Cristãos e hindus de Goa fariam bem de ler – e digerir – o oportuníssimo artigo que na última edição de domingo de The Navhind Times publicou o Rev. Baltazar J. Pereira, missionário goês no norte da Índia, outrora Professor de Filosofia no Seminário de Allahabad e recentemente nomeado Administrador da Sé de Simla. Como vêem, não se trata – repito o que disse a propósito do discurso do Prof. Armando Menezes no Colégio do Carmelo em Margao e da palestra sobre o Secularismo Indiano ao microfone da AIR pelo Rev. Dr. Nicolau Pereira, largamente comentados nesta coluna – de um “adepto da religião professada por Nehru”, como aprouve a um plumitivo descrever-me ao publicar uma série de artigos sobre a religião do falecido Primeiro Ministro da Índia, aparentemente “agora convertido ao credo de Paulo VI”, segundo o mesmo plumitivo, ao ler a actual série sobre o Pontífice reinante. Antes de entrar na apreciação do artigo do Rev. Baltazar Pereira, devo dizer, entre parênteses, para desfazer equívocos que a religião é um negócio do foro íntimo de cada indivíduo, com que os outros nada têm que ver, que sou por inteira liberdade religiosa e que defendo e defenderei sempre – diga de mim o que disserem – o secularismo do Estado, hoje adoptado em todos as nações progressivas do mundo e que na Índia, especialmente, se tornou uma imperiosa necessidade em vista da sua sociedade pluralista.
Católicos fechados e abertos
Para o católico “fechado” (d’après Graham Greene) de Goa, que se arrepelou todo perante o namastê do Papa Paulo VI ao assomar à portada carlinga do Nanga Parbat, o seu Jai Hind em plena “catedral aberta” do Oval, as suas citações de Tagore, dos Upanixadas e de outras escrituras hindus e muito do que disse e fez durante os quatros dias da sua da sua histórica visita à Índia, afigurar-se-á também bastante estranho muito do que, à laia de preambulo, nos conta a seu próprio respeito o Rev. Baltazar Pereira: que em 1958 trocou de vez Goa pela então Índia Britânica para se fazer missionário “ao longo do sagrado Ganges”; que poucos anos mais tarde renunciou à cidadania portuguesa para se naturalizar indiano; que julgou ter realizado o seu sonho quando um belo dia foi escolhido para trabalhar “no próprio coração hinduísmo – em Benares”; que foi para ele motivo de grande alegria ser acolhido por hindus em suas casa e recebê-los na sua, desfrutar a sua hospitalidade, mesmo de noite, e ser considerado por eles um membro distinto da sua família, assistir às suas funções sociais, mesmo as relacionadas com a religião, convidá-los para a ceia do Natal e outras refeições e enfim discutir com eles assuntos religiosos e outros, com mútuo proveito.
Três períodos distintos
Passa em revista o ilustre articulista três períodos sucessivos, mas distintos, da história de Goa, no que diz respeito às relações entre hindus e cristãos: - o períodos anterior a 1928, isto é correspondente à sua mocidade, antes da sua saída de Goa; o período de 1928 a 1961, coincidente, mais ou menos, com a ditadura de Salazar; e o período pós-libertação. No primeiro período, diz, notava-se uma inércia mortal entre os hindus que, como um todo, tinham pouco influência na vida pública e os cristãos que, embora ocupando a maior parte dos cargos do Governo, pareciam satisfeitos com o status quo, havendo pouco intercâmbio social entre uns e outros, mas sem animosidade de parte a parte, antes uma espécie de amizade passiva que, oferecendo-se uma ocasião, podia dar lugar a atitude útil. O regime de Salazar teria coincidido com uma nova era na história política, económica, social e religiosa de Portugal e produzido também mudanças em Goa: melhoramentos económicos, um reajustamento proveitoso entre o Estado e a Igreja e um despertar entre os hindus. Finalmente, no terceiro período, que estamos a atravessar, estaríamos a presenciar o rompimento dos laços que uniam hindus e cristãos cedendo o lugar a mútua desconfiança.
Separação do Estado e da Igreja
Antes de prosseguir, convinha corrigir um erro factual no artigo do Rev. Baltazar Pereira: o despertar dos hindus de Goa não foi obra do regime salazarista, implantado em 1928, mas da República democrática, proclamada em 1910. Com efeito, foi a partir de 1910, com o baquear da Monarquia e a implantação do regime republicano, que decretou a Separação do Estado da Igreja, que os hindus de Goa começaram a desfrutar inteiro igualdade de direitos e de oportunidades, como deixou registado o saudoso António de Noronha na sua excelente memória “Os Indus de Goa e a República Portuguesa”. O governo de Salazar, com a assinatura da Concardata e do Acordo Missionário, representou um retrocesso sob este ponto de vista pois se não restabeleceu o estado de coisas anteriormente existente, procurou de certo modo identificar a Igreja com o seu regime ditatorial; e se, para nos servirmos das palavras do distinto articulista, este reajustamento das relações do Estado e da Igreja foi proveitoso àquele, foi pelo contrário prejudicial a esta por diversos motivos. Foi só por conveniência politica local que os hindus de Goa começaram a ganhar ascendente na burocracia, não a partir de 1928, mas nos últimos cinco ou seis anos antes da libertação.
Repostos os factos no seu devido lugar, prossigamos na análise do artigo do Rev. Baltazar J. Pereira na última edição de The Navhind Times, sob o título de Hindus and Christians in Goa Must Stand Together. O ilustre articulista diz que a sua recente visita a Goa foi uma completa desilusão e que não pôde deixar de observar que estão a romper-se os laços que uniam cristãos e hindus em Goa. Espraia-se em seguida em largas considerações, diz-nos que visitou quase toda a Índia, do norte ao sul e do este ao oeste, e conheceu os seus povos (usando a palavra “povos” deliberadamente plural), que visitou também Portugal e a Espanha, a Suíça, a Itália, França, Inglaterra, e Irlanda e os Estados Unidos da América e que, em sua opinião, nenhum país é capaz de rivalizar com Goa no conjunto dos seus dons e potencialidades; a sua beleza estética, as qualidades maravilhosas do seu povo, entre os quais cumpriria mencionar a mescla das culturas do Oriente, do Ocidente, as suas riquezas naturais.
Um Estado-Modelo
Onde quer que se econtrem os goeses – salienta o Rev. Baltazar Periera - conquistaram um excelente nome para si e para a sua terra, com as mais esplêndidas potencialidades para reajustamento, a sua amabilidade, a sua inteligência e a sua honestidade acima do normal, o que outros povos e governos acabaram por apreciar e recompensar. Alem disso, Goa é terra rica em peixe, vegetação e minerais, e com um pouco de desinteresse no serviço e uma administração inteligente baseada no amor justo pela terra pode ser convertida não só num território auto-suficiente, mas benfeitor de outros estados na Índia, De facto, conclui, embora seja de exíguas dimensões e com reduzida população, Goa pode ser transformada num estado modelo. Mas – e é um grande mas – os goeses parecem não reconhecer as qualidades de que estão dotados, não ter confiança em si mesmos e, com a mútua desconfiança e receio entre hindus e católicos, a maravilhosa unidade que existia está em vias de desaparecer.
Quatro hipóteses
Tentando explicar as razões da actual tensão comunal em Goa aventura o distinto articulista quatro hipóteses: 1) receio de dominação de uma comunidade por outra, receio explorado por elementos perniciosos de fora de Goa; 2) incapacidade da parte dos goeses, habituados a um estilo de vida europeu continental, de se adaptarem ao estilo de vida indiano ou inglês; 3) obra de inimigo de fora de Goa que semeou a cizania entre os ignorantes e esta se espalhou por toda a sociedade goesa; 4) todos os três factores combinados. Cabe aos goeses, hindus e cristãos, analisar a causa, diz o Rev. Pereira, pois só então poderão cortar o mal pela raiz. Vivemos, acrescenta, numa era de ecumenismo. O Congresso Eucarístico Internacional de Bombaim provou que hindus e cristãos podiam unir-se e trabalhar juntamente pela sua prosperidade. A Exposição das Relíquias de S. Francisco Xavier também demonstrou que hindus e cristãos apreciam o que de bom existe e podem congraçar-se. Aos líderes, sobretudo, dentre hindus e cristãos compete fortalecer os laços de união entre as duas comunidades, vencendo os preconceitos infundados. Só então, diz, Goa e os goeses prosperarão. Aliás, o inimigo, o lobo sob a pele do cordeiro, se aproveitará da desunião para destruir o que de verdadeiro, bom e belo existe em Goa. Hindus e cristãos, que ouçam estas palavras do Rev. Pereira.
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