No firmamento literário goês, entre escritores de língua portuguesa, António Floriano de Noronha brilha como astro de primeira grandeza. Tendo revelado bem cedo a sua vocação de escritor e tendo feito a sua formação literária em Portugal – em Lisboa completou o curso do Liceu e em Coimbra se formou em Direito -, numa época em que nas letras lusitanas pontificavam figuras excelsas como Eça de Queiroz, Ramalho Ortigão, Guerra Junqueiro, tendo tido por condiscípulos na Universidade Eugénio de Castro, Teixeira de Pascoais, Afonso Lopes Vieira, Júlio de Vilhena, Manuel da Silva Gaio e tantos outros, António de Noronha foi o mais “europeu” dos escritores “indo-portugueses” e, como disse alguém, “estilista cintilante, marcaria, com brilho, onde quer que se cultive a língua portuguesa”. Pela elegância da frase, pela leveza do estilo, pela ironia fina e subtil foi, de facto, entre nós, o melhor reflexo do espírito oceano.
De uma inteligência invulgar, dotado de grandes faculdades de trabalho, possuidor de vasta e sólida cultura, escritor aprimorado, conferencista distinto, polemista temível, conversador cintilante, não admira que António de Noronha marcasse o meio académico de Coimbra no seu tempo e que, mesmo quatro décadas mais tarde, quando por lá andei, ainda conservasse viva a tradição do “erudito Noronha índio” de quem Pad Zé fala em seu “Livro do dr. Assis”, um dos ursos do seu curso e um dos promotores do centenário da sebenta d’”O Senhor Noronha, vulgo o Florimundo que é encarregado das questões do fundo”, fundador de uma sociedade destinada a “levantar o nível da Academia”, cantando nuns versos facetos que Francisco Ataíde Machado de Faria e Maia, seu companheiro e amigo, deixou arquivados no seu livrinho de memórias: “A Minha Velha Pasta: Tempos de Coimbra e Gente do meu tempo”’ do Presidente de uma “Repúbica” de caloiros que ficou célebre pelas partidas que se faziam aos “novatos”; enfim do autor, em colaboração com António Augusto de Cerqueira, seu condiscípulo, cognominado o “Jurisconsulta”, do interessante opúsculo “A Reforma da Universidade e a Faculdade de Direito”, publicado em Coimbra por ocasião de um Decreto reformador do ensino universitário e reeditado em Goa em 1923.
Como diz Faria e Maia, este folheto é um “vivo libelo, um quadro, cheio de verdade, da organização anacrónica do ensino universitário” e traduz “o espírito de reacção que se formara na Academia contra os processos seguidos naquele ensino e o desprestígio em que tinha caído a ciência pedagógica daquela Universidade”, e em que os autores, depois de “traçar o quadro, flagrante de verdade” da forma por que se fazia o ensino universitário no seu tempo”, passam a analisar “o Decreto reformador, provando sua inanidade” – uma pequena mas bela obra em que, é ainda Faria e Maia que o diz, “a prosa fácil, cheia de fina ironia de António de Noronha se alia ao espírito arguto, perspicaz de António de Cerqueira, “obra, como o mesmo autor frisa, “não dois cábulas que quisessem justificar a sua falta de estudo com as deficiências do ensino e dos méritos da Faculdade de Direito, mas, pelo contrário, de dois estudantes distintos, dotados de excepcionais faculdades de trabalho, ambos procurando adquirir o máximo de conhecimentos jurídicos, dois dos cérebros melhor organizados do seu curso, que depois marcaram como homens de invulgar mérito na sua profissão.”
António de Noronha foi ainda estudante em Coimbra, correspondente de um diário de Goa e nessa qualidade escreveu primeiro as suas “Cartas de Portugal” e depois as “Crónicas de Portugal”, em que se sente já um pálido reflexo do estilo de Eça de Queiroz nos seus “Bilhetes de Paris” e “Cartas de Inglaterra”. Desse tempo é a “Tragédia de Lisboa” que seu filho Mário de Noronha piedosamente deu à estampa em 1946, enfeixando em volume nas suas crónicas sobre dois crime passionais do tempo – um nas mais altas camadas sociais e o outro na mais ínfimas, como diz o próprio António de Noronha; um moço elegante, Duarte Pinto Coelho, que mata a tiro o amante da sua esposa, Alberto O’Neil tentando fazer outro tanto à adultera, e um trabalhador de Beja que trucida a golpes de machado a mulher, arremessando-se em seguida por baixo de um comboio em marcha, bem como os artigos de Roque Correia Afonso acoimando o moço cronista de “apologista de uma vida ignóbil e sensual”. É a primeira polémica de António de Noronha, em que já se adivinha o polemista temível brandindo magistralmente o florete da ironia, mas sempre de luva calçada, sem ferir, nem ofender o adversário.
Jurista e Historiador
Magistrado distinto, dotado de rica bagagem jurídica, compreende-se que grande parte dos escritos de António de Noronha seja de natureza forense. O “Palácio da Loucura”, em que conta a história de uma acção ordinária de simulação de contrato em que é autora a Fazenda e são réus o Inspector da mesma, Conselheiro Pedro Maria Teles de Menezes e Visnu Sinai Dempó e mulher, o “Código do Registo Civil” aprovado pelo Decreto de 9 de Novembro de 1912 e por ele anotado, o “Regimento da Justiça,” os Relatórios dos Serviços da Procuradoria da República e do Ministério Público, a “Legislação da Guerra” coordenada e sistematizada – eis alguns desses trabalhos em que se firma a sua reputação de magistrado sabedor e íntegro, durante uma fulgurante carreira ascensional, que vai de Juiz Municipal de Mormugão a Presidente da Relação de Goa, promovido por distinção, caso raro, se não único, na história da magistratura colonial. É, porém, sobretudo nos seis grossos volumes dos “Pareceres”, emitidos como Procurador da República, que se patenteia na sua justa medida a vastidão dos seus conhecimento jurídicos, o vigor da sua argumentação, o cuidado meticuloso que punha no estudo dos mais variados problemas submetidos à sua apreciação e a sua inconcussa honestidade profissional. Foi essa obra monumental que levou o juiz do High Court de Calcutta, D.N. Mittel, a dizer, por ocasião do seu falecimento, que António de Noronha foi para Goa o que sir Rash Behari Ghose e Sir Ashutosh Mukherjee foram para Bengala.
Nos “Hindus de Goa e a República Portuguesa”, a memória escrita a convite do Governo Português para um Congresso no Brasil, revela-se uma outra faceta do seu talento multifacetado: o historiador. Se Alexandre Herculano lamentou que Júlio de Vilhena, depois de acabar de compor a sua obra “Raças Históricas da Península Ibérica e a sua Influência no Direito Português”, regressasse aos estudos jurídicos, pondo de parte as investigações históricas, é possível que o dr. Surendranath Sen, que chegou a conhecer pessoalmente António de Noronha, também lastimasse que o labor quotidiano do magistrado lhe não deixasse tempo de sobra para estudos de carácter histórico, como essa excelente memória, dedicada ao grande paladino António José de Almeida, de que Câmara Reis, numa crítica publicada na Seara Nova deixou escrito:
“É um interessante esboço histórico, documentado, em linguagem fluente, cheio de tolerância que os espíritos altos não recusam às crenças mais diversas, aos costumes em que se perpetuam as tradições dos povos e das raças. Contar as perseguições e os mistérios dos indus equivale a rememorar numa colónia distante, os reflexos das vicissitudes politicas e sociais da metrópole. As alternativas de intolerância e cooperação, as violências dos prelados, a cobiça da população e do físico, o fanatismo ateado na ilusão contraproducente do extermínio, os sobressaltos dos pobres “gentios” ao talante dos Vice-Reis, dos Arcebispos e dos “Pais dos Cristãos”, as passageiras medidas do poder civil a seu favor, as devassas, as violências e tormentos da Inquisição, por vezes acorbertando concupiscências infames de frades e sacerdotes; a libertação concedida por Pombal; as lutas e intrigas mansas no período da monarquia constitucional – fazem-nos compreender como a República foi, paradoxalmente, para esses povos tão afeitos aos seus velhíssimos usos e costumes, o advento duma liberdade plena, duma vida politica sem entraves nem limitações injustas.”
Polemista e estilista
Mas se a reputação de jurista repousa sobretudo nos Pareceres e os seus dotes de investigador probo e consciencioso – é digno de nota o facto de António de Noronha, a despeito de ser funcionário público, nada ter omitido, levado pelo receio de incorrer no desagrado dos governantes, expondo-se mesmo ao risco de ser apodado, como foi, de “imimigo de Portugal” por causa desse trabalho – nos são nos “Indus de Goa e a República Portuguesa”, é nas compilações de “À Margem da Critica” e “Em Boa Paz” que se aprecia à justa o polemista consumado, que já se prenunciara na controvérsia à volta da “Tragédia de Lisboa”.
A primeira é uma polémica com Bragança Pereira e Cristóvão Pinto a propósito dos julgamentos de dois ógãos da imprensa – “A Opinião Hindu” e “O Crente” – e a segunda com o ao tempo Professor do Seminário de Rachol, mais tarde Deão do Cabido Patriarcal, Rev. João Francisco Lobo. Sendo António de Noronha leal e galhardo para com os seus adversários, cumpre notar, contudo, como respeitando embora a inteligência e o saber, tinha o mais soberano desdém pela petulância e pelo eruditismo balofo: de aí o contraste do modo como trata Cristóvão ou Bragança Pereira, fazendo justiça à “magnífica inteligência, larga cultura e belos predicados literários” do primeiro ou ao “homem culto e inteligente” no segundo, ao passo que põe impiedosamente a ridículo a “pasmosa vacuidade, feita de frases campanudas e palavras rebuscadas” do Deão Lobo que “nos lembram, diz, os divertidos discursos do Libório da “Queda dum Anjo”, de Camilo Castelo Branco, e cujos “artigos de redacção hesitante, difícil e arrevesada lhe parecem escritos de qualquer capelão sertanejo a experimentar a sua pena nas horas vagas do seu pacífico ministério”, rindo-se a bom rir, das “tinturas teológicas apanhadas na sua preparação sacerdotal, juntamente com o conhecido rosário de descomposturas nos racionalistas, pedreiros-livres e ateus.”
É, porém, a meu ver, nos “Nossos Interiores” – conferência feita no Instituto Vasco da Gama, de que foi o grande animador, depois da sua reconstituição por ocasião do centenário do descobridor do caminho marítimo para a Índia, conferência mais tarde publicada em separata com belas ilustrações – que melhor que em todas as suas outras obras se admira em António de Noronha o estilista esmerado, o esteta incomparável, o artista nato, enamorado do belo e dotado de fino espírito crítico, que produziu uma pequenina obra-prima literária, de ática beleza, em que se diria ter se aliado o agudo espírito critico de Ramalho à graça subtil, quase feminina de Eça.
Mário de Noronha, seu filho, dizem-me, contava fazer mais compilações depois da “Tragédia de Lisboa” no propósito de coligir toda a sua vasta obra esparsa em vários jornais em que, além de artigos doutrinários ou de critica sobre os mais variados assuntos, merecem também menção, e menção muito especial, as suas inimitáveis “Epístolas de Policarpo”, em que se diria perpassar o sopro de uma fina ironia, digna do Eça no epistolário de Fradique Mendes. Foi pena que esta piedosa tarefa do seu filho ficasse incompleta e a posteridade se visse privada de novos documentos a atestar, como diz Faria de Maia, “a grande maleabilidade das suas aptidões, a sua vasta erudição, os seus conhecimentos históricos, os seus dotes de polemista, a graça da sua ironia, o seu temperamento de artista, de esteta”
De uma inteligência invulgar, dotado de grandes faculdades de trabalho, possuidor de vasta e sólida cultura, escritor aprimorado, conferencista distinto, polemista temível, conversador cintilante, não admira que António de Noronha marcasse o meio académico de Coimbra no seu tempo e que, mesmo quatro décadas mais tarde, quando por lá andei, ainda conservasse viva a tradição do “erudito Noronha índio” de quem Pad Zé fala em seu “Livro do dr. Assis”, um dos ursos do seu curso e um dos promotores do centenário da sebenta d’”O Senhor Noronha, vulgo o Florimundo que é encarregado das questões do fundo”, fundador de uma sociedade destinada a “levantar o nível da Academia”, cantando nuns versos facetos que Francisco Ataíde Machado de Faria e Maia, seu companheiro e amigo, deixou arquivados no seu livrinho de memórias: “A Minha Velha Pasta: Tempos de Coimbra e Gente do meu tempo”’ do Presidente de uma “Repúbica” de caloiros que ficou célebre pelas partidas que se faziam aos “novatos”; enfim do autor, em colaboração com António Augusto de Cerqueira, seu condiscípulo, cognominado o “Jurisconsulta”, do interessante opúsculo “A Reforma da Universidade e a Faculdade de Direito”, publicado em Coimbra por ocasião de um Decreto reformador do ensino universitário e reeditado em Goa em 1923.
Como diz Faria e Maia, este folheto é um “vivo libelo, um quadro, cheio de verdade, da organização anacrónica do ensino universitário” e traduz “o espírito de reacção que se formara na Academia contra os processos seguidos naquele ensino e o desprestígio em que tinha caído a ciência pedagógica daquela Universidade”, e em que os autores, depois de “traçar o quadro, flagrante de verdade” da forma por que se fazia o ensino universitário no seu tempo”, passam a analisar “o Decreto reformador, provando sua inanidade” – uma pequena mas bela obra em que, é ainda Faria e Maia que o diz, “a prosa fácil, cheia de fina ironia de António de Noronha se alia ao espírito arguto, perspicaz de António de Cerqueira, “obra, como o mesmo autor frisa, “não dois cábulas que quisessem justificar a sua falta de estudo com as deficiências do ensino e dos méritos da Faculdade de Direito, mas, pelo contrário, de dois estudantes distintos, dotados de excepcionais faculdades de trabalho, ambos procurando adquirir o máximo de conhecimentos jurídicos, dois dos cérebros melhor organizados do seu curso, que depois marcaram como homens de invulgar mérito na sua profissão.”
António de Noronha foi ainda estudante em Coimbra, correspondente de um diário de Goa e nessa qualidade escreveu primeiro as suas “Cartas de Portugal” e depois as “Crónicas de Portugal”, em que se sente já um pálido reflexo do estilo de Eça de Queiroz nos seus “Bilhetes de Paris” e “Cartas de Inglaterra”. Desse tempo é a “Tragédia de Lisboa” que seu filho Mário de Noronha piedosamente deu à estampa em 1946, enfeixando em volume nas suas crónicas sobre dois crime passionais do tempo – um nas mais altas camadas sociais e o outro na mais ínfimas, como diz o próprio António de Noronha; um moço elegante, Duarte Pinto Coelho, que mata a tiro o amante da sua esposa, Alberto O’Neil tentando fazer outro tanto à adultera, e um trabalhador de Beja que trucida a golpes de machado a mulher, arremessando-se em seguida por baixo de um comboio em marcha, bem como os artigos de Roque Correia Afonso acoimando o moço cronista de “apologista de uma vida ignóbil e sensual”. É a primeira polémica de António de Noronha, em que já se adivinha o polemista temível brandindo magistralmente o florete da ironia, mas sempre de luva calçada, sem ferir, nem ofender o adversário.
Jurista e Historiador
Magistrado distinto, dotado de rica bagagem jurídica, compreende-se que grande parte dos escritos de António de Noronha seja de natureza forense. O “Palácio da Loucura”, em que conta a história de uma acção ordinária de simulação de contrato em que é autora a Fazenda e são réus o Inspector da mesma, Conselheiro Pedro Maria Teles de Menezes e Visnu Sinai Dempó e mulher, o “Código do Registo Civil” aprovado pelo Decreto de 9 de Novembro de 1912 e por ele anotado, o “Regimento da Justiça,” os Relatórios dos Serviços da Procuradoria da República e do Ministério Público, a “Legislação da Guerra” coordenada e sistematizada – eis alguns desses trabalhos em que se firma a sua reputação de magistrado sabedor e íntegro, durante uma fulgurante carreira ascensional, que vai de Juiz Municipal de Mormugão a Presidente da Relação de Goa, promovido por distinção, caso raro, se não único, na história da magistratura colonial. É, porém, sobretudo nos seis grossos volumes dos “Pareceres”, emitidos como Procurador da República, que se patenteia na sua justa medida a vastidão dos seus conhecimento jurídicos, o vigor da sua argumentação, o cuidado meticuloso que punha no estudo dos mais variados problemas submetidos à sua apreciação e a sua inconcussa honestidade profissional. Foi essa obra monumental que levou o juiz do High Court de Calcutta, D.N. Mittel, a dizer, por ocasião do seu falecimento, que António de Noronha foi para Goa o que sir Rash Behari Ghose e Sir Ashutosh Mukherjee foram para Bengala.
Nos “Hindus de Goa e a República Portuguesa”, a memória escrita a convite do Governo Português para um Congresso no Brasil, revela-se uma outra faceta do seu talento multifacetado: o historiador. Se Alexandre Herculano lamentou que Júlio de Vilhena, depois de acabar de compor a sua obra “Raças Históricas da Península Ibérica e a sua Influência no Direito Português”, regressasse aos estudos jurídicos, pondo de parte as investigações históricas, é possível que o dr. Surendranath Sen, que chegou a conhecer pessoalmente António de Noronha, também lastimasse que o labor quotidiano do magistrado lhe não deixasse tempo de sobra para estudos de carácter histórico, como essa excelente memória, dedicada ao grande paladino António José de Almeida, de que Câmara Reis, numa crítica publicada na Seara Nova deixou escrito:
“É um interessante esboço histórico, documentado, em linguagem fluente, cheio de tolerância que os espíritos altos não recusam às crenças mais diversas, aos costumes em que se perpetuam as tradições dos povos e das raças. Contar as perseguições e os mistérios dos indus equivale a rememorar numa colónia distante, os reflexos das vicissitudes politicas e sociais da metrópole. As alternativas de intolerância e cooperação, as violências dos prelados, a cobiça da população e do físico, o fanatismo ateado na ilusão contraproducente do extermínio, os sobressaltos dos pobres “gentios” ao talante dos Vice-Reis, dos Arcebispos e dos “Pais dos Cristãos”, as passageiras medidas do poder civil a seu favor, as devassas, as violências e tormentos da Inquisição, por vezes acorbertando concupiscências infames de frades e sacerdotes; a libertação concedida por Pombal; as lutas e intrigas mansas no período da monarquia constitucional – fazem-nos compreender como a República foi, paradoxalmente, para esses povos tão afeitos aos seus velhíssimos usos e costumes, o advento duma liberdade plena, duma vida politica sem entraves nem limitações injustas.”
Polemista e estilista
Mas se a reputação de jurista repousa sobretudo nos Pareceres e os seus dotes de investigador probo e consciencioso – é digno de nota o facto de António de Noronha, a despeito de ser funcionário público, nada ter omitido, levado pelo receio de incorrer no desagrado dos governantes, expondo-se mesmo ao risco de ser apodado, como foi, de “imimigo de Portugal” por causa desse trabalho – nos são nos “Indus de Goa e a República Portuguesa”, é nas compilações de “À Margem da Critica” e “Em Boa Paz” que se aprecia à justa o polemista consumado, que já se prenunciara na controvérsia à volta da “Tragédia de Lisboa”.
A primeira é uma polémica com Bragança Pereira e Cristóvão Pinto a propósito dos julgamentos de dois ógãos da imprensa – “A Opinião Hindu” e “O Crente” – e a segunda com o ao tempo Professor do Seminário de Rachol, mais tarde Deão do Cabido Patriarcal, Rev. João Francisco Lobo. Sendo António de Noronha leal e galhardo para com os seus adversários, cumpre notar, contudo, como respeitando embora a inteligência e o saber, tinha o mais soberano desdém pela petulância e pelo eruditismo balofo: de aí o contraste do modo como trata Cristóvão ou Bragança Pereira, fazendo justiça à “magnífica inteligência, larga cultura e belos predicados literários” do primeiro ou ao “homem culto e inteligente” no segundo, ao passo que põe impiedosamente a ridículo a “pasmosa vacuidade, feita de frases campanudas e palavras rebuscadas” do Deão Lobo que “nos lembram, diz, os divertidos discursos do Libório da “Queda dum Anjo”, de Camilo Castelo Branco, e cujos “artigos de redacção hesitante, difícil e arrevesada lhe parecem escritos de qualquer capelão sertanejo a experimentar a sua pena nas horas vagas do seu pacífico ministério”, rindo-se a bom rir, das “tinturas teológicas apanhadas na sua preparação sacerdotal, juntamente com o conhecido rosário de descomposturas nos racionalistas, pedreiros-livres e ateus.”
É, porém, a meu ver, nos “Nossos Interiores” – conferência feita no Instituto Vasco da Gama, de que foi o grande animador, depois da sua reconstituição por ocasião do centenário do descobridor do caminho marítimo para a Índia, conferência mais tarde publicada em separata com belas ilustrações – que melhor que em todas as suas outras obras se admira em António de Noronha o estilista esmerado, o esteta incomparável, o artista nato, enamorado do belo e dotado de fino espírito crítico, que produziu uma pequenina obra-prima literária, de ática beleza, em que se diria ter se aliado o agudo espírito critico de Ramalho à graça subtil, quase feminina de Eça.
Mário de Noronha, seu filho, dizem-me, contava fazer mais compilações depois da “Tragédia de Lisboa” no propósito de coligir toda a sua vasta obra esparsa em vários jornais em que, além de artigos doutrinários ou de critica sobre os mais variados assuntos, merecem também menção, e menção muito especial, as suas inimitáveis “Epístolas de Policarpo”, em que se diria perpassar o sopro de uma fina ironia, digna do Eça no epistolário de Fradique Mendes. Foi pena que esta piedosa tarefa do seu filho ficasse incompleta e a posteridade se visse privada de novos documentos a atestar, como diz Faria de Maia, “a grande maleabilidade das suas aptidões, a sua vasta erudição, os seus conhecimentos históricos, os seus dotes de polemista, a graça da sua ironia, o seu temperamento de artista, de esteta”
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