Tuesday, 17 July 2012

Laxmanrao Sardessai - Sempre Alegres (1965)

Vão sempre juntos e alegres,
Quer na estrada quando passam
Quer no monte onde trabalham.
Sempre os vejo juntos e alegres
Mas que diferença entre os dois:
Ele é claro e forte, vivo e ousado,
Ela é escura, olhos sumidos,
Peito raso e raquítica.
Mas ambos sempre vão juntos
E sempre alegres!

Xavierito Coelho - A Morte da Anoneira (1970)


Na traseira da Capela,
Estava a linda anoneira,
Com sua viçosa umbela,
Sempre farta e fruteira.

Dava, pois, abundante fruto,
Sem proveito ao proprietário
Livre era esse seu produto
Para todo o mandatário.

Assim foi ela crescendo
Dando-se em linda árvore,
Da terra a seiva bebendo,
Fez-se coluna de mármore.

Dava sempre muito fruto,
Volumoso, saboroso,
Da anoneira o bom produto
Fascinava o cobiçoso.

A árvore tinha seu Senhor,
Bom, manso, despretencioso,
De bens vivendo ao promor,
Satisfeito, orgulhoso.

Não rendava ele a anoneira,
Nem recolhia o seu fruto,
Perdia desta maneira
O valor do seu produto.

Fez nascer ao ambicioso
O sexto sentido seu,
De galdir, o delicioso
Bem, cobrindo-o de negro véu.

Desta maneira, a anoneira,
Foi pertencer ao terceiro,
Da Capela na traseira,
P’las artes do trapaceiro.

Com isto ninguém se importou
Desta sorte, ela, a anoneira,
Forçada, a outro dono entrou,
P’la sua torpe maneira.

A anoneira resentiu
De se mudar de dono,
E fadário seu cumpriu,
E morreu dentro de um ano.

Parece, enfim, triste sonho,
O fim da roble anoneira,
Acabrunhado, medonho,
Morreu a bela fruteira!

Partiu na boca a castanha
De quem a árvore ia galdir.
O que é igual à façanha
Do alheio na rua faz despir.

Mário da Silva Coelho - “Constantemente” (1960)

Se eu olho para ti constantemente
Não é por meu querer, oh! crê que não,
Meus olhos como duas gralhas são
Cansadas de voar ao sol ardente.

Querias que pusesse em toda a gente,
Sobre o mar, nas palmeiras, na amplidão,
Os olhos que me guia o coração
A bater, a bater por ti somente!

Um doce encanto os leva docemente...
Nunca meus olhos corem tua face,
Poema ou ária e escultura bela.

Meus olhos dum olhar tão inocente.
Eu olho para ti como se olhasse,
Para uma flor ou para uma estrela.

Monday, 16 July 2012

Laxmanrao Sardessai - Sou Querido de Todos (1966)


Sou querido de todos,
Porque quero a todos
Como pais, filho ou irmãos,
Vejo neles correr
A mesma seiva,
Tomar a matéria,
As mesmas formas,
Brilhar o mesmo espírito divino,
E tudo isto me funde neles.
Perdi, há tanto, interesses mundano
Que dividem e separam,
Tenho apenas o interesse
Que a Terra e o Sol nutrem,
Pela Terra que gira, incessante,
Pelo seu amor!

Élio Filho - Moniz Barreto por Manuel de Seabra (1972)

Manuel de Seabra, escritor português de hoje e que se empenha em desvendar os valores da literatura goesa, quer aqueles que estão cobertos pela poeita dos tempos, quer os outros a quem, por circunstâncias várias não é fácil vir à luz, acaba de nos remeter uma colectânea sua das obras de Moniz Barreto.

Moniz Barreto, escritor goês, mais conhecido em Portugal que na sua própria terra, foi autor da “Literatura Portuguesa Contemporânea” e outros trabalhos dispersos em revistas, além de um livro sobre Oliveira Martins. Mesmo em Portugal, tendo-se colocado no futuro em relação ao presente em que vivia, só mais tarde, passada a embriaguez das correntes literárias dominantes, é que o seu nome se notabilizou e a sua obra, curta embora, foi avaliada por todos.

Não é de grande importância decidir se Moniz Barreto tinha nas veias sangue indiano, português puro ou híbrido. É um questão discutida e discutível, como o próprio Seabra a põe, deixando na contenda Vitorino Nemésio, Pereira de Lima e mais outros. A discussão continua. Este problema do sangue é coisa convencional e atómica, digamos, e o que interessa é a atitude subjectiva. Moniz Barreto passa por ser goês nado e adolescido em Goa. E, por regra geral, não devia enjeitar a terra do berço. Excepção a esta regra não a conhecemos.

Como quer que seja, Moniz Barreto fica fora de qualquer escola ou tendência de época para ser o criador da critica literária em Portugal, o que não é pouco para quem morre com 31 anos apenas. Antes pelo contrario. Para quem conheça o movimento cultural português do século passado e os seus autores que, por um egotismo pátrio ignoravam a literatura e as correntes filosóficas estrangeiras, Moniz Barreto avulta pela sua integração na corrente universal do pensamento, de uma forma notável. Aliás, são os próprios portugueses que de já muito o dizem, seja pela pena de Vitorino Nemésio no seu livro profundo sobre Moniz Barreto, referido por Seabra, seja pelo trabalho bem vincado do próprio Seabra que tem pela graça a obra indiana predilecção como é de todos sabido.

Mas o elogio mais decisivo que se lhe podia fazer, parte de Silva Gaio que escrever que ‘desde Antero de Quental nenhum dos nossos escritores apareceu ainda como Moniz Barreto... armado como ele da fecunda e completa educação crítica indispensável a quem queira ver, compreender e fixar qualquer obra ou série de obras dignas de exame”.

Estas palavras de Silva Gaio não têm significado dúbio. Não são cumprimento amável de escritor que não quer ferir a susceptibilidade e amor próprio de outro escritor. São claras como água e não como as do exigente Antero que lhe escreveu a dizer que o livro sobre Oliveira Martins era ‘perfeito: ideias, ordem, estilo, tudo está como dever ser’ o que não é cortesia também, parece-nos. Quem ler os trechos da colectânea de Seabra verá que Silva Gaio tinha razão. E com ele, o internacional Eça que recolheu o espólio literário de Moniz Barreto. Ora o sarcástico Eça não era homem para brincadeiras.

Para pano de amostra da opinião critica de Moniz Barreto temos o caso de Castilho.

Castilho foi no seu tempo considerado um mito, um gigante das letras, superior porventura a Herculano. O parecer geral agora é que Castilho não passa de escritor de segunda categoria. Foi Moniz Barreto – duvidamos se alguém mais também – que mesmo em vida do poeta o exautorou, marcando-lhe o lugar devido. “Nem uma sensibilidade enérgica, nem uma imaginação criadora nem o dom da compreensão racional se manifestam nas suas obras”.

Até aqui são escritos. Os factos narram que Moniz Barreto “muito novo convive com os grandes escritores da época, Oliveira Martins, Antero, Eça, Gomes Leal,” o que representa um efeito valioso de uma boa causa. Quem se atrevia a aproximar-se desse grupo de energúmenos que, com uma gargalhada faziam ruir uma instituição? Até o grande Fialho tinha medo...

O livro feito por Manuel de Seabra merece louvores pois, fazendo reviver um valor real de Goa, prestou um serviço à terra além de, com a justeza da sua selecção e prefácio brilhante mostrar, mais uma vez, que ele próprio é escritor com nome feito.

Judit Beatriz de Souza - Gota de Água (1953)

A soluçar, as fontes em segredo
Vão-me contando as máguas que passaram.
São penas de paixão que muito a medo
As fontes só a mim me revelaram.

Nunca tiveram dia de folguedo,
Nunca a libertação com que sonharam!
E o sonho converteu-se no degredo
Em nostalgia que elas suportaram...

Eu escutava as pobres que sentiram
Um grande alívio assim e me pediram
Lhes compreendesse toda a mágua..

Mas fiz-lhe ver o bem que elas faziam
Aos peregrinos que ávidos sorviam
Nesta Romagem uma gota de água!...

RV Pandit - A Lua (1963)

Lua,
Teu brilho suave
Torna doido o meu Animo,
Mas o teu amor
Inconstante?

Lua cheia
Um encanto!
Mas dias depois…
Um touro bravo
Com chifres em riste…

Lua,
Tu és bela e boa
Em tudo,
Menos uma coisa...

Na inconstância
Do teu amor.

Orlando Alberto - Calor (1970)

Na morna quietação da tarde
O corpo goteja suarento
O céu está azul
E as nuvens
Demasiado brancas.
O vento descansa nas ramagens
Mas de quando em vez
Passa rasteiro,
Levantado pó.
Só o sol dardeja clarões
Numa gíria incompreensível
Numa ânsia galhofeira de brincar
E os verdes do mato
Mais verdes se tornam
E os troncos das árvores
Rugosos, disformes,
O suor
Escorre em bica
Como chuva nas goteiras
E a incoerência dos meus versos
Com o calor do dia
Transforma-se
Eu, que sou o que sinto
Na lama vermelha
E encarquilhada
Das valetas.

Monday, 9 July 2012

Amadeu Prazeres da Costa - Apreciação Literária de Paulino Dias (1965)

Quem entre os jovens de hoje lembra-se do nome de Paulino Dias? Quantos homens da minha geração leram as suas obras? Quantos homens do seu tempo vivem ainda, homens que com ele conviveram, que o conheceram de perto, que sentiram o influxo da sua personalidade?

O Dr. Paulo Dias, que muito cedo foi arrebatado pela morte, tinha várias facetas por onde entrar para a história. Era professor da Escola Normal e havia sido nomeado professor do Liceu, meses antes da sua morte. Como professor, dizem as crónicas do tempo do seu falecimento, não era mero burocrata que cumpria escrupulosamente o programa de ensino e os deveres funcionais. Era um apóstolo e, nas palavras de Roque Correia Afonso, pontificou na educação como professor erudito e como prelector sugestionante diante de um auditório empolgado pela sua palavra ardente e sincera. Era, ainda nas palavras de Correia Afonso, um cultor da Ciência aplicada à produção industrial de drogas e dietas indígenas, tão apreciáveis como as importadas. E, por fim, “um apaixonado da Arte”, seja nos domínios da Pintura idealista, seja nas regiões etéreas da Música, seja finalmente na alta esfera da Poesia. Eis como o presidente do 3o Congresso Provincial, de que o Dr. Paulino Dias era um dos fundadores, o descreveu ao prestar homenagem à sua memória no discurso de inauguração da sessão.

Mas é sobretudo como Poeta que o Dr. Paulino Dias se revela em toda a pujança do seu talento. E é nessa sua qualidade, como poeta, que eu perguntava quantos dos jovens e dos homens da minha geração se lembravam dos seu nome.

Aliás, o próprio poeta, que personificava o homem despreendido da glória e fama, pressentia isso:

Mas alguma dia uma alma abandonada,
Discrente como eu de glória e de renome,
Se recordar de mim pela noite abalada,
Eu a hei-de escutar numa cova olvidade,
Quando pronunciar lentamente o meu nome.


Assim cantou Paulino Dias com esse pessimismo suave e não agressivo e com essa descrença que perpassa pela sua obra: esta atitude mental, que é a nota dominante da sua poesia, contrasta singularmente com as suas outras actividades. Paulino Dias, dizem-nos, era um chefe de família exemplar. Para mais, era dotado de iniciativas que requerem uma forte dose de optimismo. Promover a formação do Congresso Provincial e fabricar produtos industriais num meio como o nosso, nas condições então existentes, requer certo grau de idealismo poético, mas um idealismo iluminado pelo optimismo. Daí o pessimismo e a descrença que Paulino Dias revela na sua obra poética, não são um pessimismo orgânico, da índole própria do autor, mas antes o cunho estético da escola em que se filia a sua obra.

Com o pseudónimo de Priti Das, Paulino Dias publicou várias poesias dispersas nas revistas e jornais do seu tempo. São poesias do período formativo, sonhos de mocidade, nas quais – em uma e outra que cheguei a ler – pelo tema e pela forma já se adivinha por onde se vai encaminhando o seu espírito, a sua imaginação e seu conteúdo emotivo.

Vêm depois trabalhos de maior fôlego. A Lira da Ciência, a Deusa de Bronze e Vishnulal. E aqui teria terminado para os pósteros a sua obra, se uma comissão dos seus coaldeanos não tivesse dado à publicidade os manuscritos inéditos, coligidos com título de No Pais de Súria, título que o próprio poeta teria escolhidos para esses poemetos.

A Lira da Ciência é, por assim dizer, a profissão da sua fé, a sua matrícula na escola literária que, com o nome da Escola Realista, abrira na Europa novos e vastos horizontes. Para dispensar uma dissertação longa e tediosa que aliás julgo descabida aqui – sobre o que seja essa Escola Realista, apenas vou ler um trecho de Guerra Junqueiro, a quem o nosso poeta tomou como modelo.

Para provar que a poesia moderna deve ter um carácter científico, escreve Guerra Junqueiro que a poesia é a verdade transformada em sentimento. A lei descoberta por Newton, diz o vate, tanto pode ser explicada num livro de Física como num livro de versos. O sábio analisa-a, demonstra-a, e o poeta, partindo dessa demonstração, tira de facto todas as consequências morais, sociais e religiosas, traduzindo-as numa forma sentimental. A ciência, neste caso, dá o convencimento, a certeza; a poesia dá a emoção, o entusiasmo.

E mais adiante diz Junqueiro: “O poeta tem pois, obrigação de ser um homem do seu tempo”.

Ouçamos agora estes versos da Lira da Ciência de Paulino Dias. O poeta saúda os abertos horizontes:

Donde pode surgir e iluminar as fontes
Uma estética nova, imensa, incorruptível.
A forma é que o abismo, o obstáculo terrível.
A nossa é a infância da Arte, a treva da rotina;
Quando a forma ideal, robusta, masculina,
Romper com um vulcão do sal da inteligência
E que pode triunfar a Lira da Ciência.


E Paulino Dias impõe a si própria esta rota em seguida, dizendo:

Eis o ideal de futuro, ó cismador indiano!
Sê tu um dos heróis dessa coorte d’aço.


Comparemos estes versos de Paulino Dias com estes outros de Guerra Junqueiro, do fragmento de Prometeu Libertado:

A Ciência vê na frente um monte alcantilado:
Tem pressa, quer andar; fura-se de lado a lado.
Sobre aonde não sobe a asa dos cantores.
E onde os raios não vão, vão os mergulhadores.
Com fio de cobre ela reúne um mundo
A outro mundo; e enquanto o velho mar profundo,
Assombroso leão, ruge, estoira, rebenta
Debaixo do azorrague da hercúlea tormenta
Enquanto o vendaval revolve os sorvedouros
A as roucas ondas vãs, como um tropel de touros
Desgrenhados titãs fugindo a um cataclismo,
Na funda escuridão, bem no fundo de abismo,
Por entre as vagalhões e a glance olhar ardente
Dos monstros, vão passando irresistivelmente,
Vitorioso, na treva, o pensamento humano.


Como disse, Paulino Dias, como poeta, abre a sua matrícula na Escola Realista. Adapta a forma, a escola e “estese” dos homens de letras que, no século dezanove, operaram uma profunda revolução na literatura da Europa. Mas, como temos visto com esta comparação dos versos, ficaria reduzido a um aluno balbuciante se tivesse parado por aqui. A amplidão, a sonoridade, a vibração emotiva dos alexandrinos de Junqueiro reduzem a um pálido eco os versos de Paulino Dias.

Mas Paulino Dias, adoptando os moldes da nova estética europeia, volta-se para a Índia e encontra na sua rica a variada história e vida os temas para nesses moldes vazar os seus poemas. Índia, Nirvana, os Parias, poemetos dramáticos de maior fôlego e os outros poemas menores que constituem o Pais de Súria e a Índia toda com os seus heróis, os seus deuses, as suas crenças, os seus costumes, os seus esplendores e as suas misérias, interpretada, sentida, descrita segundo os cânones da escola literária ocidental do seu tempo.

Dois poetas, Paulino Dias e Nascimento Mendonça, fizeram isso. Ambos tiveram a infelicidade de ser arrebatados pela morte, antes de alcançarem a maturidade da sua obra, ambos deixando manuscritos inéditos que não chegaram a limar, a corrigir, a aperfeiçoar.

Nos poemas de Paulino Dias, publicados depois da sua morte, vê-se nitidamente essa lacuna de última demão que o poeta daria para dar maior flexibilidade ao verso e talvez refundindo trechos inteiros para lhes tirar a rigidez. Mas ainda assim como vieram à luz constituem esses poemas, ao lado dos de Nascimento Mendonça, talvez únicos exemplares na literatura indiana.

Compreendamos bem o que eu quero dizer com isso. Haverá talvez muitos livros de Arte em prosa e em poesia dos autores europeus ou ainda indianos tendo por temas assuntos indianos. Porém, neles a Índia é vista ficando fora dela e o tema passa a ser simples roupagem, uma casa externa confundindo-se com as descrições de paisagens e factos, permanecendo alheio à Índia no conteúdo emotivo. Na poesia de Paulino Dias é a própria Índia que paira.

E ao ver essa Índia assombrosa, multifacetada, carregando nos ombros o peso dos séculos de grandes realizações do espírito e da tragédia das superstições e de preconceitos, de crueldades e fatalismo resignados, Paulino dias, movendo-se dentro dos cânones da poesia realista, procura para os seus temas o que desagrada os oprimidos, os espoliados, os desprezados e as vítimas das disparidades económicas, os deserdados da fazenda que na sociedade europeia que proporcionaram o temário à literatura realista, mas sim os espoliados e deserdadas pelos preconceitos seculares de cartas.

E uma íntima revolta contra essa injustiça vibra nas suas palavras:

É-me selvagem, sei, a consciência da Bela
Mas que importa a pedrada e os botes escarninhos!
A liberdade vai da pena ao camartelo;
Se é livre a águia, o espaço e a torre de castelo
Que seja livre o verme, a poeira dos caminhos.


Paulino Dias vê uma coorte de deuses e deusas, dotados de paixões humanas, que nas mãos interessadas se tornaram instrumentos da resignação dos deserdados. E ele se torna descrente dos deuses:

Vai Indra, mau, às vinganças
O seu braço é longo e forte
Entre heróis, búzios e lanças
Guiando imensa coorte.
Triste vai Indra às vinganças que delira só na morte.


Canta um coro em um dos seus poemas e pergunta:

Quem é o deus supremo e justa?
Naraina, Naraina?


E o Naraina responde:

Diaus, Indra, Mitra, Ormuzd, Zeus, Tis e Ouranos
Mundos, glórias e sons, pensamentos humanos,
O que sobre, o que desce, o que morre e palpita
É o pó que rola aos pés da Verdade infinita.


E essa Verdade infinita são para ele as forças da Natureza que a Ciência revela. Paulino põe na boca de Durvassa, um dos personagens do seu poema, esta apóstrofe contra Indraa:

Tu eras o Deus da chuva e a tempestade amarga,
Um nababo com o raio! Ó Indra, figura oca,
Que adorava a cantar toda a Ariavarta louca,
Pondo a carne de bois e a sura nos altares!
E não és tu que pões a chuva sobre os ares,
Nem deitas o trovão com ecos sobre os montes
Não és tu o senhor dos longos horizontes
Tu não fizeste nunca o vento, o fogo, a aurora
É a Natureza, a mãe, a única criadora!


Mas no meio dessa revolta sucedem-se os desalentos. E uma grande tristeza, uma grande dor, um amargo pessimismo apodera-se da alma do poeta ao ver a sorte dos Párias.

Sublá Mar, o faraz de Berar, um dos personagens deste seu poema dramático em prosa e verso exclama acabrundado:

“Ó gentes, porque é que nós somos corridos da face do Suriavarta?
Quanto fizemos nós? Somos os únicos ladrões, assassinos
E mendigos no mundo? E a nossa pele tão suja?
Não a pode lavar toda a água do Ganga de Sarasvati?
Porquê não nos matam os Árias, reunidos no
Alto dos montes? Sabem como se purificam os que
Nos tocam por acaso?”


“Como é isso, é Sublá”, perguntam os párias, e Sublá Mar, ou seja o poeta, responde com escarninha amargura:

“Atirando água de bosta sobre o corpo, ou dando uma miserável moeda de cobre ao botta”

E o poeta apesar de todo o seu pessimismo, vê ainda a redenção:

Escutai-me eremitas, é tempo de apagar as crenças infinitas
Sonhos e criações das polidas idades,
Outras forças se impõem às severas verdades.
Essas, forças diz o poeta, são as forças da Natureza que

A Ciência explica, pondo nas mãos dos homens os meios para as desviar para o seu progresso.

Paulino Dias via na Ciência – não só por pertencer à escola realista em que literariamente se formou – o caminho da redenção da Índia, da solução dos inúmeros conflitos que, no seio da sua sociedade, foram suscitados pelos séculos de preconceitos. Na arte de Paulino Dias – nos seus versos, por vezes provocadores e ríspidos como rajadas de vento – é retratada a Índia integral: a sua paisagem assombrosa, desde as cordilheiras gigantescas até os bosques impenetráveis, os palmares, os bambuais, os arecais, os perfumes estonteantes das suas flores; os templos ecoam os gongos e dançam as bailadeiras; as ranis enfeitadas de jóias, guisos nos pés e manilhas nos pulsos; os deuses que descem da Svarga e heróis que combatem nos campos. Mas tudo isso é pano de fundo, é o cenário, para o tema central de toda a sua obra, que é a conquista da Índia pelos arianos e subjugação do drávida donde derivam todos os conflitos sociais.

Como disse, Paulino Dias morreu antes de ter podido aperfeiçoar o que escrevera e deixara inédito e de completar a sua obra e pensamento. Existe nessa obra verdadeira poesia. Nos poemas que nos deixou pode haver lacunas, mas é impossível ler qualquer desses poemas sem se sentir empolgado pela emoção. É que nas suas poesias há aquela profunda veracidade intrínseca pela qual se impõe ao nosso espírito. A superioridade literária manifesta-se nelas como simples consequência natural e lógica da verdade revolucionária do sentimento. Ainda considerado literariamente, e no campo restrito do valor estético, um homem que se manifesta pela palavra escrita tem muito mais mérito do que um simples autor. Paulino era assim: era dos que faziam da consciência pena, da verdade tinta, com pensamentos que respiram e palavras que queimam:

“Mas se, algum dia, uma alma abandonada, descrente como eu de glória e de renome, se recordar de mim pela noite abalada eu hei-de escutar numa cova pronunciar lentamente meu nome”

Laxmanrao Sardessai - O Poeta (1966)

Sou um pobrezinho
Mas trago em mim sepultado
O tumultuoso passado da humanidade.
E o futuro brilhante
Na minha visão se agasalha.
Em mim ecoa o presente
Com as suas palpitações vivas.
Eu enterro na terra as ideias
E surgem delas as maravilhas
Que procuram aperfeiçoar
A criação imperfeita.
Se Deus criou o Universo,
Eu crio nele a Beleza
Que nunca morre
E a Fé que cimenta
E o torna vivo.
Se Deus criou o Universo,
Deu-me a mim o condão
De o modelar, segundo os meus sonhos.
Vastos desertos inóspitos e horrendos
Em os transformo em oásis.
Eu até o Inferno torno Paraíso
Quando o sopro da minha imaginação
O bafeja.
O esqueleto duma árvore,
Seca e desfolhada,
Reveste-se de graça infinita
E brilha na luz áurea
Do meu estro.
Eu inundo de raios sedutores
O velho esfarrapado e nojento
Que o mundo aborrece
E transformo a sua choça
Em um palácio sorridente.
Às vezes, a morte
Que aos entes humanos
Inspira terror,
Eu a torno sedutora.
Então o mártir a abraça
Com amor.
E pela opulência do milionário
Eu crio nojo
E da humanidade calcada
Eu levanto santos
Que a erguem para alturas etéreas!
Só e inerme, eu pelejo com o tirano
Que, à força das armas,
Procura subjugar os bons.
Sou o esteio dos fracos
E a riqueza dos pobres.
Sou um poeta indigente
A cantar sempre a glória do Bem.