Ao fundo da sala, propositadamente escolho a cadeira mais apta a proporcionar uma indolência a que lanço reconfortante e lenço o corpo e o espírito na corrente mole que o ar do Café engrossa.
A telefonia conta, em segredos de música, a espalharem mais calor nos nervos, episódios de beleza imaginada – lances arrancados a uma superficialidade brutal que não obriga a pensar.
A esta hora – a tarde nasceu há pouco – a sala deserta intensifica o desejo duma fuga à realidade – cobardia assinalada por um mal estar que, a espaços, me aperta a respiração.
Um quadro de todos os dias que, hoje, repentinamente e sem aviso, resolveu mudar.
Ela apareceu no vazio da porta que dá entrada ao recinto; apareceu e escapou-se, logo, indiferente ao silêncio e à música. Os dois “salões” equilibrados no corpo escanzelado – jogo de braços e quadris – voltou a passar naquele intervalo de paredes onde uma escada se projecta, superior ao esforço da aguadeira, talvez a rir-se dos movimentos caricatos que a subida lhe atira às pernas.
Aquela figura tem séculos de poesia romântica a partirem-lhe os pobres ombros que se aproximam irresistivelmente a quererem fechar o peito que já mal pode gritar. É uma figura de adorno na visão febril dos poetas olheirentos, na sensibilidade esponjosa de lírico impenitentes que andam a medir as noites pelo número de estrelas e a conversar com as fontes que, às vezes, nem água têm o inegável mérito de fornecer material para um soneto recheado de comparações luminosas – para um autêntico soneto!
A mulher continua a passar, a vergastar-me os olhos com a sujidade do sari, a recalcar–me os últimos desejos de indiferença – a impor-me conclusões.
Vergo-me ao peso da sua presença, do cabelo revolto, do rictus de fatalidade que se agarrou àquele fase onde a idade intruja, onde há a marca rebaixada de milhares de horas iguais, na luta a na resig-
(Segue na quarta página)
nação.
Olhou-me – um olhar comprometido – e eu pus na minha expressão todos os efeitos das verdades que se arozam na minha consciência de homem da rua. Fitei-a num grito de compreensão que nunca poderá servir de tema aos poetas olheirentos que andam a medir a noite pelo número de estrelas. Naquele momento, parece-me que cheguei a ser irmão da aguadeira. Talvez, por isso, deitei-me a imaginar os dias que a vida lhe roubou, em negaças, em troços, em desprezo.
De certo, foi bela. De certo, aquele corpo amassado de trabalhos desejou o amor com a ânsia que dá a contemplação da beleza própria. De certo, teve sonhos e ouviu palavras inspiradoras de insónias. Momentos houve em que o seu destino se comprimia nas dimensões dum punho. Tão fácil tudo, tão realizáveis as aspirações dessa mulherzinha de porte virgem e flores na trança. Foram as negaças da vida.
Depois, os primeiros passos na criação dum presente que nunca deu margem a alimentar um futuro. A casa estranha, o homem, a obediência e os filhos. E tudo o mais... numa precipitação de reveses, num conjunto frio que foi anulando o resto de calor que o sangue de dúzia e meia de primaveras ainda aguentava. Foi a vida a troçar.
Hoje, autómata no sofrimento, já nem analisa os factos que mataram os mais queridos desejos, já nem lhe importa a cor do sol que vai nascer. Os músculos empurram-na como se fosse embrulho sujo e inútil que pode cair na primeira sarjeta. Ela é capaz de admitir que nas dobras da sua existência possa andar a ironia da quadratura do círculo.
Torna-se tão igual, nos gestos e no querer, ao cachorro dedicado a coxear das últimas pancadas, que as gentes confundem a falta de posses com o vício do infortúnio. E esmagam-na, cada vez mais. Chegam a dizer que estão a medir toda a extensão da sua cobardia e vão pisando mais forte. É a vida a desprezá-la...
A vida! Feita de milhões de princípios nascidos, mais ou menos, ia estupidez fria dos ambientes humanos que a conveniência gerou. Um montão de hábitos cómodos, riquíssimos de contradições palpitantes que nunca andam nas razões dos sonetos recheados de comparações luminosas.
Visto o problema assim, fica-me a dúvida se a Vida, a verdadeira, a única, não está mais na visão clara e interessada, generosa e irmã, de tudo o que a aguadeira não chegou a ser, que na aceitação distante – e, quando próxima, egoísta, até sádica – daquilo que os homens quiserem que ela fosse.
A telefonia conta, em segredos de música, a espalharem mais calor nos nervos, episódios de beleza imaginada – lances arrancados a uma superficialidade brutal que não obriga a pensar.
A esta hora – a tarde nasceu há pouco – a sala deserta intensifica o desejo duma fuga à realidade – cobardia assinalada por um mal estar que, a espaços, me aperta a respiração.
Um quadro de todos os dias que, hoje, repentinamente e sem aviso, resolveu mudar.
Ela apareceu no vazio da porta que dá entrada ao recinto; apareceu e escapou-se, logo, indiferente ao silêncio e à música. Os dois “salões” equilibrados no corpo escanzelado – jogo de braços e quadris – voltou a passar naquele intervalo de paredes onde uma escada se projecta, superior ao esforço da aguadeira, talvez a rir-se dos movimentos caricatos que a subida lhe atira às pernas.
Aquela figura tem séculos de poesia romântica a partirem-lhe os pobres ombros que se aproximam irresistivelmente a quererem fechar o peito que já mal pode gritar. É uma figura de adorno na visão febril dos poetas olheirentos, na sensibilidade esponjosa de lírico impenitentes que andam a medir as noites pelo número de estrelas e a conversar com as fontes que, às vezes, nem água têm o inegável mérito de fornecer material para um soneto recheado de comparações luminosas – para um autêntico soneto!
A mulher continua a passar, a vergastar-me os olhos com a sujidade do sari, a recalcar–me os últimos desejos de indiferença – a impor-me conclusões.
Vergo-me ao peso da sua presença, do cabelo revolto, do rictus de fatalidade que se agarrou àquele fase onde a idade intruja, onde há a marca rebaixada de milhares de horas iguais, na luta a na resig-
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nação.
Olhou-me – um olhar comprometido – e eu pus na minha expressão todos os efeitos das verdades que se arozam na minha consciência de homem da rua. Fitei-a num grito de compreensão que nunca poderá servir de tema aos poetas olheirentos que andam a medir a noite pelo número de estrelas. Naquele momento, parece-me que cheguei a ser irmão da aguadeira. Talvez, por isso, deitei-me a imaginar os dias que a vida lhe roubou, em negaças, em troços, em desprezo.
De certo, foi bela. De certo, aquele corpo amassado de trabalhos desejou o amor com a ânsia que dá a contemplação da beleza própria. De certo, teve sonhos e ouviu palavras inspiradoras de insónias. Momentos houve em que o seu destino se comprimia nas dimensões dum punho. Tão fácil tudo, tão realizáveis as aspirações dessa mulherzinha de porte virgem e flores na trança. Foram as negaças da vida.
Depois, os primeiros passos na criação dum presente que nunca deu margem a alimentar um futuro. A casa estranha, o homem, a obediência e os filhos. E tudo o mais... numa precipitação de reveses, num conjunto frio que foi anulando o resto de calor que o sangue de dúzia e meia de primaveras ainda aguentava. Foi a vida a troçar.
Hoje, autómata no sofrimento, já nem analisa os factos que mataram os mais queridos desejos, já nem lhe importa a cor do sol que vai nascer. Os músculos empurram-na como se fosse embrulho sujo e inútil que pode cair na primeira sarjeta. Ela é capaz de admitir que nas dobras da sua existência possa andar a ironia da quadratura do círculo.
Torna-se tão igual, nos gestos e no querer, ao cachorro dedicado a coxear das últimas pancadas, que as gentes confundem a falta de posses com o vício do infortúnio. E esmagam-na, cada vez mais. Chegam a dizer que estão a medir toda a extensão da sua cobardia e vão pisando mais forte. É a vida a desprezá-la...
A vida! Feita de milhões de princípios nascidos, mais ou menos, ia estupidez fria dos ambientes humanos que a conveniência gerou. Um montão de hábitos cómodos, riquíssimos de contradições palpitantes que nunca andam nas razões dos sonetos recheados de comparações luminosas.
Visto o problema assim, fica-me a dúvida se a Vida, a verdadeira, a única, não está mais na visão clara e interessada, generosa e irmã, de tudo o que a aguadeira não chegou a ser, que na aceitação distante – e, quando próxima, egoísta, até sádica – daquilo que os homens quiserem que ela fosse.
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