Sempre que víamos o barco de carreira de Bombaim atracado ao cais da Alfândega, um imenso anseio enchia o nosso peito de aventura pelas Sete Partidas do Mundo, sulcando sete rios e sete mares; de percorrer os cinco Continentes (que os ingleses alargaram para seis, partindo a América em duas, talvez para dar maior dimensão aos seus domínios, quando eram senhores da Terra e do Mar, onde o Sol nunca se punha).
Uma bela manhã de princípios de Janeiro, ligeiramente friorenta, tirámo-nos de cuidados para dar realidade ao nosso anseio e metemo-nos num daqueles Leviathans de cabotagem (à cautela, porque hoje em dia os desastres de avião frequentes, não se sabe se por os Jumbos estarem a pedir repouso nalguma estancia de sucatas ou por mãos criminosas e vingativas, com fins políticos, esconderem bombas no seu bojo, como quem esconde mata-ratos na cave).
Mal largou as amarras, o Konkan Shakti, pesadão e negro como um albatroz, foi descendo o rio abaixo, com a cidade desbobinando-se com as suas imagens policrómicas de caleidoscópio e, na outra margem, com os perfis de fortes aparatosas, meio desmantelados e inúteis eriçados de guaritas e ameias negros e soturnos como se ainda sentissem mouro na costa – fortes que estão a pedir camartelo demolidor para que deles não fique pedra sobre pedra e memória sinistra de prisões políticas, para arejar e alindar esta terra outrora tão cobiçada pelos soldados de aventura e pelos buscadores de fortuna; mas sempre bela, sempre verde e sempre procurada pelos turistas que vão de cá desiludidos por falta de alojamento condignos a condizer com a beleza paisagística, as praias encantadoras e os monumentos artísticos. Goa, hoje em dia, abunda em hippies seminus, esfarrapados, escanzelados, entregues ao tráfico de estupefacientes, com o que unicamente evidenciam o seu desprezo pela Nossa Terra e pela Nossa Gente, coisa que, de certo, na sua própria terra não lhes é permitido. Mas os nossos governantes, seduzidos pelo brilho das divisas estrangeiras, fecham os olhos à realidade e deixam que eles conspurquem e intoxiquem a nossa juventude e as nossas belezas naturais.
Viajar com a mulher e a bagagem (ambas femininas), coisa incómoda, por elas demandarem cuidados e atenções. Não há nada mais cómodo como viajar só com uma malinha de mão, com a qual se pode ir, comodamente, até o fim do mundo e, com um pouco de boa vontade, até para o outro mundo.
O sol doira o mar e o horizonte no ocaso, e a noite tropical desce bruscamente para envolver a terra e o mar no seu manto de veludo negro. Vem a lua de prata e a poalha de estrelas. Só os faróis, de longe em longe, piscam seu olho faiscante de Ciclope para avivar a navegação do perigo à proa. Às 20:30 passa, emproado e garboso, todo salpicado de clarões de luz, soltando mugidos roucos atroadores da sirene, o irmão gémeo do nosso – o Konkan Sevak.
As sete de manhã já se avista Bombaim, ainda sonolenta e embrulhada no seu xaile de neblina parda. O sol já acima do horizonte é como um muhur de oiro remirando-se nas águas paradas e glaucas da baía, qual Narciso para atrair “as sereias, que no fundo do mar, dançam sobre as areias” na velha canção da nossa infância. O bruhaha das horas do desembarque. Os passageiros pressurosos em chegar ao seu destino. Assalto aos táxis e a exigência dos bagageiros, que amenizam o tom à aproximação do policia, para condescender: “de o que estiver na vontade do freguês.” O táxi tem de abrir passagem à força de buzinadelas, por entre a multidão de gente grulhante que peja as ruas. Apesar de o Congresso estar dividido nunca se viu tanto Gandhi-cap, em manhãs como esta, nas ruas circundantes ao cais.
Bombaim, terra de exílio tão nossa conhecida, onde andamos empenhados, durante anos, na luta fecunda e apaixonante, empunhando o facho ardente e triunfante de “Ressurge, Goa!” Bombaim, que cresceu verticalmente, com os arranha-céus, como uma floresta de cimento, parecendo querer topetar o céu. A arquitectura vitoriana cedeu o passo aos multi-storeys modernos de Bacbay e Cuffe Parade.
Chegámos, enfim, ao cabo do nosso roteiro Goa-Bombaim – dois esteios do defunto Império Colonial Português no Oriente. Goa sob a durindana implacável de Albuquerque o Terríbil e Bombaim que já no século 17 deixou de ser portuguesa por o rei D. João IV a ter dado em dote a sua filha D. Catarina de Bragança ao casá-la com Carlos 2o, da Inglaterra e onde um Garcia, curioso das plantas, medicinais da Índia, tinha uma quinta, pelo que ficou sendo conhecido entre os seus amigos íntimos (que fazem sempre melhor cama), pela alcunha “O da Orta.” Aquele Garcia da Orta ganhou fama com o seu livro do ‘Colóquios sobre Simples e Drogas e Plantas Medicinais da Índia.”
Já em terra firme, libertos do espaço acanhado da cabina e da estreiteza da tolda onde os ‘passos perdidos’ não podiam estender-se muito, ocorreu-nos à memória a quadra do “Pescador de Pérolas” do drama ‘Sundorem’, do elenco do Grupo Teatral:
Mar alto, mar alto, mar alto,
Mais alto que eu sulco de escaler;
Mais vale andar no mar alto,
Do que sujeito ao capricho de mulher.
As frequentes evasões de Goa para Bombaim ou Nova Delhi concorrem para nos mergulhar no banho de civilização e para rejuvenescer o nosso espírito, proporcionando-nos o ensejo de assistir a diversas manifestações intelectuais, tais como a inauguração de exposições de manuscritos preciosos e livros raros, organizada pela Asiatic Society of Bombay, no Durbar Hal do majestoso Town Hall, exposições de arte (pintura e escultura), conferências científico e literárias, dramas e bailados, e a excursão pelo inextricável “Filmland” e, em especial, o magnífico “Planetárium”, maravilha da ciência moderna de perscrutar os astros de que os próprios Aryabhata, Copérnico e Galileu se orgulhariam: os grandes comícios do Shivaji Park, que não se realizaram devido às rivalidades internas do próprio partido no poder, para gáudio de indígena e das facções do Congresso, e para amargurar a vida politica do Primeiro-Ministro, Morarji Desai, em contraste com as grandes manifestações publicas que foram acolhidos na Índia, Carter and Callaghan.
The Asiatic Society of Bombay foi fundada em Novembro de 1804, com o fim de promover o conhecimento, em particular, dos trabalhos literários respeitantes à Índia. Ela é sucessora da Asiatic Society de Calcatá, fundada em 1784, por William Hastings, e da qual foi Presidente William Jones, orientalista eminente que revelou ao mundo ocidental o drama Shakuntala, de Kalidasa que mereceu a Schopenhauer entusiásticos louvores. Tivemos o ensejo de admirar naquela exposição não só velhos e preciosos manuscritos indianos, em Devanagri, árabe, persa e urdu, mas também edições impressas dos Vedantas e Puranas, o Bhagavad Purana, traduzido para o francês pelo insigne orientalista e filosofo Eugène Barnouf e o Bhagavadgita, igualmente traduzido para o francês pelo sanscritólogo Émile Burnouf. Os originais clássicos franceses, Les Fleurs du Mal, de Baudelaire e obras de Voltaire e Rousseau; Sylvain Levy, com Le Théatre Indien, que, segundo o seu autor “a originalidade da Índia é expressa inteiramente na sua arte dramática que os seus dogmas, as suas doutrinas, os seus mitos e as suas lendas”; obras de François Rabelais e Rochefoucauld; a Correspondência de George Sand e Alfred Musset e Pierre Loti representado como o “L’Inde sans les Anglais.”
Uma noite ofereceu-se-nos o ensejo de percorrer, numa corrida rápida, a longa e sinuosa avenida de Chowpatty – o Marine Drive – que marginava a grande baía orlando de enfiada de luzes multicores reflectindo nas águas como um colar principesco de pedras preciosas, de caminho ao Catholic Gymkana, onde em Dezembro de 1948, aquando do nosso primeiro regresso do exílio voluntário em Portugal, assistimos pela primeira vez (com assombro misto de escândalo) ao Baile do Fim do Ano, e em 1974, à recepção do Dr. Mário Soares. É uma das muitas reminiscências que afloraram ao nosso espírito – pois, o que é a vida se não uma enfiada de contas que desafiamos com saudade para “recordar e viver?”
Os nossos afazeres em Goa forçam-nos a encurtar as férias e cortar cerce o fio da nossa digressão pelo mundo colorido e ultramoderno, com os seus inevitáveis contrastes, que é Bombaim.
Na noite anterior, os ventos rijos e o mar picado tinham provocado a demora, na manhã seguinte, do barco que nos devia trazer de torna-viagem para Goa. Porém o Konkan Sewak que largara de Bombaim com hora e meia de atraso, brioso como era, com marchas forçadas recuperou o tempo perdido e manhã cedo do dia seguinte avistámos terra de Goa, que reconhecemos, mercê das suas praias brancas, os edifícios alvejando por entre o denso palmeiral e a silhueta do negredado Forte da Aguada, a ponta do Cabo com o seu palácio banco poisado um pombal e a foz do Zuari coalhada de barcos cargueiros, que trazem contrabando e levam a maior riqueza que Goa possui, que é o seu minério.
Mergulhámos, novamente, na pasmaceira de Goa, unicamente amenizada pelos trabalhos que nos assoberbam, intelectuais e culturais.
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