisor. Entre dois programas, a Rádio-Televisão Portuguesa mimoseou-nos com uma canção, já antiga, mas bela, na voz de Rui Mascarenhas:

Oh, minha terra

Onde eu nasci,

Quantas saudades

Eu tenho de ti

E foi naquele preciso instante que tudo começou: uma imensa saudade, em ondas sucessivas, apoderou-se dos confins mais recônditos da minha alma, uma lágrima furtiva brotou no canto do olho e um soluço, em no, estrangulou-me a garganta... Sim, bruscamente, que saudades eu senti da minha querida Goa e dos entes queridos e dos amigos que lá deixei... Seguiu-se uma noite semeada de horríveis pesadelos como que expiação de tenebrosas culpas e, ao acordar, tinha já a decisão tomada: sigo para Goa o mais depressa possível! A minha habitual agência de viagens informou-me que havia um voo para Bombaim, via Frankfurt, ainda esta semana e que poderia estar em Goa já na próxima sexta-feira.

É o que vou fazer. Em poucos dias estarei contigo, Goa querida. Não vou de vez, não! Ainda não!... Mas prometo estar lá muito tempo, um mês inteiro, pois tenho muitas saudades para matar, muita vida para reviver... Não vou só, levo a família toda, a mulher e os filhos, para te verem mais uma vez, para te quererem, para te amarem...

Pois é, Goa, dentro em pouco estarei lá...

Gostaria de chegar encoberto ainda pelas brumas do alvorecer para ninguém me ver chorar ao abraçar a minha mãezinha, os meus irmãos e sobrinhos, os meus velhos e queridos amigos e neles, Goa inteira, naquele abraço sufocante, feito de amor e saudade...

Gostaria de chegar bem de madrugada para, do alto de Dabolim, ver o sol raiar lá pelas bandas dos Gates efusivamente saudado pelo desconcertado chilrear da passarada...

Pois é Goa, dentro em pouco estarei lá...

Quero rever os cantos e os recantos da minha casa onde, num gatinhar desenfreado primeiro e depois num andar trémulo e indeciso, fui tomando contacto com a imensidão do mundo que me era ofertado na palma da mão ainda insegura, logo ao balbuciar as primeiras palavras...

Quero mostrar ao meu rebento mais novo a goiabeira gigante, mesmo ao lado da casa, sobre a qual por horas infindas me pendurava saboreando o delicioso agridoce das goiabas mais além onde, no topo, colocava a comprida haste de bambu impregnada de visco de jaca para apanhar os periquitos mais incautos, e ainda, o coqueiro mais alto lá do sítio, quase a tocar o céu, que eu um dia subi, até à copa, em temerária aposta com um amiguinho meu e que me valeu um exemplar correctivo da parte do meu pai, que Deus tem. Que saudades...

Ao outro filho meu, ainda mais traquinas que eu com igual idade, o tal que também herdou o vício de pesca quero mostrar o sítios secretos do rio, até hoje ciosamente guardados, a curva mais fechada, o fundo mais acidentado, onde o peixe é mais abundante, mais graúdo e quiçá mais saboroso... Que saudades, Goa, que saudades...

Pois é verdade, dentro em pouco estarei lá... Tenho muito que rever...

Quero saltitar por Goa inteira, de Tiracol a Galgibaga, de Castle-Rock até a costa de Malabar...

Quero visitar as ruínas da minha escola primária, onde a velha profissora Adelaide me ensinou as primeiras letras e os primeiros algarismos à custa de muitas palmatoadas e puxões de orelhas... Sim, tembém disso tenho saudades...

Quero visitar, subindo demoradamente a escadaria monumental do antigo Liceu Afonso de Albuquerque, onde os queridos mestres passaram tormentos sem fim nas nossas mãos, vítimas favoritas das nossas mãos, vítimas favoritas das nossas rudes brincadeiras, tão estouvadas que nos éramos...

Quero visitar o edifício da gloriosa Escola Médica, momumento vivo de antanho, onde, a par de alguma ciência, na altura bem pouca ainda, nos enriquecemos de amor pelo próximo e de profundo respeito pelos que sofrem...

Tenho muito que fazer, Goa... Mas tenho tempo, um mês inteiro...

Acompanhado do meu primogénito, o buço a romper-lhe já pelo rosto semeado de borbulhas, quero rodopiar nas festas de AVC ou quejandas, ao som das ternas melodias da “Rádio Serenaders” ou , já em trejeito de fim de baile, o sol a querer entrar à força pelas janelas dos Clubes Nacional e Vasco da Gama, ouvir extasiado o mágico violino do Johnson acompanhado do veludo da sua lânguida voz a murmurar quase em prece: “au revoir... j’attendrai... cette nuit...”

Tenho muitas saudades para matar...

Em loucas correrias quero caminhar pelas escaldantes areias da praias de Calangute, Baga, Colvá, Betul, Agondá, Palolém, quero banhar-me vezes sem conta na láctea espuma das tépidas e salsas águas, quero dormir sob a copiosa sombra dos coqueiros, docemente embalado pelas brisas, e sonhar...

Quero percorrer de ponta a ponta os bazares de Margão, Pangim, Mapuçá, regatear com as peixeiras, discutir sem razão com os vendedores de bugigangas...

Em dia de festa, quero saborear um “ambott tic” de cação como só a minha mãe sabe fazer, um “chacuti” de cabrito com não há no mundo outro igual, meu Deus, como sinto a água crescer-me na boca – e, para rematar, arroz com caril de cavalas a cheirar a olorosas “teofollamm”... Uma talhada de papaia bem madurinha e ainda uma boa fatia de bebinca de sete folhas que ficara, metade no prato, por comer por o estômago já não aguentar mais.. Por fim um cálice de “fenim” de caju para “tudo digerir”, como diria o meu impedido quando andei na tropa... Será que ainda se come em Goa? Que diabo, e festa e um dia não são dias.

Mas há mais coisas que tenho de fazer em Goa...

Está próximo o Setembro e as suas bucólicas alegrias... Quero ouvir os cânticos das ceifeiras em ondulantes searas, louras espigas de arroz a amontoarem-se nas eiras, os altos montículos de palha na paisagem...

E depois, quando a faina estiver terminada, o “bate” a bom recanto nos celeiros, quero assistir, uma vez só, ah, isso sim! A terrível fúria dos elementos da natureza, os ventos ululantes a fustigarem a escura noite de breu, os relâmpagos a riscarem os céus em compridas e tortuosas serpentes, os trovões a ecoarem por montes e vales, grossos cordões de chuva a despejarem-se ininterruptamente do firmamento esburacado... As terríveis “chuvas da terra”, como sempre as temi, como sempre as adorei!...

E ao entardecer, em religioso silêncio, quero deleitar-me em contemplar o sol no ocaso, o oceano a arder aos poucos, todo fogo liquido, dum amarelo alanjarado, com laivos de sangue.

E, à noite, em Pangim, de braço dado a minha mulher, o luar a desfazer-se em poalha doirada nas águas do Mandovi, quero passear pelo Campal, quase em romagem de saudade, rememorando as recordações das inesquecíveis serenadas, contando-lhe o desfazer dos inconsequentes namoros, frutos imaturos de turbulenta adolescência, as juras nunca compridas, os sonhos, jamais realizados...

Pois é, Goa, a minha vida não é mais que um rosário de recordações...

Sim, quero ainda ver novamente o cais de Mormugão, aquele tirano, onde, uma vintena de anos atrás me vi, de repente, quase sem dar por isso, encostado a murada do navio “Índia”, os olhos a turvarem-se de lágrimas e, o barco a distanciar-se dos lenços a dizerem adeus, dos coqueiros a abanarem os longos braços a terra a desaparecer numa nuvem esbatida e, à nossa frente, impiedoso, o negro oceano a raptar-nos para a Europa distante...

Fomos em busca de novos horizontes, para conhecer novos mundos e novas gentes, mas a saudade... conseguiu vingar, cresceu, agigantou-se... e, por isso, em breve estarei lá!

Então, Goa querida, até sexta-feira, se Deus quiser...