Saturday 29 October 2011

António Colaço - Apreciação de Mariano Gracias (1965)

O doce poeta da Saudade, da esperança e do Amor, Mariano Gracias, com o seu lirismo insinuante e cândido, deixou algumas produções que bem merecem um sucinto estudo, adentro da orientação a que, em boa hora, se subordinam os programas desta Emissora. No domínio da poesia subjectiva, com o seu verso correntio e fácil, enriquecendo às vezes de fortes tintas orientais, próprias de um artista que bebeu a sua inspiração no ardente “Súrya” tropical, o poeta goês, vivendo entre a saudade da Índia e a saudade de Portugal, numa alternância em que o subjuga, porém, a sua vincada ancestralidade oriental, produziu uma obra decerto irregular e desconexa, mas sempre animada daquela sinceridade e pathos que são a característica da verdadeira poesia.

De um físico impressionante e aristocrático, o rosto coroado por uma grenha densa e exuberante e rematado por amplas barbas grisalhas (é assim que o vi, um dia, fugazmente, num dos seus ‘regressos ao lar’), a poesia estava-lha no corpo e na alma e a sua obra denuncia bem que se tratava, realmente de alguém que (como ele diz) “sonhara” que sonho a vida se resume! No Jardim das Musas goesas, não pretendeu reivindicar um canteiro privilegiado. Contentou-se com uma álea humilde, que regou carinhosamente com o seu sorriso, a sua doçura, a sua dor. No post scriptum do seu livro “O Crespúsculo da Saudade”, escrevia modestamente:

“Quando eu morrer, que mão piedosa vá pôr sobre o meu raso coval apenas uma cruz, de bronze ou ferro, - símbolo da fé cristã em que hei vivido e conto acabar – atravessada por um raio, símbolo da vida, que, na sua rápida passagem, fosse escrevendo nela esta profunda palavra – “Nihil”. E, no sopé da cruz, estas quatro linhas, seguidas do meu obscuro nome:

Aqui dorme quem, em suma,
Sempre amou o Belo e o Bem,
Quem jamais foi cousa alguma,
Nunca passou de ninguém

Um eco distante do celebre Cinis, Pulvis et Nihil de D. Custódio de Pinho. Ponto de encontro (espontâneo!) entre os que seguem, cada um à sua maneira, a linha do Espírito. A atitude poética de Mariano Gracias (e de tantos outros poetas) é, de um modo geral, a mesma que a da Santa de Lisieux: a da Infância Espiritual. Os mesmos olhos ingénuos e claros, abertos a tudo quanto há de mais belo e nobre na vida, candura, inocência, abandono. Claro que o confronto acaba aí. Seria ousado pretender transferir para o ambiente humilde do Poeta os transcendentes e arrojados voos da Florzinha do Carmelo. “Sou criança também!...”, dizia timidamente o nosso poeta, se bem que, obtectivando logo a distancia que separa a infância real da infância de espírito, tivesse de confessar, um dia, soluçando:

Que é dessa infância perfumada e leve
Desse mocidade de rubro sal loiro?
Que é do passado, que foi que ele teve?
Que é da quimera que se evolou breve?
Que é dessa luz, desse sol, desse oiro?!


Vivendo como um forcado entre o estreito âmbito de uma... repartição pública (a grilheta de tantas poetas!) e um lar feliz, inundado de poesia – “a felicidade suprema e encantadora do meu pequenino lar abençoado de Deus”, dizia o poeta, referindo-se à família – a sua existência decorria naturalmente no mesmo ramerrão de amarguras e de alegrias que o dos restantes mortais, mas transfigurada em perene sonho pela sua alma de Poeta. É nesse lar que, num encantamento, ele pôde beber a inspiração para esta poesia de um lirismo enternecedor e simples:

Canção do Berço

A minha mulher, para adormecer Wanda 

Água da fonte que canta, 
Água do mar que murmura,
É ter mão nessa garganta
Que fale com mais brandura,

Folha de árvore que treme,
Ave que pia no ninho,
Roda da nora que geme,
Mais baixinho... mais baixinho.

Nuvem que no espaço corre,
Asa que passa no ar,
Água da rocha que escorre,
Devagar... mais devagar.

Onda que suspira e rola
Ave que vai de caminho,
Fumo do lar que se evola
Devagar... devagarinho.

Moinho que cantas e giras,
Mosca que fazes zumbido,
Vento agreste que suspiras,
Cessai com vosso ruído.

Pomba que estás no telhado,
Folha que rolas no chão,
Tende cautela, cuidado,
Não faças barulho, não!

Carro que chias na estrada,
Eco que vem desse vale,
Deixai-a dormir coitada
Que passou a noite mal.

Voa mais longe, andorinha,
Não ma venhas despertar,
Anda muito doentinha,
Deixa-a dormir, descansar.

Ai que está muito doente
A minha rica menina!
Ai de quem é inocente!
Ai de quem é pequenina!

Dorme, dorme, filha q’rida,
Que o dormir a dor acalma,
Ó vida da minha vida!
Ó alma da minha alma!
Coração, não batas tanto, 
Não batas, tem dela dó,
Dorme, filha, meu encanto,
Dorme, dorme, amor, o’, o’...”

Os dois primeiros versos desta última quadra são, como se vê, uma interessante trouvaille...

Como é sabido, o Poeta levava sempre na alma a doce luz da Crença, bruxoleante às vezes, mas logo intensa, e vemo-lo um dia cantando, num dos seus “regressos ao lar”, na cidade (ou vila) de Margão, onde nescera:

“É neste monte que a Virgem mora,
Na ermida branca, branca de luz,
P’ra cá vinha eu rezar outrora...
Com fé igual eu venho, Senhora,
Dar-Te a minha alma, mãe de Jesus!
Ó minha irmã! Que tardes amenas
Quando íamos juntos com a nossa mãe
Levar-Lhe flores para as novenas,
Pedir-Lhe alivio p’ra as nossas penas!
- Magoas e dores quem os não tem?!

Quando eu um dia deixei meu lar,
Ao pé do monte em que ora estou,
Em longes terras e sobre o mar
Aquele doce e bendito olhar
Em toda a parte me acompanhou...”

Claro que o Poeta – cumpre notar – nos poderia oferecer, do seu vasto e rico Cancioneiro, braçadas de flores de um colorido dessemelhante e variegado desde “O amor não se explica”:

(“Porque te amo... Sei lá, eu?
Acaso sabes tu, filha,
Porque se ama o azul do céu
E o clarão dos sol que brilha?)

Até esta quadra risonha e maliciosa, dir-se-ia cantada ao desafio:

Quem canta seu mal espanta,
Diz o popular ditado;
Mas quando aquele que canta
Não canta desafinado...

Como consta de “A Bíblia do amor”, Fialho comentando amavelmente o poemeto “Regresso ao Lar”, escrevia a Mariano Gracias: “As estrofes são lindas, o veio poético fácil, a emoção profunda e comunicativa, a forma a mais não cantante e vaporosa...” O furibundo critico amainava perante a doçura e a brandura de um Poeta perdido no seu ideal e no seu sonho.

Onde, porém, Mariano Gracias parece ter atingido a plena maturidade da sua vis poética, embora perdendo-se em extravagâncias devaneios e em exuberâncias de colorido, é no opúsculo “Terra de Rajás”, em que pinta a nossa encantadora Terra-Mater como que num deslumbramento, e do qual o próprio Poeta diz com carinho: “Não sei se este é o melhor livro; mas é o mais querido”.

Depois de registar este cândido desabafo num cartão de parabéns”

A Malaquite e o Corall 
A João de Vilhena

“no dia do seu noivado oferecendo-lhe um par de botões de malaquite e coral”

Lisboa, 7/IX/1918

Diz do mais pais a lenda
Que o malaquite e o coral
Andam em rija contenda
Contra o azar e contra o mal

São talismãs de ventura
Amuletos de fortuna,
Mas quando alguém porventura,
Por um fio de oiro os una,

São símbolos de bonança,
Antídoto contra o mal;
Malaquite: verde-esperança,
Cor de alegria o coral!

Eis pois a razão da prenda,
- Bem pobre, mas singular –
Sou índio, creio na lenda
- Seja feliz o teu lar/”

... vai logo o Poeta, em sucessivos arroubos, até às estrofes candentes da “Oração ao Surya” ou da “Ilha Encantada” (onde, por entre delírios de imaginação e exageros picturais, encontramos versos tão límpidos e perfeitos como estes: “Que linda noite de luar florido – Qual virgem a noivar de lírio ao peito! – Luar de opala em leite diluído – Um luar de diamante liquefeito!”), ou até às estâncias mais equilibradas do “Génio da Raça” ou da “Sundorém”, para amainar logo no transposição, em verso fluído e cantante, de “As três lendas indianas” e na recomposição poética de uma outra velha lenda, a que dá o título de “Metempsicose”, tão justamente louvada, no seu valioso estudo critico da Literatura Indo-Portuguesa, pelo Rev. Filinto Cristo Dias.

A um goês fala, evidentemente, mais de perto este mimoso soneto que, a despeito de certos desvios ou licenças poéticas, exalta em nós o verdadeiro amor filial à Terra-Mater, que tão perto devia estar sempre do nosso coração:

Goa
(O Goa, céu d’amores 
Veneza oriental!
Canais por entre as flores,
Palhetas de mil cores,
No murmuro cristal! – Tomás Ribeiro)

Dezembro. Manhã linda e gloriosa!
Sob a bênção do sol, a Natureza,
Comovida e ridente, canta e reza
A velha prece ardente e misteriosa!...

Passam terrais, em onda harmoniosa,
Espalhando perfumes!... Há beleza,
Frescura, encanto, em toda a redondeza,
A grande paz sagrada e religiosa!...

Toda perfume é um encanto a Goa!
Florida, de mil lótus a lagoa
É uma linda noiva engrinaldada!

Terra de rajás, moiras encantadas,
Diamantes, rubis, pérolas, esmeraldas!...
- Eis a ditosa Pátria minha amada!

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