Estaria o espírito do Poeta já dominado por um vago pressentimento quando adoptava, para o seu primeiro e último livro, o título de “Falenas”? De asas queimadas aos vinte e oito anos, o seu estro iria extinguir-se abruptamente, antes de nos poder dar a plena curva do seu voo, que teve altos e baixos caprichosos, ameaçando cair às vezes numa espécie de poesia rimada e erguendo-se outras às mais radiosas e brilhantes promessas!
Falenas esvoaçando lugubremente no ar, os seus versos deixam, em geral, um travo de amargura, tanto mais que o seu pessimismo – como ele próprio o nota no seu Prólogo – não é uma planta de estufa, mas é sincero e vivido, e nós o vemos exteriorizar-se nestes versos, um tanto arrepiantes e mordidos de ironia, a que deu o prosaico título de “Pessimismo e Instinto de Conservação”:
Reis da Criação! Reis da feira! Reis de nome,
Que Doença, Mágoa, Mal, Paixão, Dúvida, Instinto,
Tudo nos escraviza e tudo nos consome,
Com que ironia o digo e com que pena o sinto!
Há encantos na existência: uma dúzia de pérolas
Perdidas na amplidão dum oceano sem termo.
Não podem saciar o coração enfermo,
Lacerado ao vaivém das grandes vagas cérulas.
E, apesar de eu saber esta verdade séria,
Só nas horas cruéis de aflições e de luta,
Almejo a paz final, soberana e absoluta.
O horror da destruição! A algema da matéria
É tão dura e pesada, é tão sólida e forte
Que eu não posso chamar a sangue frio a Morte!
Floriano Barreto já trazia decerto latente, mesmo “no viço dos seus vinte anos”, aquele germe mortal que, daí a oito e poucos anos, o postraria no túmulo, na cidade do Porto, aonde o levaram ânsias novas e novas esperanças. Os seus amigos, que os deixara dos melhores em Goa, coligiram piedosamente um “Livro Póstumo”, com o apoio do “Heraldo”, de que fora colaborador, de Menezes Bragança, António de Noronha, Fernando Leal, Roque Correia Afonso e outros, algums poemetos selectas das “Falenas”, uns poucos de inéditos e as suas interessantes prosas dispersas pela imprensa goesa. Nestas, Floriano Barreto esboça ricos e coloridos quadros ou risonhas e flagrantes caricaturas, à volta de certos temas e aspectos regionais, com notações criticas por vezes aceradas, tudo atravessado de um fundo e entranhado amor a este “abençoado ninho paterno”. Certos trechos dos “Campos”, das “Florestas”, dos “Montes”, e o seu curioso estudo critico do Mando, os serenos protestos contra o arremedo simiesco dos que nos vem de fora, o vivo e minucioso registo de tantos costumes sociais porventura “prestes a extinguir-se”, as suas largas pinceladas sobre a música, a pintura e a cerâmica locais, as suas discretas charges de reformador sócia, mesmo a sorridente e ingénua apologia do “Arroz e Caril” (tema que seria, mais tarde, retomado com particular brilho por Wolfango da Silva), tudo siso nos revela um escritor fino e por vezes profundo, pondo deliberadamente o seu talento ao serviço da sua terra que, como intelectual e como artista, devotada e filialmente amou.
É sabido que os poetas goeses tiveram uma predilecção especial pelos motivos recolhidos do vasto espólio cultural da Índia e pela criação de telas dum característico colorido oriental. Assim sucedeu com os maiores, como Nascimento Mendonça, Paulino Dias, Adeodato Barreto. A imaginação poética, a transposição da realidade para o Sonho, o ritmo e a música, a subtil gama da emotividade humana, que caracterizavam a poesia (deusa esquiva que poucos se atrevem a desvendar ou definir) assumem, no estro dos nossos poetas, uma expressão e tonalidade mais ricas quando se levanta o pano sobre o exuberante panorama cultural indiano. Floriano Barreto fá-lo até deliberadamente, na secção primeira das “Falenas”, subordinada ao título “Indianas”, como contribuição poética “para o centenário da Índia” (em 1898). A evocação da suave lenda do Sindrimal, essa briosa e resplendente flor que o ciúme leva a fechar a corola à passagem do Sol infiel; o triste fado da “bailadeira da Índia”, cantado em estrofes umas vezes fulgurantes e, outras, lendas e monótonas, descaindo por vezes naquilo que se chamaria a poesia didáctica ou insossamente moralista, mas sempre repassadas de um largo e generoso sopro de ternura humana...
Tilintam os guisos: tchinn. Saranguis lentamente
Desprendem pelo espaço em lânguidas doçuras
Harmonias de amor aveludadas, puras,
Que embalam a noss’alma em um sonho dolente.
...
Flutuam-te na esteira eflúvios profundos,
Aromas de tchampins e lírios cetinados.
Toma a tua dança o ondear da palmeira.
Fascina a gente! Bate os guisos, feiticeira,
Que despertarás sempre em corações devassos
Frémitos de volúpia e lânguidos cansaços
E, numa alma de luz, num espírito forte,
Sentimentos de dó, de compaixão de pena...
A apoteose da nossa divindade tutelar e fagueira – o Coqueiro –; o vibrante látego zurzido contra o Satil tudo isso documenta bem quanto o fecundo veio oriental poder seduzir e alimentar a inspiração dos nossos poetas.
Claro que Floriano Barreto, a símile do que sucede com os demais poetas goeses, traindo o humani nihil que é a partilha de todo o homem superior vai também desferindo o voo por outras esferas, dando-nos ora o grito angustiado do “Fragmento”, ora uma tentativa de sátira em “Os Cães”, ora as rendilhadas filigranas do “Floco de Neve” ou das “Nuvens”, ora ainda esse lúgubre lamento que encerra as “Falenas”, com estes dois versos de melancólica toada anteriana:
Meu pobre coração desiludido volta
Para a mão de Jesus e lhe dorme no seio.
Como simples indicações do rico potencial de energias e virtualidades que o estro de Floriano Barreto continha e que a morte veio desapiedadamente reduzir a um punhado de cinzas, podemos ter diante dos olhos este tríptico de inspiração dessemelhante e que, apesar de certas imperfeições de somenos importância, denunciam um talento maleável e capaz de mais altos voos:
1 O Inquisidor
O padre inquisidor sombrio e carrancudo
Completa a digestão e cisma na varanda.
Hora crepuscular, deliciosa, branda.
No alto, o céu claro tem maciezas de veludo.
Em baixo, no jardim, como a água emperla tudo
E em veios de cristal deriva em toda a banda
Relvas, flores de mimo e tulipas de Holanda,
Repuxos expluindo íris de luz!... Contudo,
Esse olhar duro, afeito às torturas dos outros,
Às tenazes, prisões, cavaletes e potros,
Não se enternece e ri ante o painel formoso.
... A pupila, porém, de alegria se inflama
quando o sol, entre o incêndio e entre línguas de chama,
cai num auto-de-fé magnífico pomposo!
II Aguarela
Vai descendo o rebanho e balando nos ares.
A encosta da colina em breve se mosqueia
De dorsos de animais que, à volta, têm na ideia
O curral que lhes dá o conhego dos lares.
Os pegureiros vão em rápidos folgares
Descrevendo os ziguezagues do trilho que serpeia
E, nas frautas de cana, em doce melopeia,
Vão tangendo de leve amorosos cantares.
E esmorzando de manso umas árias estranhas,
Motivos ideais, baladas de montanhas,
Ritmos duma doçura infinita e tranquila,
Música tão singela e doce e primitiva,
Que a Vésper irradiante a viva
Desponta expressamente e põe-se do alto a ouvi-la.
III Via Láctea
Quando tu vais por esses caminhos
Onde aves cantam e fremem ninhos,
Não se magoam os teus pezinhos?
Oh! Se eu tivesse o poder criador,
Não punha a via láctea nos ares,
Tão branca como a espuma dos mares,
Assim a punha para tu pisares, meu amor!
Eu constelava-a de muitos Sírios,
Eu alastrava-a de muitos lírios,
Eu cravejava-a de muitas gemas,
Eu perfumava-a de muito aroma,
Eu sombreava-a de muita coma,
E, com as minhas forças supremas,
Dava-lhe tudo, dava-lhe tudo.
Oh! Se eu tiver o poder criador,
Não punha a via láctea nos ares,
Tão branca como a espuma dos mares,
Assim a punha para pisares, meu amor!
Para que enfom por esses caminhos,
Onde aves cantam e fremem ninhos,
Não se magoem os teus pezinhos, meu amor!
Fale, pois, o Poeta por si mesmo, por entre sorrisos de aurora e agonias de sol-pôr sofrendo e sonhando, derramando a sua alma em versos candentes ou brandos, na curva caprichosa da sua imaginação triunfal ou... doente. Ó pessimismo, a dúvida, o desalento, a dor são a nota dominante da sua exígua produção literária, que ficará contudo como um dos momentos felizes das Letras goesas, que floresceram sobretudo a partir dos fins do século XIX e hoje vão rumando por outros horizontes porventura mais amplos e pretensamente universais.
Como me encantou, na sua despretensão e singeleza, a terna dedicatória que Floriano Barreto traçou – além da que consta, em letra de forma, na terceira página das “Falenas” – logo no verso da primeira página num cursivo delicado e nervoso:
A meus queridos pais e irmãos
Que esta flor do meu espírito
- primeira flor tão modesta –
vá perfumar com empenho
num petulante dar de festa,
o muito amor que vos tenho!
... A primeira e última flor de tão fino, nobre e elevado espírito!
Falenas esvoaçando lugubremente no ar, os seus versos deixam, em geral, um travo de amargura, tanto mais que o seu pessimismo – como ele próprio o nota no seu Prólogo – não é uma planta de estufa, mas é sincero e vivido, e nós o vemos exteriorizar-se nestes versos, um tanto arrepiantes e mordidos de ironia, a que deu o prosaico título de “Pessimismo e Instinto de Conservação”:
Reis da Criação! Reis da feira! Reis de nome,
Que Doença, Mágoa, Mal, Paixão, Dúvida, Instinto,
Tudo nos escraviza e tudo nos consome,
Com que ironia o digo e com que pena o sinto!
Há encantos na existência: uma dúzia de pérolas
Perdidas na amplidão dum oceano sem termo.
Não podem saciar o coração enfermo,
Lacerado ao vaivém das grandes vagas cérulas.
E, apesar de eu saber esta verdade séria,
Só nas horas cruéis de aflições e de luta,
Almejo a paz final, soberana e absoluta.
O horror da destruição! A algema da matéria
É tão dura e pesada, é tão sólida e forte
Que eu não posso chamar a sangue frio a Morte!
Floriano Barreto já trazia decerto latente, mesmo “no viço dos seus vinte anos”, aquele germe mortal que, daí a oito e poucos anos, o postraria no túmulo, na cidade do Porto, aonde o levaram ânsias novas e novas esperanças. Os seus amigos, que os deixara dos melhores em Goa, coligiram piedosamente um “Livro Póstumo”, com o apoio do “Heraldo”, de que fora colaborador, de Menezes Bragança, António de Noronha, Fernando Leal, Roque Correia Afonso e outros, algums poemetos selectas das “Falenas”, uns poucos de inéditos e as suas interessantes prosas dispersas pela imprensa goesa. Nestas, Floriano Barreto esboça ricos e coloridos quadros ou risonhas e flagrantes caricaturas, à volta de certos temas e aspectos regionais, com notações criticas por vezes aceradas, tudo atravessado de um fundo e entranhado amor a este “abençoado ninho paterno”. Certos trechos dos “Campos”, das “Florestas”, dos “Montes”, e o seu curioso estudo critico do Mando, os serenos protestos contra o arremedo simiesco dos que nos vem de fora, o vivo e minucioso registo de tantos costumes sociais porventura “prestes a extinguir-se”, as suas largas pinceladas sobre a música, a pintura e a cerâmica locais, as suas discretas charges de reformador sócia, mesmo a sorridente e ingénua apologia do “Arroz e Caril” (tema que seria, mais tarde, retomado com particular brilho por Wolfango da Silva), tudo siso nos revela um escritor fino e por vezes profundo, pondo deliberadamente o seu talento ao serviço da sua terra que, como intelectual e como artista, devotada e filialmente amou.
É sabido que os poetas goeses tiveram uma predilecção especial pelos motivos recolhidos do vasto espólio cultural da Índia e pela criação de telas dum característico colorido oriental. Assim sucedeu com os maiores, como Nascimento Mendonça, Paulino Dias, Adeodato Barreto. A imaginação poética, a transposição da realidade para o Sonho, o ritmo e a música, a subtil gama da emotividade humana, que caracterizavam a poesia (deusa esquiva que poucos se atrevem a desvendar ou definir) assumem, no estro dos nossos poetas, uma expressão e tonalidade mais ricas quando se levanta o pano sobre o exuberante panorama cultural indiano. Floriano Barreto fá-lo até deliberadamente, na secção primeira das “Falenas”, subordinada ao título “Indianas”, como contribuição poética “para o centenário da Índia” (em 1898). A evocação da suave lenda do Sindrimal, essa briosa e resplendente flor que o ciúme leva a fechar a corola à passagem do Sol infiel; o triste fado da “bailadeira da Índia”, cantado em estrofes umas vezes fulgurantes e, outras, lendas e monótonas, descaindo por vezes naquilo que se chamaria a poesia didáctica ou insossamente moralista, mas sempre repassadas de um largo e generoso sopro de ternura humana...
Tilintam os guisos: tchinn. Saranguis lentamente
Desprendem pelo espaço em lânguidas doçuras
Harmonias de amor aveludadas, puras,
Que embalam a noss’alma em um sonho dolente.
...
Flutuam-te na esteira eflúvios profundos,
Aromas de tchampins e lírios cetinados.
Toma a tua dança o ondear da palmeira.
Fascina a gente! Bate os guisos, feiticeira,
Que despertarás sempre em corações devassos
Frémitos de volúpia e lânguidos cansaços
E, numa alma de luz, num espírito forte,
Sentimentos de dó, de compaixão de pena...
A apoteose da nossa divindade tutelar e fagueira – o Coqueiro –; o vibrante látego zurzido contra o Satil tudo isso documenta bem quanto o fecundo veio oriental poder seduzir e alimentar a inspiração dos nossos poetas.
Claro que Floriano Barreto, a símile do que sucede com os demais poetas goeses, traindo o humani nihil que é a partilha de todo o homem superior vai também desferindo o voo por outras esferas, dando-nos ora o grito angustiado do “Fragmento”, ora uma tentativa de sátira em “Os Cães”, ora as rendilhadas filigranas do “Floco de Neve” ou das “Nuvens”, ora ainda esse lúgubre lamento que encerra as “Falenas”, com estes dois versos de melancólica toada anteriana:
Meu pobre coração desiludido volta
Para a mão de Jesus e lhe dorme no seio.
Como simples indicações do rico potencial de energias e virtualidades que o estro de Floriano Barreto continha e que a morte veio desapiedadamente reduzir a um punhado de cinzas, podemos ter diante dos olhos este tríptico de inspiração dessemelhante e que, apesar de certas imperfeições de somenos importância, denunciam um talento maleável e capaz de mais altos voos:
1 O Inquisidor
O padre inquisidor sombrio e carrancudo
Completa a digestão e cisma na varanda.
Hora crepuscular, deliciosa, branda.
No alto, o céu claro tem maciezas de veludo.
Em baixo, no jardim, como a água emperla tudo
E em veios de cristal deriva em toda a banda
Relvas, flores de mimo e tulipas de Holanda,
Repuxos expluindo íris de luz!... Contudo,
Esse olhar duro, afeito às torturas dos outros,
Às tenazes, prisões, cavaletes e potros,
Não se enternece e ri ante o painel formoso.
... A pupila, porém, de alegria se inflama
quando o sol, entre o incêndio e entre línguas de chama,
cai num auto-de-fé magnífico pomposo!
II Aguarela
Vai descendo o rebanho e balando nos ares.
A encosta da colina em breve se mosqueia
De dorsos de animais que, à volta, têm na ideia
O curral que lhes dá o conhego dos lares.
Os pegureiros vão em rápidos folgares
Descrevendo os ziguezagues do trilho que serpeia
E, nas frautas de cana, em doce melopeia,
Vão tangendo de leve amorosos cantares.
E esmorzando de manso umas árias estranhas,
Motivos ideais, baladas de montanhas,
Ritmos duma doçura infinita e tranquila,
Música tão singela e doce e primitiva,
Que a Vésper irradiante a viva
Desponta expressamente e põe-se do alto a ouvi-la.
III Via Láctea
Quando tu vais por esses caminhos
Onde aves cantam e fremem ninhos,
Não se magoam os teus pezinhos?
Oh! Se eu tivesse o poder criador,
Não punha a via láctea nos ares,
Tão branca como a espuma dos mares,
Assim a punha para tu pisares, meu amor!
Eu constelava-a de muitos Sírios,
Eu alastrava-a de muitos lírios,
Eu cravejava-a de muitas gemas,
Eu perfumava-a de muito aroma,
Eu sombreava-a de muita coma,
E, com as minhas forças supremas,
Dava-lhe tudo, dava-lhe tudo.
Oh! Se eu tiver o poder criador,
Não punha a via láctea nos ares,
Tão branca como a espuma dos mares,
Assim a punha para pisares, meu amor!
Para que enfom por esses caminhos,
Onde aves cantam e fremem ninhos,
Não se magoem os teus pezinhos, meu amor!
Fale, pois, o Poeta por si mesmo, por entre sorrisos de aurora e agonias de sol-pôr sofrendo e sonhando, derramando a sua alma em versos candentes ou brandos, na curva caprichosa da sua imaginação triunfal ou... doente. Ó pessimismo, a dúvida, o desalento, a dor são a nota dominante da sua exígua produção literária, que ficará contudo como um dos momentos felizes das Letras goesas, que floresceram sobretudo a partir dos fins do século XIX e hoje vão rumando por outros horizontes porventura mais amplos e pretensamente universais.
Como me encantou, na sua despretensão e singeleza, a terna dedicatória que Floriano Barreto traçou – além da que consta, em letra de forma, na terceira página das “Falenas” – logo no verso da primeira página num cursivo delicado e nervoso:
A meus queridos pais e irmãos
Que esta flor do meu espírito
- primeira flor tão modesta –
vá perfumar com empenho
num petulante dar de festa,
o muito amor que vos tenho!
... A primeira e última flor de tão fino, nobre e elevado espírito!
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