De súbito, porém há muito desejado, em preces silentes, em ladainhas desafinadas, as chuvas vieram. Pelos tectos de colmo dos gaddés de Diyar entrou água primeiro aos pingos, logo uma cascata, empapando o chão de terra batida, apodrecendo as enxergas, molhando a roupa no fio, enferrujando as malas de lata com seu conteúdo amarrotado – fato de ir ver a Deus aos Domingos e dias santificados, para dia de festa em casa do compadre e funeral da consogra.
Ao Motês, filho de Lorçú, irmão de Gospú, não podia acontecer coisa molher. Veio a chuva era ainda dia – quatro da tarde pelo relógio do escrivão Esvonta, três e meia hora local. E, sol posto, estava ele, como de costume, ponto assinado e copo na mão, dissertando para seus irmãos de alma presentes na taberna do Vicente, sobre o futuro risonho que há séculos lhe faz negaças. E sonharam todos eles, e beberam todos eles à saúde de seus sonhos, com uma ânsia dos diabos, com uma fúria maluca dos diabos de preservar em fenim de conserva de taberna do Vicente suas esperanças megalómanos de uma boa colheita, de filhos na universidade de Gaspar Dias, de uma casa de pedra e cimento de Carlota com anéis dos dedos embalando sua velhice numa cadeira de balanço de sissó envernizada pelo Roguvira, como as havia em casa dos Ranjeis.
O ano passado foi um ano como os não houve há muito. Obras de Deus, que tudo pode e faz que quer. E (segue na 4a pagina) contra a vontade de Deus que pode Motes, irmão de Gospú? Que pôde se pai Lorçú? O avô de Lorçú? Que poderá o filho de Motes? Nem Motês o sabe, que casamento e mortalha, como o presente dos pobres e futuro dos ricos no céu se arquitectam – no Céu como quem diz, que a miséria pegada em casa do Domingos, e a sorte negra da filha do Caitú só o diabo, só o diabo seria capaz de espalhar.
Que poderá o filho de Motes? Pensa Xambá que conhece a resposta. Pedaço de granito talhado à pressa, os pés chatos esparramados, seu pai nascera em Carambolim, a mãe nunca a conheceu, que o fiel mucadão como seu fora, mudar de mulheres era privilégio concedido pelos senhores da Casa Grande. Xambá fala. Mas quando fala que o oiçam. Como a ouviram não há muito quando pôs a calva à mostra ao regedor da freguesia, à tarde, diante de toda a gente. Se o prenderam por subversivo isso é o menos, que o prazer de dizer alto e bom som o que lhes ia na alma e na cabeça nem cabos Duartes nem sipaios Silvas foram capazes de desmanchar, nem a sopapo, nem a palmatoada.
Pois pensa Xambá que conhece a resposta. Leva-me pelos trilhos de sua vida a um punhado de casebres. Mulheres em desalinho calam a tabefe a fome de meninos que em vão buscam leite em tetas ressequidas. No lamaçal à frente dos casebres de addsó chafurdam búfalos ossudos e crianças de barriga inchada. “É o que poderá fazer o filho de Motês” diz-me Xambá, “engordar os búfalos, de inchar estas crianças. Quando o fizer, não será de lama e de milho. Será uma estrada, de brito, e asfalto, como a que passa pela casa dos Sás, como a que vai passar pela casa dos Costas. Então seremos outra gente. Os caminhos da vida se abrirão diante de nós e os da morte já não serão tantos à nossa volta.
Nos interiores dos casebres mães em desalinho continuam a sovar filhos meninos. E cá fora búfalos magrizelas e rapazes de barrigas inchadas lavam no lamaçal mágoas de sues destinos.
Ao Motês, filho de Lorçú, irmão de Gospú, não podia acontecer coisa molher. Veio a chuva era ainda dia – quatro da tarde pelo relógio do escrivão Esvonta, três e meia hora local. E, sol posto, estava ele, como de costume, ponto assinado e copo na mão, dissertando para seus irmãos de alma presentes na taberna do Vicente, sobre o futuro risonho que há séculos lhe faz negaças. E sonharam todos eles, e beberam todos eles à saúde de seus sonhos, com uma ânsia dos diabos, com uma fúria maluca dos diabos de preservar em fenim de conserva de taberna do Vicente suas esperanças megalómanos de uma boa colheita, de filhos na universidade de Gaspar Dias, de uma casa de pedra e cimento de Carlota com anéis dos dedos embalando sua velhice numa cadeira de balanço de sissó envernizada pelo Roguvira, como as havia em casa dos Ranjeis.
O ano passado foi um ano como os não houve há muito. Obras de Deus, que tudo pode e faz que quer. E (segue na 4a pagina) contra a vontade de Deus que pode Motes, irmão de Gospú? Que pôde se pai Lorçú? O avô de Lorçú? Que poderá o filho de Motes? Nem Motês o sabe, que casamento e mortalha, como o presente dos pobres e futuro dos ricos no céu se arquitectam – no Céu como quem diz, que a miséria pegada em casa do Domingos, e a sorte negra da filha do Caitú só o diabo, só o diabo seria capaz de espalhar.
Que poderá o filho de Motes? Pensa Xambá que conhece a resposta. Pedaço de granito talhado à pressa, os pés chatos esparramados, seu pai nascera em Carambolim, a mãe nunca a conheceu, que o fiel mucadão como seu fora, mudar de mulheres era privilégio concedido pelos senhores da Casa Grande. Xambá fala. Mas quando fala que o oiçam. Como a ouviram não há muito quando pôs a calva à mostra ao regedor da freguesia, à tarde, diante de toda a gente. Se o prenderam por subversivo isso é o menos, que o prazer de dizer alto e bom som o que lhes ia na alma e na cabeça nem cabos Duartes nem sipaios Silvas foram capazes de desmanchar, nem a sopapo, nem a palmatoada.
Pois pensa Xambá que conhece a resposta. Leva-me pelos trilhos de sua vida a um punhado de casebres. Mulheres em desalinho calam a tabefe a fome de meninos que em vão buscam leite em tetas ressequidas. No lamaçal à frente dos casebres de addsó chafurdam búfalos ossudos e crianças de barriga inchada. “É o que poderá fazer o filho de Motês” diz-me Xambá, “engordar os búfalos, de inchar estas crianças. Quando o fizer, não será de lama e de milho. Será uma estrada, de brito, e asfalto, como a que passa pela casa dos Sás, como a que vai passar pela casa dos Costas. Então seremos outra gente. Os caminhos da vida se abrirão diante de nós e os da morte já não serão tantos à nossa volta.
Nos interiores dos casebres mães em desalinho continuam a sovar filhos meninos. E cá fora búfalos magrizelas e rapazes de barrigas inchadas lavam no lamaçal mágoas de sues destinos.