Monday, 25 June 2012

Maria de Luz Mendes - Goenchim Tornattim (1965)

Dois jovens, um rapaz e uma menina, dos seus 20 anos, entram no autocarro em Cortalim.

Ele, com o nó da gravata impecáel, colarinho engomado, casaco de terline e calças de dacron, senta-se logo atrás do motorista. Ela, magrita, olhos azuis, blusa branca sem decotes exagerados, saia verde, toda perfumada e sorridente, toma o seu assento também, ao lado do seu companheiro mas em fileira diferente. Pela conversa deixam ver que foram alunos do Liceu e estudam agora no College.

Logo depois de entrar entabolam o seguinte diálogo:

Zecas: Boas-Tardes, Marina! Onde estiveste hoje?

Marina – Estive em Panjim para visitar uma prima.

Zecas: Então que novidades?

Marina – Novidades da China e do Paquistão que não nos deixam dormir em paz.

Zecas – Então não leste o artigo “Goenche Toratte”?

Marina – Li-o sim, com prazer.

Zecas – Porque dizes “com prazer”. O autor faz má língua e quer destruir esta belíssima agremiação.

Marina – Oh! Não! O autor o que quer é que ela se organize devidamente, com um programa bem feito e corpos dirigentes bem escolhidos. E nada mais. Não malsines as intenções do autor.

Zecas – Parece que sabes quem é o autor e gostas dele pois que estás a louvá-lo.

Marina - Não tenho a honra de conhecer o autor, não sei se é branco ou preto, alto ou baixo, usa bigodes ou não. De facto não queiras malsinar as intenções nem as minhas nem as do autor. Sei muito bem que há maldizentes por aí fora que criticam tudo e todos. Por sim e por não. Estou realmente interessada em que se leve avante esta organização, cuja necessidade, principalmente nos tempos que correm, é premente e manifesta.

Zecas – Estás então tão interessada nesta agremia.

Marina – Não só eu estou, mas ainda associações pan-indianas estão e tanto é que um jovem distinto, candidato aos Serviços Diplomáticos Indianos, após frequentes visitas a Delhi e confabulações com os deuses do Olimpo, tentou, com a máximo tacto e diplomacia, convencer a recém-nascida agremiação a fundir-se com uma associação pan-indiana.

Zecas – Qual foi o resultado dessas tentativas?

Marina – Parece que se achou bastante prematuro entrar na apreciação das ponderadas e sensatas sugestões do ilustre proponente.

Zecas – Mas tu, tens sugestões a fazer?

Marina – Pois tenho.

Zecas – Vais então expô-las?

Marina – Além de outros pontos, ocorre-me agora o da separação em duas secções diferentes para rapazes e meninas ou duas agremiações com o nome de Goenche Tornatte e Goenchim Tornattim. Talvez não concordes com este meu ponto de vista.

Zecas – Permite-me ser franco. Realmente não perfilho o teu ponto de vista que me parece outdated, dos tempos dos nossos avós. Nestes tempos não há diferença de sexo em nenhuma parte e portanto o perigo em que pensavam os nossos antepassados é fantástico.

Marina – (rindo-se, às gargalhadas) Ora viva! Já acabou a diferença dos sexos? Uma novidade de truz! Disseram em tempos que os russos tinham inventado o processo de mudar o sexo e não igualar ou eliminar o sexo! Olha: até agora estou seguindo a orientação dum Padre que foi meu professor do Liceu.

Zecas – Padre? Deve ser um tipo velho que não sabe nada do que vai pelo mundo moderno. Naturalmente usava sotaina preta e estava agarrado às suas velhas ideias, como a ostra à concha.

Marina – Padre velho? Não. Era novinho em folha, usava batina, branquinha e perfurmada, tazia cabelo bem penteado, separado por um risco e escrevia na Imprensa sobre os problemas modernos de palpitante interesse. Velho? Não. Era novo em ideia e em orientação.

Zecas – Os padres e as madres, velhos ou novos, são sempre assim: não podem suportar que um rapaz fale a uma menina a sós, que rapazes e meninas se comisturem em qualquer parte, na escola ou na praia, na rua ou no Clube. Eles são solteiras e pensam que todo o mundo deve viver na lua.

Marina – Não exovalhas precipitadamente – para não dizer estupidamente – os padres e as freiras. Certo é que há um e outro padre, uma e outra freira outdated. Mas felizmente muito elemento entre padres e freiras é up to date, com uma cultura geral e sólida. Mas não é só por causa do meu professor padre que eu penso deste modo. Também a minha madrinha que é médica pela Faculdade de Medecina de Londres e portanto viu o mundo, e é quem dirige a minha educação, é da mesma opinião. Se bem que nós assistimos sempre a todas as festas do Clube.

Zecas – Olha, deixa as opiniões dos padres, das madres e das madrinhas. Até a Igreja Católica está mudando a sua orientação. Os últimos dois Papas revolucionarm toda a doutrina. Ainda o birth-control artificial será permitido pela Igreja daqui a nada.

Marina – Boa lembrança. Falaste na Igreja Católica. Ela tembém tem agremiações mas com secções diferentes para um e outro sexo. O Apostolado da Oração, a Acção Católica, a Legião de Maria etc. têm não só grupos separados mas ainda dirigentes diferentes. Quanto ao birth-control, o actual Papa realmente tinha dito que ia dar a sua opinião nesta matéria melindrosa logo depois de ouvir uma Comissão Especial e até agora... a decisão não veio. É porque é díficil de mudar a orientação, até agora seguida pela Igreja nesta matéria.

Zecas – Mas, se tudo está em evolução, como estás, Marina, com ideias tão anacrónicas? Não compreendo bem a tua estagnação mental...

Marina – Se tudo está em evolução, Zecas, como continuas a respeitar o teu pai e obedecer-lhe? Como continuas a fazer o bem e evitar o mal? Tanto o respeito aos pais como o principio de fazer o bem e afastar-se do mal são máximas tão antigas como a própria humanidade. Alija-as, pois, quanto antes o vai evolucionando, vai revolucionando...

Zecas – Estás, pois, uma filósofa?

Marina – E porquê não! Estudei filosofia no Liceu e aplico-a na vida prática. Mas não é só a Filosofia que me leva a pensar daquele modo/

Zecas – Tens então mais razões?

Marina – Tenho as certamente. A minha dignidade de mulhar leva-me a sacudir toda a espécie de canga. O que os rapazes hão-de fazer nesta agremiação é escolher, por formalidade, uma ou outra menina para os corpos gerentes e o resto açambarcarão nas suas mãos. Quero completa independência para o meu sexo feminino. Também, se as minhas informações não falham, a juventude universitária inglesa feminina tem as suas associações e partidos distintos e separados.

Zecas – Não, os rapazes não queremos negar a igualdade de direitos e a independência de procedimento. Mas vai ouvindo. Onde há comisturação de sexos, há maior afluência, maior alegria e maior rendimento de trabalho e portanto a força do partido é máxima.

Marina – Estás redondamente enganado. Onde os dois sexos se reúnem, com certeza a assistência é maior, o entusiasmo é mais forte mas a produção do trabalho é fraquíssima, pois que passam todo o tempo em conversas amenas e brincadeiras fúteis. Não só é isso. Pode haver perigo para a moralidade.

Zecas- Se cada um souber controlar, não há perigo nenhum para a moralidade.

Marina – “Se cada um souber controlar”, devias dizer “se cada um puder controlar”. O controle nem sempre é fácil. Segundo um adágio chinês, para que haja uma explosão basta que a pólvora e o fogo estejam perto; não é necessário contacto físico. Nós temos de evitar todas as ocasiões que possam pôr em perigo a nossa seriedade.

Zecas – Parece que estás com ideias antiquadas. Pois a vida não é para gozar? O sexo feminino não se destina a ser objecto de luxo e prazer para o sexo masculino?

Marina – Ó Zecas! Ofendes-me sem querer. A mulher não é objecto de luxo e de gozo para o homem. Os dois são iguais em tudo, devendo auxiliar-se mutuamente. A diferença de sexos existe e tem de ser respeitada quem se preza de ser inteligente.

Zecas – Realmente, não quis ofender-te, Marina. Desculpa-me a falta involuntária. Repeti apenas o que ouvi dizer aos meus companheiros do Liceu e do College.

Marina – Companheiros do Liceu e do College? Também eu ouvi a mesma ária mas corajosamente combati-a com razões de toda a ordem, principalmente as que acabei de expor.

Zecas – Neste diálogo, Marina, ao mesmo tempo que eu falava, ia meditando também e analisando com os meus botões as tuas respostas e sugestões. Cheguei à conclusão de que tu tens toda a razão e penitencio-me dos erros que por muito tempo alimentei e hoje se desfizeram como bolas de sabão. Acho que “Goenhe Tornatte” deve ter duas secções distintas: uma para rapazes e outra para meninas. É claro que não devem alhear-se ou indispor-se. O trabalho deve ser paralelo. Os resultados serão felizes e o sucesso garantido.

Até então o autocarro que, com as suas diferentes paragens durante o percurso, deu tempo bastante para esta longa conversa, chegou à praça de Margão onde “him dhog Goenchim Tornattim” apertaram as mãos e se despediram dizendo:

- Bye-bye. Oxalá a tua madrinha te arranje um Meritíssimo Magistrado para a vida...

- Bye-bye. Queira Deus que encontres um genuíno sweetheart para tua cara metade.

Estas palavras que os transeuntes ouviram enternecidos, a brisa da tarde espalhou-as pela praça como aroma inebriante.

Friday, 15 June 2012

A. de I. - Índia do Meu Berço e Canção do Meu Sonho (1965)


Ao Pandit Nehru, o maior homem da Índia e um dos maiores do mundo contemporâneo.

A Índia deve-lhe a liberdade, a Ásia, o renascimento, e o mundo todo, um nobre exemplo.


Um sonho luminoso e brando
Vinha quebrando
A vaga melancolia
Que me invadia,
De vez em quando,
Ao ver escravizada,
E espezinhada,
A terra sagrada, onde eu nasci,
Onde os meus pais e meus avós nasceram,
Índia, terra do meu berço
E canção do meu sonho..

Sob a clava impiedosa do anglo-saxão
Trepidava, ensanguentada,
Toda uma população
De milhões de indus,
Famintos e nus,
No último estertor d’agonia,
Numa luta,
Feroz e bruta,
Contra a tirania.

Um punhado de bravos,
Escravos,
Mas cheios de heroísmo e fé,
Combatia
Dum povo cuja tradição é
“Contra os fracos apontar a clavina
E entre os fortes envergar a libré”
Como escreveu certa vez,
Um grande poeta português.

Por mais de cento e cinquenta anos,
Desumanos,
Gemeu toda uma Nação
Num longo lamento,
Terrivelmente longo e lento,
Sob a escravidão
Do negro imperialismo branco.
Gemeu, gemeu, gemeu,
Silenciosamente,
Tragicamente,
Desesperadamente,
Agrilhoada como um Prometeu,
E não pôde sofrer mais,
Ao ver filhos queridos,
Mutilados e feridos,
Reduzidos à condição de animais.

Então,
Numa muda indignação,
Opondo à razão da força
A força da razão,
Ergueu-se a Índia inteira,
Firme, decidida,
A pôr o inglês na fronteira.

E numa marcha suicida,
Lutando contra o mais forte,
Porque a liberdade é mais que a vida
Atravessou, intrepidamente,
O Vale da Morte.

Um dia,
O sonho, luminoso e brando
Que me invadia,
De vez em quando,
Tornou-se, enfim, realidade,
Cantando hosanas de alegria,
Cantando o hino da Liberdade.

Remígio Botelho - Curumbina (1969)

No teu rosto
Há açoites
Das longas noites
De Agosto
Mas é risonho
O teu sonho
De guitarradas
A soluçar
Em noutadas
De luar
E de banquetes reaes
Nos palmeirais

Tu pensas...
E de repente
Na tua mente
Há visões imensas
De poentes vermelhos
A orlar 
O mar profundo
E um Deus de joelhos
A orar
P’las dores do mundo.

No teu rosto
Há açoites...
E o desgosto
Acumulado
De tantas noites
Da escravidão
Noites de pecado
E de perdão!

E quando danças
Tua alma dança
Como as tranças
Duma criança
E se debate
Tetricamente
Ao ritmo quente
Do gumate

Quando, quando é que vem a manhã prometida
Da tua vida?
Sobre o cerro alem
A tarde desce,
E sobre a prece
Da Ave-Maria...
É o final
De mais um dia
Que passa
Da missão ancestral
Da tua raça.





Thursday, 14 June 2012

RV Pandit - O Sangue do Escravo (1962)

Era uma festa dos vermelhos,
À qual assistiram
Todos os vermelhos do mundo:
O vermelho perfumado da flor,
O vermelho áureo do céu matutino,
O vermelho do arco-íris
E o vermelho do rio turvo,

O vermelho dos dedos pintados,
O vermelho flamante da gravata,
O vermelho dos lábios “abolim”,
O corar da virgem casta,

O vermelho sanguíneo do poder insolente,
O vermelho róseo do nascer da liberdade,
O vermelho sufocante da luta nacional
E todos os vermelhos do mundo...

Mas, quando a festa começou...
Um vermelho infeliz foi visto num canto:
Era a cor do sangue dum escravo algemado.

Tradução de Mucunda Quelecar

Tuesday, 12 June 2012

Laxmanrao Sardessai - Não estou só, não! (1966)

Não estou só, não.
Vejo cabeças que não pensam
E peitos que não arfam
E membros que não se movem
Todos são ídolos de pedra ou bronze
Mas não estou só! Não!
Porque sobre a minha cabeça erecta
Estende-se o firmamento,
Azul, branco ou cinzento,
Semeado de astros infinitos,
Que me falam a linguagem do universo,
E diante de mim estende-se o mar,
Azul e claro,
De cores e linhas infinitas,
Calmo ou turvado,
Mas sempre eloquente
Que dissipa a solidão do meu ser.
E à minha direita,
Extensos planos
A confundir-se com o horizonte,
Sem aves e animais,
Sem homens e árvores,
E à esquerda na encosta do planalto,
Arvoredo denso e verde
Palmeiras ou arequeiras,
Mangueiras e jaqueiras
Dando passagem aos Arroios
E no fundo o rio,
Calmo e abundante,
Como uma mãe de doze filhos
E o canto das aves
E o aroma das flores,
E tudo isto na sua mudez profunda
Na sua eloquência vasta
Vem lembrar-me
Que não estou só no universo.

Monday, 11 June 2012

Telo de Mascarenhas - Um Tema Mitológico (1977)

O Sr. Xavier conta-nos a história de Kuvera, em “O Heraldo” de 11 de Novembro firmada na versão védica, que achamos um tanto fantasiosa, por nunca termos deparado com ela em nenhuma antologia védica, mas com isso não queremos dizer que ela não seja verídica. Aquela história contada pelo Sr. Xavier, quase macabra, veio abalar tudo quanto de encantador e belo havia criado no nosso espírito permeável à ficção poética, como é a de Kalidasa, no seu enleante poema Kumaraswambha ou o Nascimento de Kubera, o Deus da Riqueza em cujo parque, interdito a mulheres (onde Urvaci se refugiara, ardendo de ciúmes do seu rei bem-amado, por ele possuir mais esposas), decorre o entrecho do drama todo mimado, cantado e dançado, de Kalidasa, intitulado Wikramaurvaci.

Não conhecíamos o aspecto tétrico do “chefe dos espíritos”, que viveu no Naraka ou no Nimbo, mas como um ente nascido da união de Shiva e Parvati. Inspirados na lenda do nascimento de Kuvera, escrevemos, há anos, o seguinte conto:

“Himavat, o Rei das Montanhas do Himalaia, e Ménaka, já Rainha, tinham uma filha encantadora como a estrela da manhã e graciosa como a estrela da tarde. O Rei chamava-lhe Parvati, que quer dizer, filha da Montanha; mas a Rainha Ménaka dava-lhe um nome mais doce, todo carinho, todo ternura – chama-lhe Uma, que quer dizer Mãe.”

“Um dia Shiva, o Deus omnipotente, o Deus misericordioso, o Deus misericordioso, piedoso e mendicante, chegou ao Himalaia e sentado na pele de tigre estendida no chão, quedou-se nas suas meditações longas e calmas como os picos alterosos e nevados das montanhas. Parvati, a graciosa filha da Rainha Ménaka, pôs-se ao serviço do Deus Shiva e, todas as manhãs, enfiava em contas grãos de lótus orvalhados, em que Shiva rezava as suas orações. Parvati amava Shiva, o Deus de cabeleira coroada do crescente da Lua e de flores de acácia, em que aparava o impetuoso caudal do sagrado rio Ganges prestes a engolfar o Mundo no abismo. Para cativar o coração do Shiva, Parvati pintou as unhas de laca, os olhos de kajol, e pôs no seu coração virgem um fundo de desejo de unir a Ele, que era todo bondade, todo pureza, todo virtude.”

“A Primavera aflorou as montanhas doirando as neves eternas e vestindo de galas a natureza, e o aroma das flores de deodaras, os cedros do Himalaia, à cuja sombra Shiva meditava, segredou-lhe o amor de Parvati. Quando as suas longas e calmas meditações findaram. Shiva entreabriu os olhos, e os seus olhos poisaram sobre Parvati sentada aos seus pés, humilde e submissa, virgem e núbil como uma oferenda de sacrifício. E sob o véu lilás de neblina dum dia florido de Primavera, Shiva e Parvati trocaram o primeiro olhar de bom agouro, todo impregnado de carinho, amor e ternura conjugal. E desse conúbio nasceu Kuvera.”

Devíamos revestir de roupagens encantadoras e poéticas, como fez Kalidasa com o seu génio imortal, os temas mitológicos, os contos e as lendas doiradas que formam e enredo das nossas velhas Epopeias e Puranas.

Clara de Menezes - Avante! (1977)

Hoje é o grande dia da Independência,
Dia áureo para a vida da Nação,
Em que se acabou a humilhação,
Sacudindo as grilhetas, sem clemência.

Certo é que o Inglês com leal benevolência
Deu à Índia as rédeas na mão
Para os esfomeados terem pão
Mas ainda não vingou o ideal, não.

Minha Pátria, querida, dos Rajás,
A tua inteligência é capaz
De trazer ao Pais prosperidade.

Desperta do torpor, anda à frente,
Dá ao Povo posição magnificente,
Conquistando-lhe real felicidade.

Victor Orlando - Mario do Carmo Vaz e o Seu Primeiro Livro de Poemas (1956)

Se é verdade que já não há maus começos e que a era actual já não aceita derrotas, Carmo Vaz, publicando o seu primeiro livro de poemas, leva-nos a crer que, num futuro próximo, venham a ficar as suas possibilidades, mais bem vincadas, e mais personalizada a sua poesia.

Nada sabemos de especialmente mau, nem nada de extraordinário, na colectânea em questão. Carmo Vaz assinalou a sua presença na poesia goesa e, só por isso, a “terra” já lhe fica a dever.

A técnica e a forma não nos merecerão reparos, até porque não é, na crítica de poesia, que nos vemos mais à vontade. Porém, como Carmo Vaz tenha abordado assuntos sociais, que são da nossa particular predilecção, diremos, após uma leitura mais ou menos cuidada, que Mário do Carmo Vaz “quer” ser povo e sente que ainda o não é. Só basta a “vontade”, que é indício do próximo fim da “burguesia”; e é quanto eleva a finalidade do primeiro livro de quem já foi classificado como o “príncipe” dos poetas goeses.

No entanto, o autor a quem nos referimos, tem notável intuição poética que poderá culminar em melhores e mais ricas produções, às quais, se aparecerem, esperamos que Carmo Vaz dará a finalidade do movimento poético actual: sugerir e não descrever!

“Cobre-me, agora, a sombra da morte...” chora o poeta na “Ode para um goês distante” e não sabemos porque! Se os campos, se os pés descalços, se os descamisados estão à espera que lhes traga melhores dias, porque há-de a “Sobra da morte” cobrir-nos os sonhos?

Mas deixando subtilezas para outra melhor oportunidade, Carmo Vaz, pelo passo que deu, decisivo e arrojado, lançando o seu livro, merece encómios, merece apoio, merece, digamos assim, aplausos, e muitos, porque, só do incentivo, vem a melhoria e o progresso!

Carmo Vaz tem, sem dúvida, sensibilidade poética, que, devidamente explorada, pode levá-lo longe. Vemos isso em:

“E a noite é cada vez mais

Negra e baça...

Só, no alto dum telhado,

O olhar fulgurante

Duma gata em cio,

Buscando – absorta

Num desejo lascivo –

A carícia dum amante,

É um protesto vivo

Contra a Noite morta!”


Do seu poema “Gosto de ficar, assim) (p.73-76), Mário do Carmo Vaz revela que está de caminho a mais latos horizontes poéticos.

À parte os reparos que fizemos, bem intencionados e sinceros, e sem própositos de esmiuçar “A Terra Falou-me Assim”, felicitamos Mário do Carmo Vaz por nos ter dado uma oportunidade de apreciar as suas possibilidades poéticas, que, sinceramente, confiamos, Carmo Vaz em breve nos dará melhoradas.

“Gosto de Ficar, Assim”

Gosto de ficar, assim,

Contemplando a Noite,

Negra e baça

Fria, como um açoite,

Vergestando a beleza nua

Duma escrava de raça –

A Lua.



Gosto de ficar, assim,

Contemplando a Noite,

Negra e baça...



Distante,

O claxon esganiçado

Dum carro que passa,

É um uivo alucinante

De cão esfaimado.



E fico contemplando a Noite

Fria e baça...



Crepes negros de luto pesado,

Envolvendo o casario,

Sombrio,

Da gente do fado.



E a noite é cada vez mais negra e baça...



Só, no alto dum telhado,

O olhar fulgurante

Duma gata em cio,

Buscando – absorta

Num desejo lascivo –

A carícia dum amante,

É um protesto vivo

Contra a Noite morta!



Ai! Como gosto de ficar, assim

A contemplar a Noite

Negra e baça...



Ó noite, negra e baça

Teu companheiro

Teu irmão.



Ó Noite, negra e baça

- espelho da imensa desgraça

que enluta o Mundo inteiro.

Friday, 8 June 2012

Manoharrai Sardessai - “A Imortal Chama Nehru" (1965)

O corpo se fez chama
E arde
O olhar se fez raio
E brilha
Transmudada em fogo,
Em flama,
A rubra gema
Brilha com maior fulgor.

Vede com ela saltita
E se precipita
Em direcção ao céu
Em asas de oiro
Quando ela crepita
Nela palpita
O coração de Jawahar.

Nesta chama persiste
Quanto de sagrado existe
Nela vivem os santos lugares
Prayag, Madura, Benares.
É da Índia a alma
Da sua vida a flama
Que a todos envolve
No seu halo de luz.

Quando a injustiça
Oprime os homens
Ela de per si se atiça
E treme toda de raiva...
Esta chama
É a sagrada flama,
A vera imagem do deus Agni
No fogo sacrificial.

É a força dos oprimidos
O alento dos vencidos;
Na senda escura de milhões
De escravizados.

É o facho da revolução.
O flagelo dos tiranos
- A luz da redenção.

Luta contra furações
Destrói com as suas labaredas
Tudo quanto é ruim, impuro, vil
É a chama que espanca as trevas
E alumia as veredas
Na cerração da noite,
Povoada de mil perigos.

Esta chama é a esperança
Da humanidade
É uma lição a sua perpetuidade
Sempre a arder,
Sempre a servir,
Ela guarda a paz do mundo.

É a chama do esforço humano
Capaz de vencer mesmo a morte...
Chama que alumiará
Os séculos por vir
Até ao final devir.

Ela já percorreu
Muitas terras,
Em muitos corações
Ardeu,
Hoje ilumina o Mandovi,
Que nela se consuma
Quanto de vil, impuro, ruim
Possa existir em mim
Que cada momento da minha vida
Seja um momento de fogo.
Um momento de luz
Uma faúlha da Jawahar Jyoti.

Translated by Correia Afonso

Tuesday, 5 June 2012

Cyrano Valles - Poema (1981)

Águia negra
Arrebatou de repente
A pomba parasita
Que entre corvos
Reinava anelando
Pantera feroz disfarçada
Em sentinela d’amor...

Rompeu o sol rútilo
As malignas cadeias
Das últimas trevas.
Aclamado com júbilo
Pelos cativos livres
Enfim dum longo pesadelo,
Um sonho mau de bruxas velhas
Que ruiu sob uma chuva
De estrelas vermelhas!

Alcandorado sobre pirâmides
De craveiras e carcaças
O deserto meglomaníaco
De chacina dos inocentes
Ruiu num instante orgíaco
Co’a maré subindo... subindo
Lenta... inexorável... fatal...
O canto das ciganas ecoando
O monótono restolhar dos fenos
E as abelhas revoltas zumbindo
Sobre a flor d’outono submergindo
Virgem violada pelo vendeval,
Nas névoas da noite eterna.
Algas de chumbo mal ocultando
Sua nudez íntima e derradeira!
Sulla spiaggia “un odor” di putredine
Dove sta la gloria...