Thursday, 29 August 2013

Mário Cabral e Sá - As Chuvas Vieram (1968)

De súbito, porém há muito desejado, em preces silentes, em ladainhas desafinadas, as chuvas vieram. Pelos tectos de colmo dos gaddés de Diyar entrou água primeiro aos pingos, logo uma cascata, empapando o chão de terra batida, apodrecendo as enxergas, molhando a roupa no fio, enferrujando as malas de lata com seu conteúdo amarrotado – fato de ir ver a Deus aos Domingos e dias santificados, para dia de festa em casa do compadre e funeral da consogra.

Ao Motês, filho de Lorçú, irmão de Gospú, não podia acontecer coisa molher. Veio a chuva era ainda dia – quatro da tarde pelo relógio do escrivão Esvonta, três e meia hora local. E, sol posto, estava ele, como de costume, ponto assinado e copo na mão, dissertando para seus irmãos de alma presentes na taberna do Vicente, sobre o futuro risonho que há séculos lhe faz negaças. E sonharam todos eles, e beberam todos eles à saúde de seus sonhos, com uma ânsia dos diabos, com uma fúria maluca dos diabos de preservar em fenim de conserva de taberna do Vicente suas esperanças megalómanos de uma boa colheita, de filhos na universidade de Gaspar Dias, de uma casa de pedra e cimento de Carlota com anéis dos dedos embalando sua velhice numa cadeira de balanço de sissó envernizada pelo Roguvira, como as havia em casa dos Ranjeis.

O ano passado foi um ano como os não houve há muito. Obras de Deus, que tudo pode e faz que quer. E (segue na 4a pagina) contra a vontade de Deus que pode Motes, irmão de Gospú? Que pôde se pai Lorçú? O avô de Lorçú? Que poderá o filho de Motes? Nem Motês o sabe, que casamento e mortalha, como o presente dos pobres e futuro dos ricos no céu se arquitectam – no Céu como quem diz, que a miséria pegada em casa do Domingos, e a sorte negra da filha do Caitú só o diabo, só o diabo seria capaz de espalhar.

Que poderá o filho de Motes? Pensa Xambá que conhece a resposta. Pedaço de granito talhado à pressa, os pés chatos esparramados, seu pai nascera em Carambolim, a mãe nunca a conheceu, que o fiel mucadão como seu fora, mudar de mulheres era privilégio concedido pelos senhores da Casa Grande. Xambá fala. Mas quando fala que o oiçam. Como a ouviram não há muito quando pôs a calva à mostra ao regedor da freguesia, à tarde, diante de toda a gente. Se o prenderam por subversivo isso é o menos, que o prazer de dizer alto e bom som o que lhes ia na alma e na cabeça nem cabos Duartes nem sipaios Silvas foram capazes de desmanchar, nem a sopapo, nem a palmatoada.

Pois pensa Xambá que conhece a resposta. Leva-me pelos trilhos de sua vida a um punhado de casebres. Mulheres em desalinho calam a tabefe a fome de meninos que em vão buscam leite em tetas ressequidas. No lamaçal à frente dos casebres de addsó chafurdam búfalos ossudos e crianças de barriga inchada. “É o que poderá fazer o filho de Motês” diz-me Xambá, “engordar os búfalos, de inchar estas crianças. Quando o fizer, não será de lama e de milho. Será uma estrada, de brito, e asfalto, como a que passa pela casa dos Sás, como a que vai passar pela casa dos Costas. Então seremos outra gente. Os caminhos da vida se abrirão diante de nós e os da morte já não serão tantos à nossa volta.

Nos interiores dos casebres mães em desalinho continuam a sovar filhos meninos. E cá fora búfalos magrizelas e rapazes de barrigas inchadas lavam no lamaçal mágoas de sues destinos.

Joseph Barros - A Poesia Indo-Portuguesa (1953)

Índia…! Berço da civilização ariana que deu ao mundo novas luzes e novas directrizes, novos horizontes e novos ambientes nos vários ramos do saber humano. A raça ariana, talvez a mais distinta raça do mundo em grande cabedal e legou a humanidade um riquíssimo património cultural que desafiando a voragem devoradora do tempo vai-se asseverando cada vez mais nos pergaminhos das letras e ciências.

A Índia legou ao mundo filósofos de renome internacional como Swami Vivekananda e Radakrishna, teólogos como Shenkaracharia, Mabavira e Jeina, legistas como Kantila, poetas como Kalidasa e Tagore, cientistas com Raman e Abbé Faria e ascetas como Ramdas, Pe. Agnelo e Pe. José Vaz.

É na pitoresca região da Índia Ocidental, conhecida nos compêndios de geografia de antanho como Gomantak, a actual Goa, que se vê na sua plena e áurea exuberância a realização concreta do sonho doirado do grande nobelista Tagore – a fusão entre o oriente e ocidente.

Goa, esse cobiçado Jardim de Malabar à beira-mar plantado é o elo entre o Oriente e Ocidente ou antes um ponto de fusão entre a cultura Ocidental e Oriental.

A Índia bafejou o sopro benéfico do Ociente. Ele deu-nos humanistas como Annie Besant e Ronald Ross, longuistas como Pe. Maffei, missionários como S. Francisco Xavier, poetas como Kipling e Tomás Ribeiro, o fundador do Instituto Vasco da Gama, guerreiros como Duarte Pacheco e estadistas como William Bentine e Afonso de Albuquerque.

Um visitante estrangeiro a quem tivemos a honra de entrevistar declarou-nos mais ou menos o seguinte: “you are a lucky people... In Goa we meet the East and the West – a supreme synthesis of both. Here we do not know which is East and which is West, only a harmonious blend.”

Mais provavelmente o erudito visitante e escritor referia-se ao celebre aforismo do seu ilustre conterrâneo o poeta inglês Rudyard Kipling que anos atrás por um fatal equivoco escrevera no seu Ballad of East and West:

“Oh East is East
And West is West
And never the twain
Shall meet.
Till Earth and Sky
Stand presently at
God’s great judgement seat”

À Goa cabe a glória de ser o ponto de encontro dessas duas culturas – a “Suprema Síntese”, a “harmoniosa fusão” – que o nosso entrevistado, o novelista Evelyn Waugh, a classificou como tal. Evidentemente como algures afirmou o Sr. Dr. Wolfango da Silva, somente os “homens de mesquinhos horizontes mal compreendem que não existe na Natureza o Oriente nem o Ocidente. Se partirmos do paralelo em que estamos, caminhando na sua direcção, cairemos sempre no Oriente ou no Ocidente. Deus fez este mundo redondo para nele nos encontrarmos e nos conhecermos. É por isso que vemos Goethe cantar as glórias do Xacuntalá e Max Müller meditar por entre os gelos da sua região os esplendores radiantes da Índia...

Ao contacto da civilização europeia esta grande península ressurge e não sei se voltará ao padrão antigo de esplendor e glória de uma raça sublime que ninguém sabe donde surgiu e desapareceu para sempre deixando-nos legados preciosos que constituem a admiração de todas as civilizações

Da fusão do Oriente com o Ocidente apareceu em Goa a cultura indo-portuguesa. A poesia luso-indiana a que Ethel Pope na sua obra “Índia in Portuguese Literature” se refere em termos de grande apreço, é o resultado benefíco do intercâmbio de duas culturas – a Oriental e a Ocidental.

Ethel Pope cita os nomes dos poetas goeses tais como Nascimento Mendonça, Paulino Dias, Mariano Gracias e outros como exemplos típicos desta fusão cultural e classifica as suas composições poéticas como “Indo-Portuguese” ou Luso-Indianas.

Damos neste artigo uma breve resenha de algumas das composições literárias dos nossos importantes poetas luso-indianos.

Parece-nos que Nascimento Mendonça é o “maior poeta” indo-português e Vatsalá é sem dúvida a sua melhor composição literária. Esse poema parece ter sido influenciado pelo drama Shakuntalá de Kalidasa. Vatsalá usa quase os mesmos enredos para apossar-se do Rixi como a Manika no caso de Vismamitra.

Vatsalá, a formosa bailadeira dos seus vinte anos, cheia de jóias e de guisos lança um olhar lânguido e voluptuoso a um Rixi semi-nu e louca de amor e exclama”

“Que delírio me abrasa
Os seios palpitantes?
Rompeste como um sol
Na noite que não finda
Ó lúbrica visão divina...
Mas que importa?...
Sou moça e sou formosa ainda.”

E aproximando-se do Rixi que parecia estar sentado sereno, gélido e imutável, ajoelha-se de repente soluçando:

“Eis-me enfim a teus pés,
Suave e peregrina...
De perfumes undi
Meu corpo de rainha
E venho por teu beijo ardente
Que alucina.
Eu sou como uma deusa,
A teu lado sozinha,
E lembra o meu olhar
A tímida chitela,
Sob os meus pés exulta
Ainda a erva daninha

Bem sei que tu és casto;
E não vês que sou bela?
No meu será
Como o rei triunfante
Que nunca teme a dar,
Porque pode esquecê-la.

Sou a torre-do-sonho,
Airosa e luciolante,
O retiro de amor
Das almas doridas,
Engrinalda-se ao ver-me
A alma soluçante.

Mas só por ti deixei,
Como as ranins vencidas,
Meu leito de rubis
E de astros cravejado.

A airosa e luciolante Vatsalá ergue-se do chão como a flor de champak, volteia como o moruoni e diz:

Abre o teu coração
Como um cofre inviolado,
Onde nunca fulgiu
O luar das quimeras,
Puro e sereno
Como as virgens sem pecado.

Ai! Deixa-me cingir-te
Tal como as verdes heras
O tronco da palmeira,
A tua carne dura,
Eu sou a graça,
O viço, a luz das primaveras.

O enredo recrudesce. Vatsalá apossa-se do Rixi; mas a sua felicidade tem pouca dura. A vítima é arrebatada pela Morte. Vatsalá segue o caminho de Sati e une-se ao Rixi na pira fúnebre.

Mais um outro poema cheio de graça e beleza é o Hino a Prithivi onde o poeta canta um hino enternecido a Terra Bendita, berço de Visvacarma, Budha e Dante:

Mas o poeta não esquece que esse Prithivi, que ele tanto ama, é ao mesmo tempo um Calvário e um Paraíso, um berço de fadas amorosas e ao mesmo tempo um covil de tigres e hienas:

Terra – Calvário e Paraíso,
Lodo que a luz volve em arminho
Flor que beijo e lama que piso,
Terra, sepulcro e berço.
Terra, bendita Mãe das Rosas,
Do rubro cacto e as açucenas,
Berço de fadas amorosas
Covil de tigres e hienas!

Se em tuas urzes, venenosa,
Silva a Cobra do Mal e a Dor,
Também a Flor pura e formosa
Nasce em teu seio criador.

O poeta termina o hino a Prithivi num tom de optimismo. O seu coração embora dilacerado e dorido sente os lampejos da Eternidade:

Sejas bendita eternamente
Tu que és Calvário-Paraíso
Filha do sol aurifulgente
Flor que beijo, lama que piso.

Um outro poeta indo-português de destaque é Mariano Gracias que em verdes anos revelara os seus dons poéticos. Abalou para a Metrópole aos 24 anos, onde passou bom tempo da sua vida. Algumas das suas mais importantes publicações são: Alto Mar, Agonia, Missal de um Crente, Regresso ao Lar e Poentes.

Quase em todos os seus trabalhos, Mariano Gracias procurou interpretar a vida segundo as normas e formas da filosofia indiana. A sua poesia demonstra larga erudição e um profundo conchecimento da cosmogonia indiana. Daí o Génio da Raça:

Foi a Índia de luz berço lendário
Da civilização. Extraordinário
Pais de sonho e lenda! Um povo ideal,
De imenso génio e altíssima moral.

Terra de sábios, de imortais postas,
Filósofos, videntes e os ascetas,
Walmiki, Somadeva, Kalidasa
Budha, Manu, Panini e Wyasse.

E foi este clarão grande e profundo
Onde de oiro rolando sobre o mundo
Que alagou com a sua claridade
As vindouras nações – A Humanidade.

Durante a sua estadia em Coimbra o nosso poeta levou uma vida muito agitada. Deixou gravado no Penedo da Saudade em Coimbra essas maviosas quadras:

Ó Noitadas de Coimbra
Ó Pálidas Madrugadas,
No meu peito ainda timbra
O choro das guitarradas
Coimbra, tenho saudade
Do choupal erguido além
Do Penedo da Saudade
Saudades tenho também.

Nas “Nossas Almas”, o poeta revela a sua firme e inabalável convicção na existência duma vida futura. Não discute mas crê porque a razão é estreita e o mortal não pode desvendar os mistérios do Além:

Ninguém sabe explicar das almas o destino,
Ninguém pode seguir o seu giro fatal,
A razão é estreita e o olhar pequenino,
O mortal não desvenda o enigma do Imortal.

Inconsciente sempre em louco desatino,
Ah! Quanta alma percorre uma longa espiral.
E quanta já desceu com consciência e tino,
As fulvas espirais concêntricas do Mal.
E as que subiram já...
E as que sobem agora...
A que azul, a que céu,
A que mundo, a que aurora
Elas foram parar, elas irão poder.

Errantes sempre em
Seus longos giros fatais,
Nossas almas irmãs,
Nossas almas iguais,
Noutra vida melhor
Ainda se hão-de encontrar.

O outro poeta que também não podemos deixar de mencionar é Paulino Dias cuja trajectória poética deixou rastos luminosos na poesia indo-portuguesa. Dotado dum espírito culto como Tennyson e cheio de entusiamso como Byron a sua poesia reveste-se de esplendor sensual e místico. Na Prece a Vittala o poeta exprime a sua inquietação:

Vi de longe a tua forma
Vi de longe... e que foi na minha alma
Calma...
Vem por mim correndo Vittala.

Fiz a ablução sagrada em Bivari
Vesti a faixa rala, e reverente,
Crente...
Eu vi o teu devoto Pundolica.
Fui com ele.. Vittala... Santifica
A minha eterna devoção por ti.

Entrei no teu pagode, ahi... ahi...
Onde está tua imagem pura... linda...
Ainda...
Não estou consolada, satisfeita,
Vem correndo Vittala...
No meu peito vasa uma doce
Adoração por ti.
Chegou cançada e triste a Pandarpur.
Que formas que eu passei por todas eras
Feras...
Tu dá-me a redenção, dá-me o descanso;
Nos Yugas e nos mundos eu me canso
E não encontro nada além de ti.
Vem para mim oh caçador...
Acode, salva-me Vittala
Eu deixo só minha esperança em ti.

A prece a Vittala termina em uma nota de optimismo que é um bálsamo para as chagas recônditas da alma. O poeta nutre a esperança duma vida melhor e crê no raiar duma era nova.

É bem vasta a galeria dos poetas indo-portugueses que enriqueceram o nosso património cultural com os seus inúmeros e multifacetados trabalhos poéticos.

Não nos é possível mencionar neste artigo todos os poetas indo-portugueses que moldando duma maneira encantadora e maravilhosa a bela língua do Camões legaram ao mundo de letras a poesia indo-portuguesa.

Laxmanrao Sardessai - Os Nossos Rios (1966)

Deixa-me cantar, amigo, esses rios,
Vastos e profundos,
Como correntes de amor
Que saem de corações maternos,
Rios que encerram o peixe,
Alimento de todos os dias,
Rios abundantes e generosos,
Quais mãos divinas,
Embarcações ligeiras,
Dançam no cristal do seu seio,
Quais brinquedos queridos
Dos nossos netinhos.
Rios que nos transportam
Ao mundo de sonhos e ilusões
E dão às suas margens
O frescor eterno que alimenta
As nossas mimosas palmeiras.
Deixa-me cantar, amigo, esses rios
Onde na infância nos banhámos
E, sentados nas canoas, cantámos...
Lançando redes e anzóis.
Rios que correm
Nos nossos corações e nossas veias.
Rios profundos e vastos,
Sempre bordados de plantas graciosas.
Deixa-me cantar esses rios
Que nos transportam
Brisas de amor e mistério
E que embalam no seu seio,
Transparente e belo
Astros distantes dos céus.
Amigo, deixa-me cantar esses rios
Cuja alma sinto em mim
Crescer... Crescer...!

Laxmanrao Sardessai - Sou um Mistério (1966)

Sou um mistério
Porque ainda não me conheço,
O que sou, não sei, nem os outros
Às vezes, tenho rasgos de bondade
Às vezes, sou desumano.
Balouço entre os extremos...
Há dias em que, qual criança,
Ando todo optimista.
Vejo, em minha vida, só a alegria
Inebriante de sensações novas.
Mas há dias em que me cerca
A procela de desespero
Que não deixa transparecer nos homens
Indícios leves de bondade
Vejo o mundo revolto de vaidades
E paixões vis e ódios mesquinhos.

Sunday, 11 August 2013

Walfrido Antão - Páginas Íntimas (de um diário por escrever): Meu claustro de Angústia ou Vida a partir da Morte (1981)

À Memória do Meu Irmão Celso Antão

Ao longo de Creta (1965) – Grécia

“Meditar sobre a Vida – a Vida em relação à Morte, é talvez nada mais do que intensificar a sua própria busca.

Mas a Morte, tal como se manifesta em tudo quanto está alem do controle do homem, acima de tudo o Irremediável, o sentido de que você nunca sabe o que aquilo é. O homem torna-se objecto de uma Busca e não de Revelação. Assim o Homem que irão encontrar neste Livro de Memória é o Homem desperto às Perguntas que a Morte levanta sob o sentido do Mundo.

André Malraux (Anti-Memoires)

“Mon ame vers d’affreux naufrages appareille”

Claudel

“Rage, Rage against the dying of the Light”

Dylan Thomas (da Idade do Ultraje)

“A Morte é a Opção final, o encontro com a interioridade, a realização pessoal em Cristo como Caminho, Verdade e única vida”

de Teólogos moderados editados por Michael J Taylor.

Não gostaria publicar estas páginas intimas mas eu e o leitor do “O Heraldo” conhecemo-nos mutuamente há já vinte anos e na Autenticidade e Sinceridade do depoimento pessoal crio páginas de Intimidade. Foi aos 25 de de Julho de 1951 que morreu o meu Pai e o leitor dirá “quê tenho a ver com isso?” mas nada no mundo acontece, especialmente no domínio da vida e Literatura, que não tenha um sentido, um simbolismo de Prece. Eu vi na morte do meu Pai o primeiro desengano da Permanência, a luz vibrante do coqueiral esmorecendo na sombra do velório, a primeira pergunta, a primeira Busca que as velas, o abraço apertado, o dobre a finados, até mesmo as lágrimas, não podiam cumprir, satisfazer. Magos, dor, Desengano da separação tudo me cobria na negra noite funeral, mas a Busca, essa havia começado. Sem a Busca de uma Ideia que se me não definia por ser confusa, seria a Busca de um distracção com um curso, um Diploma, um emprego capital e Exploração da mais valia, segurança social para anos meus ou a Busca de mim próprio “esse esperança em busca de vida”, como me declamava uma noite o grande poeta negro de mães e filhos negros Agostinho Neto. Uma noite em Lisboa, Costa Dias deu-me a ler o Manifesto de Marx – era aí que estava a ideia, a Utopia, o antídoto do Desengano, da Magoa e da Dor. Passaram anos, a longa noite de opressão e da revolta e em Alfama Berta Cardoso e Tristão da Silva cantavam na “Nau Catarineta” a opção da Liberdade. Com Sartre e Albert Camus não havia que esperar muito – o mundo e a linguagem eram Absurdos. Camus morrendo absurdamente num desastre de automóvel havia deixado incompleto o itinerário da Morte. A pergunta continuava.

Voltei à Índia, o espaço aberto da Competição “homem lobo do homem”, o quebrar de amarras de um sentir e de um viver plácido sim, mas digno e humano, a vida aos baldões da Sorte do “cais de pedra” de todas as solicitações, apelos e convites – mas a Morte, vista, vivida, sofrida até o desespero sem lágrimas, cântico lúgubre do Fim, esssa não esperava me colhesse a Afeição mais cara que a Vida me havia oferecido. Porque, meu Deus, tão cedo?

Ao cair da tarde de 31 de Janeiro de 81, da minha janela virada para o mar, janela que mais não uso porque nem o Mar nem a longa duna de AREIA tem hoje qualquer apelo, senti o carro avançar como um ladrão na noite escura. A mangueira sem flor sob a cacimba era como um último baluarte de gerações que ao longo de séculos haviam criado filhos missionários devotos da Imaculada Conceição, juristas e jornalistas, médicos e homens de lavoura – HOMENS COM RAÍZES. No aparelho, a cassete “não me pergunteis o Nome ou a Hora”, o carro avança, uma duas pancadas leves, um JOVEM e mais logo um homem de meia idade. “Notícias? Sim – não mais existe”.

Sob a fotografia, a Marte fala da Vida – não choro porque não posso.

Morreu algo dentro de mim de novo, após 30 anos. Em 1951, a Busca, em 1981, o encontro com Higher Power, um Deus que não sei definir, mas viveu comigo na noite integral a queda, a solidão a vida de um irmão “que podia ser e não foi” (José Régio).

Passaram já quatro meses e não voltei à minha janela virada para o mar. Talvez não voltarei mais. Moças guapas em saias de cambraia desnudando a coxa em manhas de Pesca ainda vão às dunas de Areia até o mar, tractores levam AREIA populares pedem-me que volte à causa da Justiça da OPRESSÃO dos MINING LEASES não registados e não completos. MAS a vida matou em mim essa esperança de Permanência. Situada aquém do coval enxuto de lágrimas e de flores, eu vejo da janela estreita do cemitério a ilusão desfeita, a vida interrompida, o nome riscado do rol dos vivos, o pó primevo de retorno às raízes da aldeia.

Sou homem, sinto como um humano, mas quando penso em Cristo eu vejo a única Vida de Luz e de Glória. Quem morre com Cristo, quem vive todos os dias a obrigatoriedade de um ofício ou de querer bem aos outros, esse não morre – vive uma nova dimensão de energia transformada “meu Pai tem muitas mansões” (Cristo). O Absurdo ficou em mim, fui e a perder, mas em Cristo a Vida renovou-se, tornou-se parte da Resurreição, “não choreis por ele, mas por quem fica, eles tem mais precisão” (adaptado de Manuel Bandeira, Brasil).

As chuvas voltaram como a primeira bênção de um Deus Natureza a um povo maltratante por políticos que mais pensam na cadeira do PODER do que em fornecer fertilizantes e sementes aos agricultores em devido tempo, a vida em busca de satisfação das necessidades mais básicas. Vida e energia, uma oferenda de Deus retribuída em 30 anos de trabalho e devoção à Família e Vida intuída mas não realizada no sentido essencial. Mas a Morte é final. Volto a ler Rig VEDA – “And I am Death...”

“I am Death that snatches all. And the source of all that shall be born; And the silence of things secret”

A vida vivida, sofrida até exaustão face a Morte. Recuso o Absurdo, opto, escolho, digo Não logo existo. Aceito a vontade de Deus e creio que há muitas mansões na casa do senhor. Talvez amanhã, da janela do Cemitério da aldeia, a vida volte a renascer das cinzas. Talvez amanhã eu conheça a vontado do meu Higher Power.

Walfrido Antão - Diário de um Poeta em Férias: O Sonho e a Nausea (1968)

Esta noite choveu granizo na aldeia. Será? Não. Deve ser cacimba mas a aldeia traz um ar levado, fresco, loução como o de certa mulher ainda inocente. Lembra-me certas sequencias do filme “La notti bianchi” (Noites brancas) de Dino de Laurentes. “Noites Brancas” era se não me engano o título dum romance de Dostoiewsky que Dino de Laurentis usou para fazer ciente ao mundo o talento e a Arte da atriz Maria Scholl.

Leio um poema de Jagadish intitulado “Ek Git Morta”. Há música, sensibilidade, intuição artística no seu verso. “Kavi” é poeta em Concanim. Será Jagadish poeta? Nem por sombras pensar o contrário. O caso do “Kavi” ou poeta lembra-me uma noite na Casa de Fados em Alfama. Berta Cardoso cantava “Aquele amor foi à Índia”. Tristão da Silva apresenta-me um escolar de Coimbra – Pinheiro ou Torres, não me lembra já. Alto, espadúado, “machakaz” como se dizia lá. Grosso como diria uma certa Nur Jehan que eu conheçø. A poesia e o físico. E acrescentava Tristão da Silva que ele era poeta. E ele sabia o que dizia porque era Artista também. Ser artista é ter coração, sangue, alma, nervos, sensibilidade e um grande amor ao homem condenado à Morte.

A Morte, essa sim é a única certeza existencial. Daí o absurdo, o desespero, a angústia e o “l’homme revolté” de que fala Albert Camus. A escolha vem depois. O “choisir” de que difere um Sartre. Como “Camus” diz ao abrir tragicamente “Le Mythe de Sysiphe” – “o único problema verdadeiramente filosófico é o do suicídio”. Como dizia uma vez Camus no Café Deux Magots, se o homem tem de morrer após uma vida inteira de trabalho, de estudo de cultura, então já não existem valores. Vale vazar até à náusea a existência condenada ao não valor ou seja o silêncio da “funérea Beatriz de mão gelada”. E a Esperança de que falam os neo-existencialista com os “Beatles” ou os “Hippies” que falam da meditação transcendental da Índia? Aquela Corrente, aquela Voz? Qual é o significado do “Thee” de que rezam os escritos de Swami Vivekananda? E Cristo esse Herói do Amor que perguntado se era Deus respondeu “tu o disseste”.

Está uma madrugada nevoenta agora. Mulheres vão a caminho do verzedo. Uma Quitéria, uma Rosa, uma Letícia, quem sabe: a pimenta cujo cheiro atraía caravelas do século quinhentista como diria Oliveira Martins, o arroz provisão e celeiro da fome de um ano, uma melancia, vegetais quem sabe.

Sim, tenho de ler o que Amadeu escreve sobre o arroz. O arroz, suor e sangue de todo um povo que os açambarcadores resolve em notas e ofícios ou em termos de agiotagem e lucros. Para resolver os problemas do povo seria bom que os grão-senhores descessem de suas majestades gabinetes até o povo para ver o sacrifício dessas Quitérias anónimas que sustentam a Cidade e os mercados.

Sim, tenho de deixar este diário. Aquela personagem “Sunita” pede-me que componha a sua história ou seu drama no meu conto: um amor proibido, a casta, a diferença de religião, um matrimónio arranjado, a África, a solidão, a ternura esfarrapada. Mas o jornal para quem escreve é como se fosse um primeiro amor que se não esquece. Como diz o Teles quando a gente entre para a Rádio é a mesma coisa.

O burguês acorda agora. Sorri para a mulher. Há qualquer coisa de glutão no seu olhar. O toucinho se calhar me lembra a música dos versos de Jagadish “Ek Git Morta”. Kavi, qual é seu fado?

Rui de Erasmo Jaques - Consolidando Laços Culturais (1977)

Mão amiga trouxe-me “O Heraldo” com as admiráveis linhas que me dedicas. Na verdade foi com emoção e alegria que li e reli o teu conceito sobre interdependências de duas Pátrias. Emoção por saber de quem vinha, de meu dilecto amigo Walfrido Antão, filho do saudoso e nunca esquecido Dr. João Camilo Antão. Como ele estará satisfeito por saber que os filhos prosseguem com honra e orgulho a tradição da família!

Alegria por saber que o teu ideal é acompanhado por Alguém em Portugal. Refiro-me à Sua Excelência o Senhor Presidente da República, General António Ramalho Eanes. Vivendo nesta querida Goa nos anos de 58 e conhecendo-a bem, o então Tenente Ramalho Eanes, ouvi da sua boca, dias antes de minha saída, num jantar de amigos, quanto o aprazia ver um intercambio total entre Índia e Portugal, mas principalmente, entre Goa e Portugal – dada as grandes afinidades que existem entre os dois Povos. Tu, o Dr José Rangel, que foi companheiro no Liceu da minha saudosa Vanda, o Dr. Carmo de Azevedo, o Eng. Francisco Pinto de Abreu, a Selma Vieira Velho – minha afilhada – como tantos outros que, tentam tornar mais sólidos os elos que ligam Índia e Portugal.

Nós, pobres homens, que procuramos transmitir aos nossos filhos a cultura brilhante de uma civilização que outrora florescia em todo o mundo – opulenta, fecunda a cintilante – e que hoje renasce das suas próprias cinzas com as frágeis criaturas que vejo pulular por todas essas escolas nas aldeias, vilas e cidades de Goa! Se as crianças são o esteio de uma Nação, não há dúvida que Goa, digo que a Índia tem um futuro brilhante diante de si... Mas há necessidade de transmitir a essa mocidade os gloriosos feitos dos seus antepassados, para que vejam neles, o orgulho de um povo com personalidade própria.

É bom conhecido de todos que o povo indiano possui antiquíssimos textos filosóficos de que S. Tomás de Aquino não teria dúvidas em se servir se esses textos tivessem sido conhecidos na Europa da Idade Média. A única finalidade de todos essas obras filosóficas que começaram a aparecer em princípios do primeiro milénio antes do Cristo é atingir o conhecimento da verdade suprema – Goana. É esta, naturalmente, a finalidade de toda a filosofia – o saber. Existe, porém, uma grande diferença entre o sistema indiano e o sistema ocidental. No Ocidente quando estudamos filosofia, principiamos pelo raciocínio, isto é, a lógica; passamos depois para o estudo do mundo visível (cosmologia) e o mundo ultravísivel (metafísico); continuando pelo estudo da alma humana (psicologia) das suas relações morais (ética)l; e fundamos o curso filosófico com o estudo de Deus (teologia). O método indiano é totalmente diferente. O estudo começa com Deus, continua com Deus e acaba com Deus. Deus é tudo. O resto não tem nenhum interesse para o filósofo indiano. Porquê? Porque Deus é o único ser que verdadeiramente existe. EKAMEVA ADVYTA “não há nada depois de Deus”.

Ora, meu caro Walfrido, há necessidade cada vez mais de o Ocidente – que caminha, como bem dizes, para um existencialismo atroz e devastador – beber nesta Índia um pouco de humanismo, onde todo o povo, desde os tempos mais longínquos, se acha imbuído de que Deus se espelha na alma humana. E consequência lógica dessa ideia é o dever que homem tem de imitar Deus. Quando no “Gita” Krishna explica a Arjuna como se acha completamente desligado de todas as coisas do mundo, diz-lhe (IX, 9: VI, 46), isto é: desliga-te tu também de tudo, e faz-te como eu.” Também Cristo, por palavras idênticas, exprimiu anos depois, o mesmo conceito. Mas esquecendo, o Ocidente dorme, e a Índia, esta Índia, renasce para futuro grandioso da sua antiquíssima civilização e com a preocupação que todo o indiano tem de conhecer Deus, inspirou aquela preciosa oração que desde século VI antes de Cristo em que se escreveram os Upanishadas, milhares de indianos repetem diariamente com verdadeiro fervor:

Do não ser ao ser guiai-me;

Das trevas à luz guiai-me;

Dar morteà imortalidade, guiai-me

(Bradaranya Ka Upsnishad 1-3-28)

Há necessidade, meu caro Walfrido, que as duas Pátrias se unam em elos cada vez mais fortes para que o Homem não se perca:

No mar tanta Tormenta e tanto dano

Tantas vezes a morte apercibida;

Na terra tanta guerra, tanto engano,

Tanta necessidade aborrecida!

Onde pode acolher-se um fraco humano,

Onde será segura a vida curta,

Que não se arme e se indigna o Céu

Contra um bicho da terra tão pequeno.

Camões, Canto I, est. 606

Ao terminar, concluo com um abraço evocando a saudação que o poeta do Ramaiana pôs na boca do guerreiro para sua mulher, saudação que dirijo a todos os amigos de Goa: a bandeira que me acompanha segue comigo para a frente, mas adejando ao vento para trás é como o meu coração que por ti palpita.