Tuesday 9 July 2013

AA Bruto da Costa - Os Costas e as Castas (1975)

Não será, de certo, deslocado que eu venha, a propósito das considerações largamente expendidas neste diário pelo Sr. Dr. Carmo Azevedo, sob a epigrafe “Castas e Classes na Sociedade Goesa”, relembrar factos e atitudes ora ignorados, quando não tenham chegado até os nossos dias desvirtuados ou intencionalmente deformados. Antes pelo contrário, quero crer que, sobre ser oportuno, isso constitui para mim uma obrigação.

Constâncio Roque da Costa, meu bisavô, um dos três primeiros deputados às Cortes, sendo outros dois o nosso patrício Bernardo Peres da Silva e o europeu António José Lima Leitão, antes de embarcar para Lisboa, na charrua “Luconia”, dirigia aos seus concidadãos uma proclamação em que, além do mais, frisava: “a vossa regeneração depende de serem decepados de raiz todos os estabelecimentos feudais, cachopos os mais temíveis contra a igualdade e contra o sagrado direitos do homem, e que deveis aspirar a serdes nivelados em tudo e por tudo aos cidadãos de Portugal.”

“Riscai da vossa memória essa odiosa distinção das castas, puritanismos e outras invenções anti-sociais, filhas do orgulho e ignorância, ficando na inteligência que são estas as fontes reais das vossas desgraças. Esforçai a manter a consideração que as Cortes vos dão, detestando os odiosos nomes de vassalos e colonos, certos de que terão elas muito a peito as vossas prosperidades, como inseparáveis do seu crédito, pois do contrario servir-lhes-á de confusão a vitória, que Portugal alcançou sobre o bruto Adamastor, vitória que faz e fará época gloriosa nos anais da história” (Quadros Históricos de Goa por J.C. Barreto Miranda – Vol. 3, p.g.91 até 92).

Não só tanto. Dados os perigos da viagem e a incerteza do regresso, deixara escrito do próprio punho o seu testamento, datado de 8 de Fevereiro de 1822, em que fazia esta recomendação: que a sua filha Leopoldina (única nascida até então entre as filhas) devia casa “com pessoa análoga à sua qualidade e a seu contento e SEM ATENÇÃO À CASTA, porque não reconheço outra que a do mérito e probidade (as maiúsculas são minhas) e reputar-se-á como ingrato qualquer dos meus herdeiros que contestar esta minha paternal disposição” (Geneaologia da Família Costa de Margão” por Joaquim Bernadino Catão da Costa, p.4)

Projecto de Lei

Comungando nas ideais do pai e plenamente integrado nelas, Bernardo Francisco da Costa, quando deputado às Cortes, apresentava ao Parlamento um projecto de lei tendente a serem riscados dos estabelecimentos píos e outras quaisquer corporações dos estados da Índia todos os artigos que dessem preeminência e exclusivo a alguma casta ou cor, por forma que só o mérito e aptidão para o desempenho fiel das restantes disposições fossem os títulos únicos a exigir dos que nessas associações pretendam entrar. E justificando o mesmo, proferia este discurso:

“Senhores: A carta constitucional, este código, que felizmente é a lei fundamental do estado, não admite entre cidadãos outra distinção que a de seus talentos e virtudes. E não limita os seus benefícios só ao continente do reino mas abriga também debaixo da sua protectora sombra os povos das mais possessões de Portugal.

Contudo nos estados da Índia há confrarias que nos seus estatutos até agora conservam a cláusula de não se aceitar para seus irmãos aqueles que não pertencem a uma determinada casta, embora tenham talentos e virtudes exemplares, manifestamente reconhecidos; e semelhante cláusula, que aí foi introduzida nos séculos da ignorância e despotismo, atravessando incólume os tempos e zombando altiva das ideias do século, ainda hoje é religiosamente cumprida, à vista da autoridade pública que tem imediata inspecção e ingerência nesses estabelecimentos.

...Infelizmente, no templo de Deus, que pregou a igualdade e proclamou a fraternidade, aí mesmo se foi entronizar distinções altamente repugnantes à razão, à lei de Cristo, e à caridade que esses institutos professam. Hasteando a bandeira da união e igualdade universal dos homens, ensinada pelo Deus que morreu por sustentá-la, erigiu-se logo ao pé um monumento a distinções absurdas e divisões repugnantes; e este suplantou aquela!

Hoje que a civilização transpõe todas as barreiras e derruba todos os obstáculos, hoje que as leis dos homens proclamam também a igualdade, é inqualificável a conservação de tais cláusulas, que subsistem apesar mesmo desses povos, que só por obrigados se submetem à maior parte dos regulamentos existentes que desejam reformados.

O absurdo e contra-senso dessas clausulas são tanto mais notáveis, quando fazem parte de instituições pias, cujo fim é a beneficência, a adoração da Divindade, e tanto mais odiosas quanto se praticam no século actual e em frente da letra do vosso código fundamental e da nossa santa religião, que proclamam a fraternidade, a igualdade e a liberadade.”

António Anastásio Bruto da Costa (outro filho de Constâncio Roque da Costa e meu avô, de quem levo o nome) combateu igualmente com vigor toda a discriminação baseada na casta ou na cor, sustentando a igualdade dos cidadãos, igualdade esta garantida pela Carta Constitucional e proclamada, cerca de dois mil anos antes, do alto do Golgotá.

Esforços Baldados

No entanto, todos os esforços empregados para extirpar as diferenças resultantes das castas foram baldados. A proposta apresentada por Bernardo da Costa às Cortes foi remetida para Goa pelo Ministro da Marinha, para sobre ela se pronunciarem as autoridades civis e eclesiásticas.

Ou porque a proposta ou informação do prelado e do governador nunca mais veio ou porque ela foi contrária por razões que não foi dado conhecer, a referida proposta, não obstante a insistência do seu autor, não foi submetida à discussão e aprovação dos Cortes.

Correm anos. Estamos em 1948. D. José da Costa Nunes, Arcebispo de Goa e Patriarca das Índias Orientais, na sua provisão de 12 de Março, informando ter recebido após a sua chegada a Goa, “várias exposições sobre questões de confrarias, privilégios de gãocares e assuntos concomitantes, coisas estas que julgávamos enterradas”, declarava ser de admitir “a constituição de corporações religiosas destinadas somente a determinados grupos sociais”, nomeadamente de brâmanes, chardós e sudras.

Ao tomar conhecimento dessa Provisão, escrevia eu em 9 de mês seguinte a S. Exa. Revma. uma carta manifestando a minha surpresa e o meu desacordo. Depois de acentuar que “tais causas não ressuscitariam e que existiam porque não foram enterradas” dizia:

“Desde os meus verdes anos, venho combatendo distinções castistas. Se elas não são de admitir, e eu não admito, na vida social, muito menos o podem ser nas confrarias, instituições de piedade e culto católico. Compreenderá, portanto, V. Exa., que ninguém mais do que eu aplaude – e com as mãos ambas – a resolução de V. Exa. não deixar “medrar o exclusivismo nas confrarias”. Com igual satisfação, registo a decisão de não consentir no predomínio de “classes fechadas” dentro da Igreja. Mesmo por isso tanto maior é a minha surpresa e mágoa ao verificar que tivesse faltado a necessária força para não contemporizar, “um pouco” que seja, com as tendências locais. É que se tenha consentido que os brâmanes, os chardós, os sudras, os farazes, etc. etc. formem, se quiserem, confrarias privativas!

“To be or not to be, dizia Hamlet. Consentir ou não consentir, eis a questão. Autorizar que se formem “confrarias privativas” sob a base de casta, não acha V. Exa. que é deixar medrar: o exclusivismo nas confrarias? Não será permitir que se salte por cima do espírito da Igreja?”

“Afinal das contas, V. Exa. se limitou a bem pouco: a franquear aos fieis em geral somente a confraria do Santíssimo e isto por os direitos e os privilégios a ela anexados pertenceram “a todos os católicos e não exclusivamente a uma casta ou grupo social”

Confrarias Privativas

O Nobre Prelado respondia-me pela volta do correio, nestes termos:

“Tem alguma razão. Deus sabe a repugância que sente ao transigir com a formação de confrarias privativas, num meio social como o de Goa. Mas alguns párocos asseguraram-me ser este o único meio de resolver a “questão confrarial”, como cá se diz.

“Parece-me, todavia, a availar pelo que chega a meu conhecimento, que esta questão não ficou resolvida. Se me convencer de que a transigência não surtiu o efeito desejado, voltarei ao rigor primitivo.”

“Mas deixe-me desfazer-lhe um certo equívoco: a condenação do exclusivismo não foi determinado por uma questão de castas, mas por haver alguns grupos sociais organizados em confrarias que chamaram exclusivamente a si certos privilégios pertencentes a todos os católicos. Daí a reacção dos excluídos, os quais pretendiam não entrar no grupo, mas conquistar os privilégios monopolizados.

“Ora, desde que se ponha termo a tal monopólio, como se pôs, não há inconvenentes de maior em permitir confrarias privativas, como em toda a parte do mundo são permitidas. Assim, há confrarias ou associações pias de médicos ou advogados, de engenheiros, de agricultores, de carpinteiros, de pescadores, de motoristas, etc.”

Em nova carta fazia significar a S. Exa. Revma. Que uma coisa era a formação de confraria na base profissional e outra na base de castas. E acrescentava: “No primeiro

(Segue na 2a. Página)

caso a diferença que se estabelece é entre duas profissões. Assim, os advogados pertencentes a diferentes castas podem agrupar-se em uma única confraria. No segundo caso, a diferença que se estabelece é entre um individuo e outro individuo, ou seja entre um brâmane, um chardó ou um sudra. Em outras palavras, quer isto dizer que um advogado sudra ou chardó não pode reunir-se numa confraria com um brâmane ou vice versa.”

Não passavam dois meses. Aproveitando a primeira oportunidade que se lhe oferecerem, o ilustre Antíste, num gesto que tanto o dignifica e exalta, reconheceu o seu engano.

Provisões Revogadas

Por circular de 7 de Junho do referido ano, retirava a autorização dada a formação de confraria exclusivistas entre membros de castas e gauncarias, revogando as suas Provisões de 15 de Agosto de 1946 e 12 de Março de 1945.

Justificando a sua nova determinação frisava:

“Só as pessoas de visão acanhada ou os orgulhosos que se julgam infalíveis, se recusam a mudar de parecer e a alterar decisões tomadas.”

“Não fica mal a ninguém modificar a sua opinião, perante os inconvenientes resultantes de medidas anteriormente estabelecidas.”

“Isto vem a propósito do compromisso duma confraria submetida há dias à minha aprovação.”

“Num dos artigos declarava se que só os brâmanes podem fazer parte da confraria. Em abono deste princípio exclusivista, citava-se a minha Circular de 15 de Agosto de 1946. Fui ler a citação. De facto, lá estava, com surpresa minha, a autorização para se fundarem associações pias acentuadamente exclusivistas.”

“Costumando ser lógico no meu pensamento, desta vez falhou a lógica, se considerarmos as inúmeras vezes que condenei o exclusivismo.”

“Sem pretender diminuir a minha incoerência, devo explicar que a permissão para formar confrarias castistas foi como que um enxerto introduzindo no meu pensamento a pedido de alguns, que julgava terminarem assim as “questões confrarias”.

Posso assim dizer afoitamente que fui um dos que levaram o Patriarca Costa Nunes a dar o golpe final no exclusivismo baseado na casta, que predominava nas nossas confrarias.”

Não vá sem ficar dito: o factor ‘casta’, felizmente, por muito tempo, não influiu na politica. Todos gauddés, sudras, brâmanes, chardós, estavam unidos. Constituíam uma força. Uma força sempre pronta a enfrentar, com coragem e dessassombro, os demandos e as prepotências do Poder.

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