Friday, 28 September 2012

Floriano Barreto - Velha Goa (1968)

Rainha do Mandovi, ó empório gigantesco
Que assombraste as nações com o teu esplendor,
Um manto d’amargura envolve a tua fronte,
Já não resplandece a luz no teu vasto horizonte
Senão para mostrar-te uns despojos de dor.
Sumiu-se para sempre a tua glória passada
E a fama universal do teu nome temido.

O Escritor Goês Orlando da Costa (1975)

Este escritor apresentou ao I Congresso dos Escritores Portugueses a seguinte comunicação intitulada “Reflexões sobre a liberdade de criação, condicionamentos e liberdades concretas”:

1) Ao abordar o tema proposto “Criação literária, sua especifidade ou Instrumentalidade” apontaria desde já uma pequena mas significante correcção. “Criação literária, sua Especificidade e/ou Instrumentalidade”.

Esta correcção assenta no facto de a alternativa criar uma falsa proposta de problema e por isso – mesmo admitindo-se à discussão a situação de alternativa – não se pode admitir a formula copulativa. Se a especificidade da criação literária pertence ao domínio da própria definição e expressão da criatividade do escritor, a sua instrumentalidade é uma característica, um valor, decorrente dela.

Assim, penso que abordar o problema da especificidade da criação literária é ter que chegar, necessariamente aos domínios da sua instrumentalidade, considerando que a actividade criadora do escritor envolve dois sujeitos e dois tempos necessários do conhecimento e da transmissão: o eu e o outro e, o a seguir, o necessário e o urgente.

2) A criação literária, no âmbito da sua originalidade, é um acto privado, não deixando de ser um facto social.

Um acto privado depende da consciência de um homem – neste caso do escritor – e esta consciência, por sua vez, depende de uma vida real, da sua quotidiana.

Ora, a vida quotidiana traduz uma “condição” subjacente: condição humana, condição social, não obstante factores específicos temperamentais de índole e carácter que são, sem dúvida, intervenientes na criação e porventura dos muito importantes e que dão o “tonus” aquilo a que poderíamos chamar correctamente a “individualidade da criação na liberdade de criação”.

Todos têm a sua “condição”. Os escritores também. A sua criação literária depende da consciência privada – dos seus limites – e da sua “condição” – contexto básico em que interferem factores mutáveis sócio-económicos e políticos. Na antinomia entre estas duas realidades, definem-se, efectivamente, as fronteiras mais ou menos estáveis do campo onde, com maior ou menor exercício de liberdade, se exprime a capacidade criadora do escritor, como homem “situado” que é.

E aqui convém frisar que esta capacidade do escritor e o seu conhecimento das necessidades apontadas pela sua “condição” são, além de tudo o mais, dentro do âmbito das condições de criação literária, responsáveis pela conquista incessante da liberdade – a liberdade daquilo que escreve e como escreve, das opções temáticas e dos modos de comunicação.

A especificidade da criação literária radica-se nessa liberdade de opções e capacidades individuais e, ao exprimir-se, essa criação passa de um nível de acto de responsabilidade privada a um nível de facto de responsabilidade social, tanto quanto provoca uma participação do público com que comunica.

3 – Mas a liberdade que a criação literária reclama e que um escritor a todo o momento tem de conquistar como é que é assumida? Isoladamente? Individualmente? Isoladamente, não. Individualmente, som, mas não apenas, porquanto a sua perspectiva – com todo o respeito pela sinceridade, coragem e coerência do escritor consigo próprio – está comprometida no exercício de uma liberdade que, quer queira ou não, o ultrapassa como sujeito individual. A liberdade de criação não é mais do que a consciência e conhecimento da própria necessidade de criar e comunicar, que, por sua vez, ao transformar-se em actividade, participa de um conjunto social.

E a necessidade de criar contém em si gérmenes combináveis de observação e da participação. Quando reflectimos e imaginamos não estaremos já a ser mais participantes do que apenas espectadores? Sem dúvida. Um escritor é, por natureza, um “espectador observador”. A sua capacidade criadora. Porém (de descobridor, de recriador – que é afinal toda a sua possibilidade inventiva de perspectivar a realidade), acaba por se revelar um instrumento mais ou menos activo na transformação do conhecimento do real humano.

Entenda se por real humano o mundo interior que todos temos e carregamos ao longo dos dias e dos anos e o mundo exterior, que aquele reflecte, e em que inseridos, marginalizados ou não, mas sempre “situados”, nós atravessamos ao longo dos mesmos dias e dos mesmos anos.

4 – No plano da criação literária esse real humano poderá ser definido como o convívio entre a consciência privada do escritor e as motivações e solicitações da realidade circundante – física e social, sensível, inteligível e transformável.

Ao falar em realidade social convém salientar o que anteriormente já se apontou como sendo a “condição” do escritor numa dada sociedade. Não se está a referir ao escritor como classe profissional, mas como homem social, isto é, como “parte de um processo social”. Da sua inevitável inserção numa dada estrutura em que relações sociais de um certo tipo dominam os fluxos da história, resulta que a sua actividade criadora consigo aquilo a que poderíamos chamar uma provocação de instrumentalidade no seio da sociedade, na medida em que não se pode abstrair a criação literária das vias de comunicação. A criação literária envolve indissociavelmente “aquilo que se comunica, a quem e como se comunica”.

Todo este processo propõe, efectivamente, ao escritor a saída da sua consciência privada, o transpor para um encontro de identificação da sua necessidade criadora com uma determinada ideologia. Projecta-o para uma possível consciência colectiva, para uma aferição constante entre a sua necessária liberdade concretas a que num dado momento histórico o ser social tem acesso activo, dentro das raízes culturais e dos problemas do povo que o integra, dentro da sua própria nacionalidade – única, via profunda para a universalidade.

E na aferição constante entre a liberdade de criação literária – que se exprime por uma linguagem que é um instrumento colectivo vivo – por linguagem novas que só criam e fecundam em situações novas ou em vias de renovação e as liberdades concretas que se situam em toda a sua extensão a inegável instrumentalidade da criação literária.

Essa instrumentalidade é, pois, técnica e ideológica. Enquanto técnica, sempre necessária e porventura urgentes por ser ineológica.

Nas capacidades criativas e expressivas de cada escritor, reside a especificidade da criação literária, ao mesmo tempo que é no conhecimento dinâmico da sua condição social no mundo e da responsabilidade oficinal que assume ao recorrer a uma via de comunicação que é a escrita, que se reconhece a sua instrumentalidade, a um tempo linguística e social.

Bicaji Ganecar - Treze (1970)

Após o juramento
Fez-se o ajuste
Do casamento
Mas à hora
Do sacramento
Recusou-se
O noivo
E deu-se tudo
Isso porque
O dia era treze

O rapaz era
Estudioso
Nunca ficava
Ocioso, pois,
Estudava todo o dia
Mas perdeu
Nos exames,
Porque o número
De inscrição
Era treze.

A família doutro
Era boa
E morava numa
Aldeia de Goa
Mas o filho
Era vadio
Foi assim
Porque o dia
Do seu nascimento
Era treze.

Após tanto esforço
Foi lançado
O novo Apolo
Mas teve
Que voltar do meio
De seu caminho
Porque o número
Que levava
Era de azar
Era treze.

Monday, 24 September 2012

Laxmanrao Sardessai - A Velhice e a Poesia (1965)


Dizem que sou velho,
Mas faço, aqui, poesia!
E que fiz durante toda a vida?
Fiz prosa e levei vida prosaica!
Experimentei o mundo,
Vi os bons e os maus,
Observei a natureza,
Os ricos e os pobres,
Os velhos e os novos,
Acumulei tudo, digeri tudo!
E, como um montanhês,
Fui rude e forte
Mas insensível às delicadezas da vida,
Porque o espírito se deleitava
Em ver da vida as rudezas
E, também, os contrastes chocantes
E os seus acidentes e os contornos.
Agora sou velho, como dizem,
E eu acredito,
Vejo nos meus olhos do meu netinho
O tesouro dos céus
E no seu sorriso
O tesouro da terra!
Ele, o meu netinho
Observa, encantado,
O céu, o sol, a lua,
As aves e as árvores,
Os cães e os gatos,
Olha-os, enfeitiçado,
E se ri e se move,
E agita as mãos
E, de olhos radiantes,
Pronuncia uma sílaba
E faz poesia!
Ensinou-me, pois, o meu netinho
A ver e sentir a poesia do Universo!

RV Pandit - Amor Comprado (1968)


O dinheiro
Compra tudo?
Tudo.
Até o amor?
Até o amor
Envolto da desgraça! 

A História de Cinco Inéditos (1954)

Talento e Modestia
Entrámos no edifício sem sabermos em que repartição trabalhava Judit Beatriz de Sousa. Deparamos com o Sr. José Souto que nos resolveu o problema, num gesto elegante que não podíamos deixar de trazer a público – foi ele mesmo a chamar a poetisa.

Já na frente daquele sorriso modesto um tanto ou quanto místico que nos embaraça, vimo-nos impossibilitados de expor imediatamente o que nos levara ali porque a nossa interlocutora atacou diversos assuntos ligados às letras e nós fomos na onde do entusiasmo que percorreu os gestos e as frases de JUDIT.

Falou-se do movimento poético em Portugal, dos mais representativos valores da nossa poesia de hoje, da necessidade de contesto permanente com os bons poetas, da forma e dos temas (disse-nos que está a procurar novos), dos Jogos Florais de Goa, etc.

E a propósito deste certame, a poetisa declarou-nos que, por princípio, não gostava de concorrer. Lá terá as suas razões que achamos de mau gosto discutir.

E quando finalmente notamos que estávamos a roubar tempo de que a “funcionária dos Correios” precisava, lançamos, então o nosso pedido: queríamos um poema para o Número de Pascoa.

Olhou-nos, naquele modo simples e desprendido que define um temperamento e respondeu: “não sei se estarei à altura de qualquer coisa digna dum número especial, mas vou tentar satisfazer o seu desejo”.

Aquelas palavras saíram com tanta sinceridade, tão naturalmente, que nos impressionaram. É que na verdade é difícil alguém pensar tão mal de si como esta talentosa artífice do sonho. Felizmente para nós a poetisa não tem razão. A demonstrá-lo está este poema que Judit intitulou:

Poema da Rua
Eu ando sozinha
Amparada à minha sombra
Na rua.

Há tanta gente na rua
Mas a minha sombra
Continua
Amparando aquela que sou eu.

Tanta gente conhecida
Que agora na minha Vida
É como areia fugida
Por entre os dedos...

Olham-me e dizem segredos:
- “Sexta-Feira de Paixão
Uma sábia distraída...
É uma interrogação...
Parece que está na lua...”
Sei lá que mais, aqui, alem,
Murmura quando me vê
Esta gente que vai e vem
Na Rua
No vaivém da Vida
Envelhecendo...

De longe veio um Poema
Alberto Barros e Sá anda por terras distantes, curtindo entre os solavancos da existência, uma saudade teimosa da sua querida Goa – desta mulher bonita que um dia adormeceu encostada ao Gates, ouvindo as lendas que o mar lhe contava, sôfrego do seu corpo dengoso e quente.

Não pudemos, por isso, tratar directamente da pretensão de “O Heraldo” com o goês que retratou a sua alma lírica nas páginas de O Destino – livro que ainda não apareceu em letra de Imprensa mas que se encontra pronto a seguir para a tipografia.

Felizmente há sempre alguém que se dispõe a colaborar, caso contrário não teríamos podido incluir nestes inéditos o poema que aí vai, cuja publicação foi autorizada pelo autor, através de pessoa amiga.

Tem, assim, o sabor de lembrança que se manda de longe, já que se não pode vir. Um aceno amigo que o homem do cais atira ao viajante desconhecido.

Daqui enviamos a Barros e Sá tudo o que nos é dado pelo seu gesto: a nossa gratidão e a nossa amizade. E que a poesia continue a guiá-lo nos caminhos da beleza, embora a quiséssemos menos subjectiva que nesta.

Visão
Sonhei em vão
Um sonho lindo
Que é feito dele?

Esvaiu-se
Quando sobressaltado
Me Levantei

Vi, vi no fantasma
Negro das trevas
Além, além
Os canteiros sinistros
Dum cemitério
Flores murchas
Flores amareladas
O vento agreste
Assobiando
Por entre lúgubres
Ciprestes

Súbito
Um estrondo
Neve que cai
Acompanhando
A celestial visão
Da minha bem amada,
Partiste, partiste
Sem um adeus
Sem uma palavra
Um beijo não pode
Selar a eterna jornada

Tanto abraçar-te, ó visão
Ó visão esmagadora
E eis que me foges
Um sonho.
Nem tudo morreu ainda...
Um silêncio que vem morrer à porta, avisa-nos de que naquela casa se trabalha religiosamente, sem alardes nem cartazes.

Vencido o primeiro lanço de escada, o ambiente começou de infiltrar-se nas nossas intenções e, sem darmos por isso, achamo-nos frente à ideia de que não tínhamos o direito de desviar o tempo dum homem que, embora vencendo um ordenado, estava a contribuir naquilo que andava ao seu alcance, para uma obra marcadamente humanitária como é esta de valer a todos para quem a vida reservou o pior bocado – o bocado dos desgraçados.

Mas as circunstâncias impunham-se e lá fomos subindo e depois cortando à esquerda, para irmos para ao fundo dum corredor envidraçado, local onde Alfredo Lobato de Faria queima uma grande parte das suas horas, de caneta em punho.

Um aperto de mão. Duas palavras sobre o calor. O autor de Sombras acabou de preencher uma papeleta que tinha sob o domínio do aparo e acomodou-se no seu lugar, a saber ao que íamos.

Agradeceu-nos a lembrança que tivermos do seu “modesto nome” e prometeu-nos ajude.

Entretanto, vieram mais uns minutos de conversas quase inteiramente preenchidos pela palavra fluente e sentida do poeta. A análise do ambiente literário goês deixou-nos inteirados quanto ao carinho que estas coisas merecem a Lobato de Faria. E nós que temos a veleidade de nos supormos interessados num progresso cultural desta terra, aprendemos ali, na serenidade daquele santo, que nem tudo está perdido – pelo menos enquanto restar uma dedicação como a do poeta de

Sintetizando
Homem que vais por este mundo fora
Que queres ser tu mais, intelectual profundo
Ou simples afectivo, pobre embora?
Que queres ser, pois, cérebro facundo
Onde esplendem ideias luminosas,
Ou coração que em noites silenciosas
Chora a dor dos que penam neste Vale?

Que queres ser, qual é tua ambição?
Um Compte, Galileu, “divino” Antero,
São Francisco de Assis, Camões, Pascal,
Miguel Ângelo, Newton genial?
Que queres ser, qual é o teu ideal?

Um Intervalo na Prosa
Onze da manhã. No quartel da policia vai um movimento intenso. Horas de expediente que são iguais em toda a parte onde a burocracia entrou com todo o seu cortejo de impressos e assinaturas, verbetes e ofícios, participações e relatórios, autos e despachos, etc.

Indagamos do paradeiro de Leopoldo Menezes. A praça a quem nos dirigimos tomou a posição correcta de “sentido” e chamou um camarada – o que nos havia de conduzir à presença do poeta.

Fomos encontrar a nossa “vítima” num grupo discutindo qualquer assunto de serviço que, pelos vistos, estava a preocupar aquela meia dúzia de elementos, tal a vivacidade que púnhamos na troca de frases.

Interrompemos Leopolod que nos acolheu com um ar saudável de quem não faz força para ser cortês.

Finas as habituais cerimónias do “então, como vai, passou bem?”. Quisemos saber o que tinha produzido nos últimos tempos.

Que pouco, em verso. Na prosa é que estava a empregar o presentemente as suas horas vagas: duas obras de carácter histórico sobre Goa.

Foi quase um balde de água fria. A um poeta que está em época de prosa não se devem pedir favores de género que levamos engatilhado. E se não descobríssemos o jogo. Se disséssemos que tínhamos ido ali para saber novidades sobre os trabalhos literários do nosso amigo? Era talvez o melhor. Mas, assim, o Número da Páscoa não contaria com a sua colaboração!... Isso, de maneira nenhuma. Reunimos forças e “Eu vim aqui para lhe pedir um poema inédito”. Leopoldo Menezes perguntou-nos a que se destinava a produção. Satisfeita a sua curiosidade, acedeu.

Afinal, tinha sido mais fácil do que pensávamos. É que os verdadeiros poetas, trazem sempre na alma a beleza suficiente para conceber dois sonetos, sem que seja preciso quebrar a continuidade doutra empresa. E a prova aí vai.

Sonhar

Oh! Como é bom sonhar, embora uma mentira,
Ser sol e ser luar, uma estrela cadente,
Teu escravo, mulher, cantando uma lira,
O amor que me destrói matando lentamente!

Oh! Como é bom sonhar um sonho que delira
Como um beijo de hurí sensual e fremente,
Morremos a queimar sós numa ardente pira,
Num amplexo fatal que a morte nunca sente!

Oh! Como é bom sonhar, ser tudo e não ser nada,
Pigmeu ou titã, ser apenas pó de estrada,
Vento forte que obumbra ou um raio de luz!

Oh! Como é bom sonhar, ter o aroma da flor,
Viver só para amar, viver só có o amor,
Morrer no cadafalso ou aos pés duma cruel.
Nem Sempre o Sonho é Possível

Alberto de Menezes Rodrigues era, até há bem pouco, um desconhecido para nós – até ao dia em que nós informaram de que na tipografia Sadananda estava a imprimir-se um livro de versos – “Arroios” – cujo autor vivia em Goa Velha e trabalhava em Pangim, como oficial da Fazenda.

Tivemos mais tarde ocasião de falar ao poeta e de lhe exprimir a nossa satisfação por vermos mais um filho de Goa a procrar o caminho das letras.

Era, portanto, uma porta que não deixaria de se abrir para nos acolher. E não hesitamos.

Grupos apressados entram e saem, num movimento descomendado, ao sabor do tempo disponível e da urgência dos assuntos. Cá fora, as sete letras, enormes e inalteráveis, lá vão atirando para cima do contribuinte todo o vigor da sua presença “Paga!”.

Após um série de perguntas e respostas provocadas pela nosso desejo de encontro com o autor de “Arroios” chegamos a uma sala espaçosa, de semi-penumbra, onde um grupo de funcionários se entregava aos papeis que tinha sob os olhos, numa concentração que era quase volúpia.

Alberto de Menezes Bragança não estava, de momento, mas não tardaria. Efectivamente, poucos minutos decorridos, eis-nos a lançar o golpe de misericórdia. O nosso interlocutor “parou” admiravelmente este “bote dos cem luzes”. Nem pestanejou. Levou as mãos ao rosto, num gesto de quem vai pensar, e disse-nos que não lhe era possível produzir um poema para a data que nós queríamos. No entanto, como lhe custava deixar de nos ser agradável, extrairia um do livro que tinha no prelo. É esse que inserimos abaixo e que não nos parece mal esolhido.

Aquela melodia...
E abrindo a porta envidraçada
Que dava para o terraço,
Um jovem alto e formoso
Avançou, vagaroso,
Até à balaustrada.
A casa era branca e cercada
De altivos coqueiros
E tinha, à sua frente,
Um jardim virante,
Que espalhava no ambiente
Aroma suave e fino,
Ele trazia na mão um violino
E havia muita tristeza
Nos seus lindos olhos.
Àquela hora silenciosa,
Em que ia alta a noite,
A Lua subia majestosa
Pelos caminhos azuis do céu,
Derramando, com profusão,
Argêntea claridade.
O mancebo ergueu os olhos para o alto,
Em calma contemplação.
Depois os poisou sobre as plantas floridas,
Aspirando, com serenidade,
As fragrâncias que elas rescendiam
E, por fim, começou a tocar...
Uma música melodiosa
Ressoava agora no ar.
Era triste, mas tão harmoniosa
Que não parecia deste mundo,
Mas das longínquas regiões do Azul.
Aquelas notas vibrantes
Eram a expressão sublime
Da dor
Que amargurava a vida
Do moço tocador.
A Natureza, em silêncio,
Escutava-as embevecida.
Havia murmúrios das flores,
Em baixo, no jardim.
Uma rosa, comovida,
Virando-se para o cravo vizinho,
Estas palavras lhes soltam aos ouvidos
De mansinho:
“Que harmonia é essa
Que me enleva e domina?
Em toda a minha vida,
Música não ouvi
Tão amena e divina!”
E o cravo lhe cochichou,
Tristemente sorrindo:
“Na serenidade maravilhosa
Daquele semblante
Eu vejo nítidos reflexos
Dum sofrimento incessante,
Que dilacera essa alma formosa.
Mas escutamos com atenção.
Pois agora a melodia
Tem não sei quê de magia.”
Nesse momento vibrou no ar
Um anseio enternecido:
“Eu quisera reclinar-me
Sobre aquele peito dolorido,
Para lhe aliviar o amargor
Com o meu suave olor!”
Era a voz dum mogarim
Que alvejava no jardim.
Com efeito, o violino
Era sublime, sublime,
Que maviosidade ele espalhava
Naquele ameno recinto!
O arco ligeiro
Agora deslizava
Apenas sobre a prima,
Num arranco impressionante,
Soberbo culminante!
E chegou, afinal, o momento
Em que o exímio violinista
Cessou de tocar.
Depois, mansamente,
Se recolheu ao seu aposento.

Instantes após,
Na amplidão enluarada,
Uma voz maviosa
Tremente, ressoou
Da trepadeira
Das cinco chagas
Que crescia viçosa,
Enroscando-se às balaustradas,
Do alvo terraço,
Uma flor graciosa
Desatou a falar:
“Eu vi de parte o violinista
Moço formosos, cujo olhar
Era triste, mas fascinantes
Eu escutei, com muita emoção,
Qual comovida amante,
O brando arfar
Daquele triste peito.
Algumas pétalas minhas
Quase que tocaram
Nas suas vestes branquinhas,
Ouvi, ó esbeltas flores,
Atentamente,
O que vos vou agora contar!
Precisamente no instante
Em que ele cessou de tocar,
Do seu olho direito
Uma lágrima brilhante
Eu vi brotar,
Que, logo depois,
Resvalando rapidamente
Pela face ebúrnea,
No meu seio tombou.
Ai, que comoção
Nesse momento senti!
Julguei que me rebentava
O coração, 
Eu recolhi, com grande ternura,
Essa lágrima ardente e pura,
Dádiva generosa
Que o Eterno enviou
Para avaliar a dor
Daquela alma desditosa.
Mas que vendaval feroz
Passou por aquele coração,
Na primavera da vida,
Nessa linda idade
De sonhos e ambições?
Ai longe de mim a intenção
De perscrutar
O segredo que oculta
A tremenda desventura
Que o tortura!
Ó lágrima silenciosa!
Lágrima cristalina!
A ti que és a coroa gloriosa
Do desventurado tocador
E que agora tremeluzes formosa
Na minha corola virginal,
Eu te contemplo, com intenso amor!
Bendita sejas tu, bendita sejas,
Ó lágrima ideal!”

Monday, 10 September 2012

RV Pandit - O Inverno (1969)

Já vou...
Já vou...

Cra... Cra... Cra...
Dispersando as nuvens
Espalhando pela terra
Pérolas e jóias
Vou montando
No cavalo luminoso
Da faísca

Demorar quatro meses
Sobre a terra
Germinar sementes
Dar vida nova
À terra ressequida

A riqueza, na Terra oculta
Multiplicar...
Para a fazer sorrir
Faço chorar o firmamento.
Sou o inverno.

Cra... Cra... Cra...
Choco nuvens de néctar
Bátegas de néctar
Por toda a terra
Até que a plantazinha
Da várzea
Mande o arroz
Para os celeiros,

O meu estrondo
Começado em Junho
Vai até Setembro

Trago comigo
A eterna bênção divina

Já vou
Já vou.

Laxmanrao Sardessai - Estou em Tudo (1966)

Estou no orvalho que refresca a flor,
Estou no murmúrio da fonte,
Estou no sorriso do santo,
Estou no abraço quente da mãe,
Estou no olhar fascinante da donzela,
Estou no sopro ligeiro da brisa,
Estou no beijo dos casados,
Estou nas carícias
Com que o cão involve o seu dono,
Estou no arfar das ondas,
Estou na procela que ruge
E na bonança que a segue,
Estou nos raios do Sol,
E na chuva que une o céu à terra,
Estou no aroma e nas cores das flores,
Estou na linha do horizonte,
Estou no viço dos rebentos,
Estou no arrulhar dos pombos,
Estou em tudo, Senhor,
Que revela a Tua presença.