Sunday, 25 December 2011

Jeanette - Uma Família Goesa (1957)

- O quer que lhe diga, Mann Zé! Reprovaram a Lena!

- Reprovaram? Mas como? Se já estava tudo tratado? Então julga que minto? Pergunta, aliás, à Beatriz, se não tratámos do assunto durante o jantar que “lhe” oferecemos! Essa é que está boa. Então jantou – só em vinhos setenta e cinco rupias!... E...

- Setenta e cinco?! Como? Se paguei setenta e cinco rupias e sete tangas?

- Promete-te Maria! Não pus na conta mais do que gastei. Não me lembrava das tangas. Mas não é isto o que interessa! Então fiz as despesas e...

- “Fiz as despesas”?! Pois eu é que paguei todas as contas e nem sequer comi o jantar! E a Lena reprovou! Que tempos estes! Então, a Lena, reprovaram, sem a mínima consideração por ti, pelas famílias de quem descendemos! E deixaram passar o filho do nosso carroceiro! Estás a ver para onde caminha o mundo?! Estás a ver?!

E a Dona Maria bateu o pé com tanta força na lage de cimento do balcão do seu Mano José – Mann Zé – que a camurça gasta do calçado cedeu e o tacão dobrou-se todo, provocando uma entorce que arrancou um “Jesus” da garganta da, já naquelas alturas, apopléctica Dona Maria. Esqueci-me de lhes descrever o pormenor “panorâmico” do balcão do Mann Zé – tão de chofre começou a conversa que a Dona Maria não deixou tempo para “observações” prévias. Imaginam, no entanto, um homem de estatura mediana com um leque de palmas ao lado, os dedos ocupados em desobstruir um cachimbo meio carcomido, sentado numa cadeira de lona de que não se sabia bem a cor com os pés por cima de um banquinho enquanto os chinelos descansavam até não serem chamados a cobrir os calos do venerando “herdeiro” das “tradições da família” – foi como o Zé estavas antes do tacão da Dona Maria curvar-se sob o peso da indignação que motivara o tacto do filho do carroceiro ter passado os exames! O balcão tinha uma só parede na qual se abria uma porta que dava para um corredor. Duas colunas, dois prismas rectangulares sustentavam-no nos extremos e dois poios de cimento e madeira fingiam, de cada lado, uma meia parede. Distava da estrada, que passava rente, os dez degraus que só galgando-os se podia subir. Foi por eles que a Dona Maria entrou ostentando um chapéu de sol de enormes dimensões – um “sombreiro” como lhe chamam – que de maneira nenhuma podiam tranquilizar um homem como o Zé, sofrendo de gota – reumatismo – designação airosa e aristocrática dos males que dificultam talqualmente a gota, o movimento livre das pernas. Vieram as “crioulas” quando convocados pelo aflito Mann Zé, que quando viu a mana baquear como a tirania, assustou-se e deixou cair o cachimbo – qual bicho, amigo da sissiparidade, que prontamente se fez em dois (não cachimbos, mas pedaços). Fizeram o curativo que consistiu em embeber trapos velhos em água de sal morna e aplicá-los na região dorida. A segunda fase, seria untar o tornozelo de óleo de coco.

- Patifes! – rosnou a Dona Maria fazendo um certo esforço para dominar a dor que a angustiava. O Mann Zé, ao lado, continuava impassível a desobstruir o cachimbo partido com seriedade e persistência dignas de servirem de exemplo aos que andam em tarefas similares no Canal de Suez

- Patifes! – rosnou outra vez a Dona Maria e desta, o poial vibrou, ao menos ao Mano assim pareceu. Perante tanta fúria pensou o pobre “paciente” de gota que era preciso agir já que reagir não poderia, com as pernas tão trôpegas. E se bem pensou melhor o fez.

Sopesou, lastimoso, os dois fragmentos do cachimbo e monologou:

- Era do meu avó! Depois foi meu pai! E agora.. é o que é... E admiram-se que já não respeitem as tradições.

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