Wednesday 18 May 2011

Evágrio Jorge - Bocage (1966)

Festejou-se, em 5 de Setembro do ano findo, o segundo centenário do nascimento de Bocage, grande figura da literatura portuguesa do século XVIII.

Na sua obra há de tudo: odes, canções, sonetos, apólogos. Epigramas, poesias comovidas e versos fesceninos, atribuindo-se também ao seu feitio picaresco todas as anedotas de que há memória, com sabor picante. Os seus sonetos são maravilhosas peças literárias.

O facto passou despercebido neste meio, que só há cinco anos, se libertou do jugo português. Mas o jugo politico é uma coisa e outra o intercâmbio cultural, a que todos os povos devem aspirar, para maior aproximação da humanidade e a realização do ideal de um Mundo Unido (One World).

Acresce a circuntância de Bocage ter pisado este solo, de ter estado entre nós dois anos e pico e de ter deixado anotadas observações picantes a respeito das mazelas da sociedade goesa de então.

Notas biográficas

Nascido em 1765, filho dum português e duma francesa, Manuel Maria Barbosa du Bocage cedo manifestou propensão às letras. Findo o ensino secundário, assentou praça no regimento de infantaria de Setúbal, sua cidade natal. Em Setembro de 1783 teve passagem para a armada real na classe de guarda-marinha e ingressou na Academia Real de Marinha de Lisboa.

É na capital portuguesa que começa a granjear fama como poeta, principalmente pelos seus imprevistos. A sua tendência para a sátira e o seu espírito irrequieto trazem-lhe os primeiros desgostos.

Em 14 de Abril de 1786, Bocage embarca para a Índia na nau Nossa Senhora da Vida, nomeado Guarda-Marinha para o Estado da Índia. Não se sabe porque se teria abalançado a essa viagem pelo Oriente, se pelo desejo de imitar Camões e de evocar glórias que inspiraram os Lusíadas ou se por ser um simples espírito aventureiro. O certo é que deixou o país e com ele a sua bem-amada Gertrúria:

Deixar, amado bem, teu rosto lindo

Teus afagos deixar, tua candura

Tanto me oprime, que da morte escura

Sobre mim negras sombras vem caindo.

Podemos ter alguma ideia dos seus anseios por estes versos:

... Um vivo ardor de nome, e fama

À nova região me atrae, me chama

Os mares vou talhar, cujos furores

Descreve o gran cantor...

Quer a sorte, propicia a meu desejo

Manda-me a Honra, cujas aras beijo,

Que como férvido brio

Contemple os muros da invencível Diu.

Nos climas, onde mais do que na história

Vive dos Alburquerques a memória;

Vou ver se acaso a meu destino agrada

Dar me vida feliz, ou morte honrada. 

A nau em que viajava atracou, de passagem, no Rio de Janeiro, onde o governador recebeu-o com grande afabilidade e apresentou-o à melhor sociedade. Durante as poucas semanas que lá esteve, captou simpatias, insinuou-se, prendeu corações.

Gana aos mestiços 
A 29 de Outubro, aporta a Goa – terra da Índia que captara a sua imaginação e que bem cedo lhe traria grandes desilusões. É que Bocage veio encontrar aqui uma sociedade estratificada em uma variedade de castas, não só as castas seculares da gente da terra (com quem aliás parece não ter entrado em contacto), mas a prosápia dos mestiços e dos reinóis que, mal postos os pés na Índia, tratavam de passar por fidalgos.

Em uma dúzia de sonetos que compôs sobre o assunto, Bocage fala de dificuldade insuperável de

Exterminar de Goa a senhoria 
Vou reproduzir em seguida dois sonetos deste género, dos mais virulentos (parece que o poeta tinha gana somente ao mestiço):

Das terras a pior tu és, ó Goa

Tu pareces mais ermo, que cidade;

Mas alojas em ti maior vaidade

Que Londres, que Paris, ou que Lisboa!

A chusma de teus ínculas pregoa


Que excede o grão Senhor na qualidade;

Indo quer senhoria; o próprio frade

Alega, para ter lá, a justiça da c’roa!


De timbres prenhe estás, mas ouro e prata

Em cruzes, com que dantes te benzias

Foge a teus infanções de bolsa chata


Oh que feliz e esplêndida serias

Se algum fusco Merlim, que faz bagata

Te albarcasse a pardaus as senhorias!


Lusos heróis, cadáveres cediços

Erguei-vos dentre o pó, sombras hauradas

Surgi, vinde exercer as mãos mirradas

Nestes vis, nestes cães, nestes mestiços!


Vinde salvar destes pardais castiços

As searas de arroz, por vós ganhadas;

Mas ah! Poupei-lhes as filhas delicadas

Que elas culpa não têm, têm mil feitiços;

De pavor ante vós no chão se deite

Tanto fusco rajá, tanto nababo,

E as vossas ordens trémulo respeite:


Vão para as várzeas, leve-os o Diabo:

Andem como os avós, sem mais enfeite

Que o langotim, diâmetro do rabo 


Bocage residiu em Goa vinte e oito meses. Matriculou-se, por duas vezes na Aula Real da Marinha, mas viu se forçado a interromper a frequência, de uma vezes em razão duma doença grave, ocasionada pelos excessos de beber e fumar.

Quando se restabeleceu dessa letal doença, ficou soçobrado com a notícia chamada Conspiração dos Pintos, a primeira tentativa de revolta dos goeses contra o domínio português, com o fim de expulsar os europeus e estabelecer uma república constitucional. Essa revolta devia deflagrar a 10 de Agosto de 1787, mas foi abafada a tempo devido à denúncia e defecção de alguns.

Eis como Bocage, na Epístola a Josino, descreve o perigo a que esteve exposto – ele e a sua guarnição:

Ah Josino fiel! Que horror faz guerra

Aos tristes olhos meus nestes lugares,

Onde me pôs a Sorte, onde me encerra!


Sem medo à fúria dos terríveis mares

Vim do culto, benéfico ocidente

Viver com tigres, habitar palmares.


Aqui tórrida zona abafa a gente,

Ferve o clima, arde o ar e eu o não sinto,

Que tu, fogo de Amor, és mais ardente;


Aqui vago em perpétuo labirinto

Sempre em risco de ver o maligno braço

No próprio sangue meu banhado e tinto;


Mas caso dos perigos eu não faço

E é que posso temer, quando procura

Rasgar da frágil vida o ténue laço?


Uma alma infame, um bárbaro inimigo

Da fé, das leis, do trono, um desumano

Credor de eterno, de infernal castigo


Tendo embebido seu furor insano

Na falsa gente brâmane inquieta,

Que amaldiçoa o jugo lusitano,


Contra nós apontava a mortal seta:

E já destes, oh réus de atroz maldade,

Em vis teatros o final suspiro


Eis, amigo, a recente novidade,

Que da remota Goa ao Tejo envio

Nas murchas, débeis asas da saudade.

No idílio Nereida, Bocage diz-nos que entrou em combate nas alturas de Chaúl. Seria em virtude destes serviços prestados que foi promovido a tenente de infantaria para o regimento da Praça de Damão, aonde parte a 14 de Março e chega a [missing] de Abril de 1789. Passados dois dias apenas, ausenta-se pela porta do campo, com o alferes Manuel José Dionísio, com destino a Macau.

Quais seriam os motivos dessa deserção?

Pelos modos, vários.


Decadência de Goa

Logo no princípio, vê a decadência de Goa, da sua pristina glória:

Por terra jaz o empório de Oriente

Que do rígido Afonso o ferro, o raio

Ao gran filho ganhou do gran Sabayo

Envergonhando o deus armipotente:


Caiu Goa, terror antigamente,

Do naire vão, do pérfido malaio,

De bárbaras nações!... Ah! Que desmaio

Apaga o márcio ardor da lusa gente?


Os séculos d’heróis! Dias de glória?

Varões excelsos, que apesar da morte

Viveis na tradição, viveis na história!


Albuquerque terrível, Castro forte,

Meneses, e outros mil, vossa memória

Vinga as injúras, que nos faz a sorte. 

Não teria achado em Goa a Índia dos seus sonhos, de um lado uma terra assimilada, aportuguesada, cristã, com uma sociedade homogénea como a de Portugal, e de outro, bárbaro pais, bárbaras gentes com quem dissera iria trocar do Tejo a margem deleitosa.

A sua posição subalterna de simples Guarda-Madrinha tê-lo-ia conservado longe da sociedade rigidamente hierarquizada do tempo – brâmanes, chardós, mestiços e reinóis. É como, a cada passo, fustiga:

Tens várias casas, armazéns de ratos,

Tens febres, mordexins em demasia,

De que escapamos a poder de tratos:


Mas a tua pior epidemia,

O mal, quem em todos dá, que produz flatos,

É a vã, a negregada senhora. 

Essa torrente de versos mordazes sobre os habitantes de Goa tornaram-no odiado por quase todos. E as suas setas não pouparam ninguém. O próprio Governador, D. Frederico Guilherme de Sousa foi ferido no poema erótico A Mantegui. A referência era a uma senhora de Damão, filha de francês e de mestiça, D. Ana Jacques Mondotegui, apelido este que Bocage por eufonia transformou em Montegui. Bem prendada, gentil e bela, esta senhora possuía admiradores e apaixonados. Entre eles contavam-se o Governador e o poeta Bocage, que lhe dedicou alguns versos.

Exaltado e impaciente, faltava-lhe preparação e pachorra para estudar a fundo a religião, a cultura, os usos e costumes do povo indiano. Daí versos como estes da citada Epistola a Josino:

Enche-me, sim, de horror o culto impuro

Ídolos vãos, sacrílegos altares,

Vis ceremónias deste povo escuro.


Eterno Deus! Não longe de teus lares

Tépida nuvem de maldito incenso,

Dado ao negro Satã, perturba os ares


Que intolerância tens, monarca imenso!

Por mais crimes, senhor, que o mundo faça,

Tudo releva teu amor intenso


Deus, ah desce dos céus, potente graça

Difunde a santa luz, a santa crença

Pelos cegos mortais, que o erro enlaça! 



O nosso clima quente, trazendo no seu encalço várias doenças, como febres e mordexins, tê-lo-ia aborrecido até ao extremo, sobretudo depois da grave enfermidade de que dá assim conta ao seu Josino:


Volto, Josino, a ti, letal doença,

Do báratro surgiu, veio intimar-me

A antiga, universal, cruel sentença:


Negras fauces abriu para tragar-me,

Porém cedeu, rugindo, à voz divina

Quem a vida, a meu pesar, quis conservar-se. 



A sua amada 
A nostalgia teria também asfixiado a sua alma de romântico. Na sua debandada à Índia, teria talvez intervindo o cálculo de melhorar a sua sorte e desposar Gertrúria, sua primeira paixão. Na epístola que lhe dirigiu declarou com franqueza:

Vim, só por me fazer de ti mais digno,

A climas, do meu clima tão remotos. 


No soneto que lhe dedica ao partir para a Índia declara:

Com todo o seu poder não pode a sorte

Tua imagem riscar desta alma aflita!

Mas cedo entra a desconfiança no seu espírito atribulado:

O Terra! Oh Céu! Mentiram-me os brilhantes

Olhos seus, onde achei suave abrigo;

Quão fáceis de enganar são os amantes! 


Num outro soneto é ainda mais claro:

Inda em meu frágil coração fumega

A cinza desse fogo em que ele ardia;

A memoria da tua aleivosia

Meu sossego inda aqui dessassossega. 



No seu coração arde a chama da Dúvida e do Ciúme:


Vê-se arder, fumegar sulfúreo lume

Que estrondo! Que pavor! Que abismo infando

Mortais, não é o inferno, é o Ciúme!

Mas eis aqui um sonho puro:

Sonhei que nos meus braços inclinado

Teu rosto encantador, Gertrúria, via;

Que mil ávidos beijos me sofria

Teu níveo colo, para os mais sagrado.


Sonhei que era feliz por ser ousado

Que o sizo, a força, a voz, a cor perdia

Num êxtase suave, em que bebia

O néctar nem por Jove inda lidado:


Mas no mais doce, no melhor momento,

Exalando um suspiro de ternura

Acorda, acho-te só no pensamento:


Oh destino cruel! Oh sorte escura!

Que nem me dure um vão contentamento!

Que nem me dure em sonhos a ventura! 



E logo outra vez a dúvida:


Receio que, por minha adversidade,

Novo amante sagaz e lisonjeiro

Macule de teus votos a lealdade:


Ah! Crê, bela Gertrúria, que o primeiro

Dia, em que eu chore a tua variedade,

Será da minha vida o derradeiro


Eu deliro, Gertrúria, eu desespero

No inferno de suspeitas e temores.

Eu da morte as angústias e os horrores

Por mil vezes sem morrer tolero;


Pelo céu, por teus olhos te assevero

Que ferve esta alma em cândidos amores;

Longe o prazer de ilícitos favores!

Quero o teu coração, mais nada quero.


Ah! Não sejas também qual é comigo

A cega divindade, a sorte dura,

A vária deusa, que me nega abrigo!


Tudo perdi; mas valha-me a ternura.

Amor me valha, e pague-me contigo

“Os roubos, que me fez a má ventura” 


Quem era essa Gertrúria? Gertrúria é alteração de Gertrudes, primeiro nome de D. Gertrudes Homem de Noronha Eça, filha do coronel de infantaria João Homem da Cunha de Eça, Governador da Torre do Outão, em Setúbal.

Teria Gertrúria permanecido fiel ao poeta, que a colocara firme no nicho do seu coração desde os primeiros momentos em que lá entrou, durante a sua viagem à Índia e à China e até o seu regresso à pátria?

Antes de responder a esta pergunta crucial, ouçamos mais um soneto pungente de Bocage:

Do Mandovi na margem reclinado

Chorei debalde minha negra sina,

Quel o mísero vate de Corina

Nas tomitanas praias desterrado:


Mais duro fez ali meu duro fado

Da vil calúnia a língua viperina;

Até que nos mares da longínqua China

Fui por bravos tufões arremessado:


Atassalhou-me a serpe, que devora

Tantos mil, perseguiu-me o grã gigante

Que no terrível promontório mora;


Por bárbaros sertões, gemi vagante;

Falta-me inda o pior, falta-me agora

Ver Gertrúria nos braços doutro amante! 


E assim aconteceu. Quando em 1790 regressou de Macau a Portugal, com grande vontade de abraçar os parentes e os amigos e, acima de tudo, tornar a ver a sua Gertrúria, fica ferido por um golpe fundo ao saber que Gertrúria o trocara pelo irmão Gil, formado em leis em Coimbra, e que o seu próprio pai acariciara este enlace!

Esta tripla traição desnorteia-o por completo. Vagueia ao acaso, dorme nas celas dos conventos ou em quartos dos amigos. Outras amantes vão entrando no seu coração: Marília, Armia, Anália, Márcia, sei lá! Torna-se a alma de Lisboa, conquista um auditório que o ouve com simpatia e arroubos, publica o primeiro volume das suas Rimas, é convidado a fazer parte da Academia das Belas Letras ou Nova Arcádia.

A par de admiradores cria também adversários graças aos seus versos satíricos. Estes aproveitam das ideias novas de liberdade que sopravam da França e de que o poeta era franco partidário, para o encarcerar. A epístola Parvorosa Ilusão da Eternidade serviu-lhes de pretexto. Passou-se isto a 10 de Agosto de 1797.

Os anos de prisão fizeram-lhe bem. Acalmaram um pouco a excitação nervosa, o génio impetuoso, e proporcionaram-lhe tempo para lidar com livros valiosos e doutos trades (sic). Depois de sair do cárcere, foi tratar da sua irmã Maria Francisca, desamparada dos seus, tornando-se um verdadeiro chefe de família.

E a 21 de Dezembro de 1805, pelas 10 horas e um quarto da manha fechava os olhos à existência este poeta assombroso que tomara o grande Camões como modelo:

Camões, grande Camões, quão semelhante

Acho teu fado ao meu, quando os cotejo!

Igual causa nos fez, perdendo o Tejo,

Arrostar c’o sacrilégio gigante:


Como tu, junto ao Ganges sussurante,

Da penúria cruel no horror me vejo;

Como tu, gostos vãos, que em vão desejo

Também carpindo estou, saudoso amante:


Ludíbrio, como tu, da sorte dura,

Meu fim demando ao céu pela certeza

De que só terei paz na sepultura:


Modelo meu tu és... Mas, oh tristeza!

Se te imito nos transes da ventura,

Não te imito nos dons da natureza. 



É desta envergadura o poeta português, a que presto hoje a minha homenagem.

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