O autor do artigo que se vai ler é sr. dr. Agostinho Fernandes, médico goês, hoje radicado nas Caldas da Rainha. É autor de um romance intitulado Bodki, com capa de Anita Estibeiro, publicado em Lisboa. É o segundo romance adulto goês (o primeiro é, como se sabe, Signo da Ira de Orlando da Costa), ambientado em Goa, numa região sertaneja, onde exercia a profissão de médico e em que dominava a figura de mau agoiro de uma viúva hindu de cabeça rapada)
Após um dia particularmente laborioso e fatigante estava a descansar o espírito por uns momentos olhando distraído para o pequeno escran do televisor. Entre dois programas, a Rádio-Televisão Portuguesa mimoseou-nos com uma canção, já antiga, mas bela, na voz de Rui Mascarenhas:
Oh, minha terra
Onde eu nasci,
Quantas saudades
Eu tenho de ti
E foi naquele preciso instante que tudo começou: uma imensa saudade, em ondas sucessivas, apoderou-se dos confins mais recônditos da minha alma, uma lágrima furtiva brotou no canto do olho e um soluço, em no, estrangulou-me a garganta... Sim, bruscamente, que saudades eu senti da minha querida Goa e dos entes queridos e dos amigos que lá deixei... Seguiu-se uma noite semeada de horríveis pesadelos como que expiação de tenebrosas culpas e, ao acordar, tinha já a decisão tomada: sigo para Goa o mais depressa possível! A minha habitual agência de viagens informou-me que havia um voo para Bombaim, via Frankfurt, ainda esta semana e que poderia estar em Goa já na próxima sexta-feira.
É o que vou fazer. Em poucos dias estarei contigo, Goa querida. Não vou de vez, não! Ainda não!... Mas prometo estar lá muito tempo, um mês inteiro, pois tenho muitas saudades para matar, muita vida para reviver... Não vou só, levo a família toda, a mulher e os filhos, para te verem mais uma vez, para te quererem, para te amarem...
Pois é, Goa, dentro em pouco estarei lá...
Gostaria de chegar encoberto ainda pelas brumas do alvorecer para ninguém me ver chorar ao abraçar a minha mãezinha, os meus irmãos e sobrinhos, os meus velhos e queridos amigos e neles, Goa inteira, naquele abraço sufocante, feito de amor e saudade...
Gostaria de chegar bem de madrugada para, do alto de Dabolim, ver o sol raiar lá pelas bandas dos Gates efusivamente saudado pelo desconcertado chilrear da passarada...
Pois é Goa, dentro em pouco estarei lá...
Quero rever os cantos e os recantos da minha casa onde, num gatinhar desenfreado primeiro e depois num andar trémulo e indeciso, fui tomando contacto com a imensidão do mundo que me era ofertado na palma da mão ainda insegura, logo ao balbuciar as primeiras palavras...
Quero mostrar ao meu rebento mais novo a goiabeira gigante, mesmo ao lado da casa, sobre a qual por horas infindas me pendurava saboreando o delicioso agridoce das goiabas mais além onde, no topo, colocava a comprida haste de bambu impregnada de visco de jaca para apanhar os periquitos mais incautos, e ainda, o coqueiro mais alto lá do sítio, quase a tocar o céu, que eu um dia subi, até à copa, em temerária aposta com um amiguinho meu e que me valeu um exemplar correctivo da parte do meu pai, que Deus tem. Que saudades...
Ao outro filho meu, ainda mais traquinas que eu com igual idade, o tal que também herdou o vício de pesca quero mostrar o sítios secretos do rio, até hoje ciosamente guardados, a curva mais fechada, o fundo mais acidentado, onde o peixe é mais abundante, mais graúdo e quiçá mais saboroso... Que saudades, Goa, que saudades...
Pois é verdade, dentro em pouco estarei lá... Tenho muito que rever...
Quero saltitar por Goa inteira, de Tiracol a Galgibaga, de Castle-Rock até a costa de Malabar...
Quero visitar as ruínas da minha escola primária, onde a velha profissora Adelaide me ensinou as primeiras letras e os primeiros algarismos à custa de muitas palmatoadas e puxões de orelhas... Sim, tembém disso tenho saudades...
Quero visitar, subindo demoradamente a escadaria monumental do antigo Liceu Afonso de Albuquerque, onde os queridos mestres passaram tormentos sem fim nas nossas mãos, vítimas favoritas das nossas mãos, vítimas favoritas das nossas rudes brincadeiras, tão estouvadas que nos éramos...
Quero visitar o edifício da gloriosa Escola Médica, momumento vivo de antanho, onde, a par de alguma ciência, na altura bem pouca ainda, nos enriquecemos de amor pelo próximo e de profundo respeito pelos que sofrem...
Tenho muito que fazer, Goa... Mas tenho tempo, um mês inteiro...
Acompanhado do meu primogénito, o buço a romper-lhe já pelo rosto semeado de borbulhas, quero rodopiar nas festas de AVC ou quejandas, ao som das ternas melodias da “Rádio Serenaders” ou , já em trejeito de fim de baile, o sol a querer entrar à força pelas janelas dos Clubes Nacional e Vasco da Gama, ouvir extasiado o mágico violino do Johnson acompanhado do veludo da sua lânguida voz a murmurar quase em prece: “au revoir... j’attendrai... cette nuit...”
Tenho muitas saudades para matar...
Em loucas correrias quero caminhar pelas escaldantes areias da praias de Calangute, Baga, Colvá, Betul, Agondá, Palolém, quero banhar-me vezes sem conta na láctea espuma das tépidas e salsas águas, quero dormir sob a copiosa sombra dos coqueiros, docemente embalado pelas brisas, e sonhar...
Quero percorrer de ponta a ponta os bazares de Margão, Pangim, Mapuçá, regatear com as peixeiras, discutir sem razão com os vendedores de bugigangas...
Em dia de festa, quero saborear um “ambott tic” de cação como só a minha mãe sabe fazer, um “chacuti” de cabrito com não há no mundo outro igual, meu Deus, como sinto a água crescer-me na boca – e, para rematar, arroz com caril de cavalas a cheirar a olorosas “teofollamm”... Uma talhada de papaia bem madurinha e ainda uma boa fatia de bebinca de sete folhas que ficara, metade no prato, por comer por o estômago já não aguentar mais.. Por fim um cálice de “fenim” de caju para “tudo digerir”, como diria o meu impedido quando andei na tropa... Será que ainda se come em Goa? Que diabo, e festa e um dia não são dias.
Mas há mais coisas que tenho de fazer em Goa...
Está próximo o Setembro e as suas bucólicas alegrias... Quero ouvir os cânticos das ceifeiras em ondulantes searas, louras espigas de arroz a amontoarem-se nas eiras, os altos montículos de palha na paisagem...
E depois, quando a faina estiver terminada, o “bate” a bom recanto nos celeiros, quero assistir, uma vez só, ah, isso sim! A terrível fúria dos elementos da natureza, os ventos ululantes a fustigarem a escura noite de breu, os relâmpagos a riscarem os céus em compridas e tortuosas serpentes, os trovões a ecoarem por montes e vales, grossos cordões de chuva a despejarem-se ininterruptamente do firmamento esburacado... As terríveis “chuvas da terra”, como sempre as temi, como sempre as adorei!...
E ao entardecer, em religioso silêncio, quero deleitar-me em contemplar o sol no ocaso, o oceano a arder aos poucos, todo fogo liquido, dum amarelo alanjarado, com laivos de sangue.
E, à noite, em Pangim, de braço dado a minha mulher, o luar a desfazer-se em poalha doirada nas águas do Mandovi, quero passear pelo Campal, quase em romagem de saudade, rememorando as recordações das inesquecíveis serenadas, contando-lhe o desfazer dos inconsequentes namoros, frutos imaturos de turbulenta adolescência, as juras nunca compridas, os sonhos, jamais realizados...
Pois é, Goa, a minha vida não é mais que um rosário de recordações...
Sim, quero ainda ver novamente o cais de Mormugão, aquele tirano, onde, uma vintena de anos atrás me vi, de repente, quase sem dar por isso, encostado a murada do navio “Índia”, os olhos a turvarem-se de lágrimas e, o barco a distanciar-se dos lenços a dizerem adeus, dos coqueiros a abanarem os longos braços a terra a desaparecer numa nuvem esbatida e, à nossa frente, impiedoso, o negro oceano a raptar-nos para a Europa distante...
Fomos em busca de novos horizontes, para conhecer novos mundos e novas gentes, mas a saudade... conseguiu vingar, cresceu, agigantou-se... e, por isso, em breve estarei lá!
Então, Goa querida, até sexta-feira, se Deus quiser...
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