Bensaulim é uma aldeia de beira-mar, acolhedora e remansosa, aninhada sob as frondes das palmeiras, que o vento da tarde faz fremir como harpas encantadas.
As figueiras da Índia de porte majestoso e ramaria em umbela, são como naves silenciosas de catedrais, dando sombra e frescura à beira dos caminhos. Antigamente, aquelas árvores seculares, que a tradição santificara eram as guardiãs da aldeia. Sob a sua copa frondosa reuniam-se os aldeões, à tarde, finda a labuta do dia e, sentados em volta da peanha circular de pedra, assistiam à representações cénicas dos episódios heróicos e líricos das grandes epopeias, entoavam hinos a Hari, ou ouviam narrar os contos e as fábulas do “Panchachantra”. Agora, porém, perdido o seu carácter de ‘ficus religiosa’ e de centro social da aldeia, aquelas árvores acoitam na sua ramaria bandos de gralhas bulhentas e crocitantes e nos ocos dos seus troncos cobras de capelo oscilante e coruscante, com o tiara incrustada de pedrarias.
Em volta, várzeas e valados, cômoros e lagoas floridas de nenúfares, dão àquela aldeia o aspecto bucólico duma écloga pastoril. Para além das várzeas e palmares estendem-se as dunas e a praia de areias fulvas onde o mar espraia as suas ondas soluçantes, franjadas de alva espuma rendilhada.
Sobranceiro a uma grande lagoa fica o velho solar, bastante danificado pelo tempo, de Luís Bernardo, representante duma das mais antigas famílias daquela aldeia. Como quase todas as casas dos grandes propriedades rurais, a casa de Luís Bernardo havia decaído, devido não só ao grande estadão de vida que os seus antepassados levaram para honrar a tradição, com banquetes e bailes de espavento, mas também porque as suas terras, em parte hipotecadas ou alienadas, e cultivadas com métodos rotineiros, através de gerações, haviam empobrecido.
Com a sua estatura avantajada, olhar inteligente e nariz proeminente, Luís Bernardo, se em vez do seu democrático boné, bigode e mosca, arvorasse turbante rutilante de seda e pedrarias e barba frondosa, seria a imagem viva de guerreiro rajput das pinturas murais dos palácios principescos de Udeipur.
Luís Bernando tinha o ar afidalgado, maneiras requintadas e hábitos hospitaleiros. E não obstante a sua idade avançada, possuía espírito jovem e encarava a vida com optimismo e bom humor.
D. Ubélia, sua esposa e companheira de muitos anos, dera-lhe um filho e duas filhas. O rapaz, José Manoel, feita a instrução primária e aprendios os rudimentos de solfejo e violino, andara a estudar inglês com o fito de ir para África ganhar a vida. A filha mais velha, Rosália, era uma rapariga azougada e espirituosa, de olhos negros e sorriso gracioso. A outra, Isabel, sorridente e esquiva, parecia viver desprendida do mundo, como se tivesse feito o voto de renúncia e sacríficio. A mãe adestrara-se nos trabalhos de agulha e lavores, e elas com as suas mãos de prata, bordando e tecendo, supriam o magro orçamento doméstico.
A preocupação constante de Luís Bernardo era desencantar o tesouro oculto da família que, segundo a tradição, devia estar enterrado no quintal ou nos baixos da casa, como era uso nos tempos distantes de frequentes incursões das hordas de Bijapur e outros invasores, empenhados no saque e rapina. Com aquele tesouro dos seus antepassados contava Luís Bernardo restaurar o seu velho solar escalavrado e melhorar as condições económicas da família. E obcecado por aquela ideia fazia pesquisas diárias, dirigindo os trabalhos de escavação, revolvendo o quintal e os baixos da casa. Andava naquela faina havia anos, na ânsia de ver surgir à luz do sol o decantado tesouro. Tinham sido, porém, até então, baldados todos os seus esforços. Estava, por isso, pesaroso e decepcionado.
Uma tarde, findas as pesquisas do dia, dirigiu-se Luís Bernardo, extenuado e descoroçoado, para a sala de costura onde D. Ubélia e as filhas estavam atarefadas a bordar uma colcha a matiz, e, atirando-se para cima duma cadeira de espreguiçar, desafabou: ‘E não há meio de dar com ele. Maldita sorte a minha”.
“Com quê, meu pai?”, inquiriu Rosália, simulando curiosidade, embora ela soubesse muito bem a que queria referir.
“Ora, com que havia de ser?! Com aquilo que eu procuro. Com o tesouro da nossa família”, disse ele mal humorado.
“O pai espera ainda desencatá-lo?”, tornou ela com cepticismo.
“Porquê não, menina? A perseverança tudo alcança” disse Luís Bernardo com teimosia.
O pai já revolveu quase tudo. Por esse andar é bem capaz de deitar a casa abaixo. E se o tesouro não passa duma lenda, meu pai?” tornou ela a perguntar.
“Impossível, menina!”, disse ele com energia, quase agastado. “O teu avô sempre falava nele. Mas, grande politicão como era, mais interessado com as lutas eleiçoeiras e festanças do que com o bem estar da família, nunca se importou com isso. Dizia ele que tinha achado na livraria um pergaminho manuscrito entre as folhas dum velho códice, especificando as preciosidades que o tesouro continha: ricos “mohurs” de oiro do tempo dos mongóis, jóias e aljôfares, cintas e braceletes incrustadas de pedrarias. Uma verdadeira fortuna, capaz de tentar Genghis Khan”.
“Não teria Rauji Rane, aquando da incursão à nossa aldeia, desenterrado e levado o tesouro? Diz o povo que Rauji Rane levou um grande despojo da nossa aldeia”, observou Rosália com uma pontinha de malícia.
“Rauji Rane, ainda aparentado à nossa família, foi grande amigo do teu avô”, disse Luís Bernardo, com orgulho. “Ele foi um guerreiro que lutou para reivindicar os justos direitos do nosso povo. Não era um vulgar bandoleiro, e incapaz de uma acção dessas. Foram os outros, com certeza, que roubaram e saquearam à sombra do seu nome”.
“Deus o ajude a achá-lo, pai. Já é tempo de sairmos desta mediania”, disse, por fim, Rosália, conformada.
“Mesmo na nossa mediania temos sido felizes. Para que cobiçar grandes riquezas? Até Deus podia levar a mal”, observou D. Ubélia, com a sua resignação cristã.
“Ora, cantigas, mulher; Deus importa-se lá com as nossas necessidades?” volveu Luís Bernardo.
“Não sejas herege, homem, nem ambicioso”, censurou D. Ubélia.
“Não sou herege nem ambicioso, criatura de Deus! Apenas desejo reaver o que é nosso. E aquilo que foi dos nossos antepassados de direito nos pertence. Nem Deus pode levar a mal que assim seja”, replicou ele mal-humorado.
“E não vês que isso te tira o sossego do espírito?”, disse D. Ubélia para o aplacar. “Pois, sim! O maior desassossego é uma pessoa andar a tinir. E nem o céu se ganha sem trabalhos e canseiras”, disse Luís Bernardo, como que se quisesse pôr termo ao assunto.
Levantou-se e saiu resmugando, arrastando os chinelos para se ir refastelar no balcão e fumar, descansado, o seu cigarro.
Nisto, viu vir subindo os
(segue na 5a pagina)
degraus do balcão, com ares misteriosos e modos mesureiros, Manoel João, o casamenteiro. O ofício de casamenteiro é muito antigo nas aldeias de Goa, tão antigo como a própria instituição do casamento. Não há aldeia que não tenha o seu casamenteiro que, incumbido pelos pais com filhas casadoiras, leva a proposta à algum jovem, herdeiro rico, ou lançado na vida como funcionário público, por mais modesta que seja a sua categoria, porque um emprego público é aspiração máxima numa terra sem grandes horizontes nem perspectivas, como é a nossa. Ou então são os pais de filhos que voltam da África ou de Bombaim, com algum pecúlio, e os querem casar nas famílias de alto nível social, mas decaídas de fortuna.
Manoel João era o casamenteiro da aldeia. Pequeno proprietário, lançara mão daquela missão benfazeja que lhe dava o direito a uma percentagem sobre o dote, e comia a dois carrilhos – da família da noiva e do noivo.
Luís Bernardo, pressentindo ao que ele vinha, acolheu-o com o seu hábil ar galhofeiro: “Então, Manoel João, que bons ares o trazem a esta sua casa!”
Há muito tencionava fazer uma visita ao batcará, para saber da sua saúde”, disse Manoel João com a sua manha habitual.
“Bom, bom, não há razão para sustos. Sente-se, Manoel João, e conte como lhe corre a vida”.
“Se o batcará dá licença”, disse ele e sentou-se na extremidade de um banco. “A vida vai mal, batcará, muito mal. A minha profissão está a dar pouco. Uma crise pavorosa. Cada vez recorrem menos aos meus bons ofícios”.
“Então, que quer Manoel João? O preceito “crescei e multiplicai-vos” não se coaduna com estes tempos de vacas magras. No entanto, não me consta que alguém tenha feito voto de celibato”, disse Luís Bernardo.
“O mundo está perdido, batcará”, tornou Manoel João. “A gente nova faz pouco caso dos nossos bons e moralizadores costumes. Pegam em namoriscar e as duas por três estão casados sem se importarem com o futuro, quer dizer, com o dote nem com os conselhos dos pais”
“Mas isso é óptimo, Manoel João. Porque, afinal, quem se casa são os filhos e não os pais”.
“Vejo que está demasiadamente moralizador e pessimista, Manoel João. Então, assim, pela hora da morte, os seus bons ofícios de casamenteiro?”
“É como diz, batcará. O meu ofício não dá para mandar cantar um cego”.
“O meu amigo já fez uma razoável fortuna. Podia agora descansar e gozar o que ganhou casando os outros”.
“São mais vozes de que as nozes, batcará. Eu ando nisto devido a extrema necessidade que tenho de ganhar a vida. A propósito. Trago a proposta de filho de Manoel da Anastácia que, como sabe, voltou há pouco da África. É muito bom trabalhador, e deve dar um bom marido”.
O filho de Manoel da Anastácia que abalou há anos, quase descalço, para África? E como chegou ele a fazer fortuna, homem?”, perguntou Luís Bernardo.
“A África, como o batcará sabe, é um El-Dorado para quem tenha expediente e habildade. Dizem que o rapaz andou no mato a vender aos pretos riscado pelo preço do brocado e fez fortuna.”
“Magnifico, Manoel João! Esta proposta pode fazer a sua fortuna. Não o poupe. Ele que andou a esfolar o negro, pode enchê-lo de oiro.”
“Eu tinha pensado numa dessas filhas do batecará. É um belo partido. E a sua filha seria tratada como uma rainha.”
“Deus me livre falar-lhe nisso. Eu conheço bem as minhas filhas. O oiro nunca as tentou. Veio bater a má porta, Manoel João.”
“Para falar verdade batecará realmente a diferença de famílias é um grade empecilho. Contudo, há precedente. Como sabe, o filho de Gertrudes piladeira, que tem grandes estabelecimentos em Mombaça, onde ele é vice-consul de Portugal, casou com a filha do batcará da Casa Grande”.
“Cada um sabe as linhas com que se cose, meu amigo”, disse Luís Bernardo, causticante.
“O batcará não leve a mal o meu atrevimento. Pensei que talvez chegássemos a um entendimento e o casamento se fizesse. Visto isso, retiro-me, se me dá licença”.
“Pois bem, Manoel João. Estimei vê-lo”, disse Luís Bernardo, despedindo-o.
Manoel João levantou-se, limpou ao lenço encanado as bagas de suor que lhe perlava o rosto e, vendo goradas as suas diligências, foi descendo os degraus do balcão, arreliado com a sua vida, cabisbaixo e vexado, como um cão batido, murmurando entre dentes: “Pobres mas soberbos”.
Ao jantar, Luís Bernardo deu a novidade à família: “Sabem quem esteve cá esta tarde?”
“Quem foi”, perguntou D. Ubélia.
“Manoel João”, disse ele.
“Manoel João, casamenteiro? E o que é que ele queria pois? Quis saber Rosália, ardendo de curiosidade.”
“Vinha com a proposta do filho de Manoel da Anastácia para uma de vocês”.
“Do filho de Manoel de Anastácia que chegou há dias da África?” perguntou D. Ubélia.
“Esse mesmo. Mas eu tirei-lhe as ilusões”, disse Luís Bernardo, autoritárian.
“Deus me livre de casar com o filho de Manoel de Anastácia; nem que ele fosse pintado a oiro. Prefiro ficar solteira toda a vida”, foi o comentário tempestuoso de Rosália.
“E tu, Isabel, o que dizes?”, perguntou Luís Bernardo à filha mais nova, para a arreliar.
“Eu não quero casar. Quero ficar a fazer companhia aos meus pais”, disse Isabel, corando.
“Nesse caso terei que arranjar um ghor-zaoim, um genro estabelecido”, disse Luís Bernardo, divertido, o que a fez arreliar ainda mais.
“Não digo com o filho de Manoel de Anastácia; mas porque não hás-de casar, Isabel? Queres ficar para tia?”, disse Rosália com o seu ar chistoso, e acrescentou: “Já estou a ver a nossa Isabel de pano-baju como as tias clássicas das famílias antigas, devotas e beatas”.
E Isabel, ante a observação da irmã, conservou-se calada e cabisbaixa, e ficou a remoer o seu amuo e a sua timidez.
As figueiras da Índia de porte majestoso e ramaria em umbela, são como naves silenciosas de catedrais, dando sombra e frescura à beira dos caminhos. Antigamente, aquelas árvores seculares, que a tradição santificara eram as guardiãs da aldeia. Sob a sua copa frondosa reuniam-se os aldeões, à tarde, finda a labuta do dia e, sentados em volta da peanha circular de pedra, assistiam à representações cénicas dos episódios heróicos e líricos das grandes epopeias, entoavam hinos a Hari, ou ouviam narrar os contos e as fábulas do “Panchachantra”. Agora, porém, perdido o seu carácter de ‘ficus religiosa’ e de centro social da aldeia, aquelas árvores acoitam na sua ramaria bandos de gralhas bulhentas e crocitantes e nos ocos dos seus troncos cobras de capelo oscilante e coruscante, com o tiara incrustada de pedrarias.
Em volta, várzeas e valados, cômoros e lagoas floridas de nenúfares, dão àquela aldeia o aspecto bucólico duma écloga pastoril. Para além das várzeas e palmares estendem-se as dunas e a praia de areias fulvas onde o mar espraia as suas ondas soluçantes, franjadas de alva espuma rendilhada.
Sobranceiro a uma grande lagoa fica o velho solar, bastante danificado pelo tempo, de Luís Bernardo, representante duma das mais antigas famílias daquela aldeia. Como quase todas as casas dos grandes propriedades rurais, a casa de Luís Bernardo havia decaído, devido não só ao grande estadão de vida que os seus antepassados levaram para honrar a tradição, com banquetes e bailes de espavento, mas também porque as suas terras, em parte hipotecadas ou alienadas, e cultivadas com métodos rotineiros, através de gerações, haviam empobrecido.
Com a sua estatura avantajada, olhar inteligente e nariz proeminente, Luís Bernardo, se em vez do seu democrático boné, bigode e mosca, arvorasse turbante rutilante de seda e pedrarias e barba frondosa, seria a imagem viva de guerreiro rajput das pinturas murais dos palácios principescos de Udeipur.
Luís Bernando tinha o ar afidalgado, maneiras requintadas e hábitos hospitaleiros. E não obstante a sua idade avançada, possuía espírito jovem e encarava a vida com optimismo e bom humor.
D. Ubélia, sua esposa e companheira de muitos anos, dera-lhe um filho e duas filhas. O rapaz, José Manoel, feita a instrução primária e aprendios os rudimentos de solfejo e violino, andara a estudar inglês com o fito de ir para África ganhar a vida. A filha mais velha, Rosália, era uma rapariga azougada e espirituosa, de olhos negros e sorriso gracioso. A outra, Isabel, sorridente e esquiva, parecia viver desprendida do mundo, como se tivesse feito o voto de renúncia e sacríficio. A mãe adestrara-se nos trabalhos de agulha e lavores, e elas com as suas mãos de prata, bordando e tecendo, supriam o magro orçamento doméstico.
A preocupação constante de Luís Bernardo era desencantar o tesouro oculto da família que, segundo a tradição, devia estar enterrado no quintal ou nos baixos da casa, como era uso nos tempos distantes de frequentes incursões das hordas de Bijapur e outros invasores, empenhados no saque e rapina. Com aquele tesouro dos seus antepassados contava Luís Bernardo restaurar o seu velho solar escalavrado e melhorar as condições económicas da família. E obcecado por aquela ideia fazia pesquisas diárias, dirigindo os trabalhos de escavação, revolvendo o quintal e os baixos da casa. Andava naquela faina havia anos, na ânsia de ver surgir à luz do sol o decantado tesouro. Tinham sido, porém, até então, baldados todos os seus esforços. Estava, por isso, pesaroso e decepcionado.
Uma tarde, findas as pesquisas do dia, dirigiu-se Luís Bernardo, extenuado e descoroçoado, para a sala de costura onde D. Ubélia e as filhas estavam atarefadas a bordar uma colcha a matiz, e, atirando-se para cima duma cadeira de espreguiçar, desafabou: ‘E não há meio de dar com ele. Maldita sorte a minha”.
“Com quê, meu pai?”, inquiriu Rosália, simulando curiosidade, embora ela soubesse muito bem a que queria referir.
“Ora, com que havia de ser?! Com aquilo que eu procuro. Com o tesouro da nossa família”, disse ele mal humorado.
“O pai espera ainda desencatá-lo?”, tornou ela com cepticismo.
“Porquê não, menina? A perseverança tudo alcança” disse Luís Bernardo com teimosia.
O pai já revolveu quase tudo. Por esse andar é bem capaz de deitar a casa abaixo. E se o tesouro não passa duma lenda, meu pai?” tornou ela a perguntar.
“Impossível, menina!”, disse ele com energia, quase agastado. “O teu avô sempre falava nele. Mas, grande politicão como era, mais interessado com as lutas eleiçoeiras e festanças do que com o bem estar da família, nunca se importou com isso. Dizia ele que tinha achado na livraria um pergaminho manuscrito entre as folhas dum velho códice, especificando as preciosidades que o tesouro continha: ricos “mohurs” de oiro do tempo dos mongóis, jóias e aljôfares, cintas e braceletes incrustadas de pedrarias. Uma verdadeira fortuna, capaz de tentar Genghis Khan”.
“Não teria Rauji Rane, aquando da incursão à nossa aldeia, desenterrado e levado o tesouro? Diz o povo que Rauji Rane levou um grande despojo da nossa aldeia”, observou Rosália com uma pontinha de malícia.
“Rauji Rane, ainda aparentado à nossa família, foi grande amigo do teu avô”, disse Luís Bernardo, com orgulho. “Ele foi um guerreiro que lutou para reivindicar os justos direitos do nosso povo. Não era um vulgar bandoleiro, e incapaz de uma acção dessas. Foram os outros, com certeza, que roubaram e saquearam à sombra do seu nome”.
“Deus o ajude a achá-lo, pai. Já é tempo de sairmos desta mediania”, disse, por fim, Rosália, conformada.
“Mesmo na nossa mediania temos sido felizes. Para que cobiçar grandes riquezas? Até Deus podia levar a mal”, observou D. Ubélia, com a sua resignação cristã.
“Ora, cantigas, mulher; Deus importa-se lá com as nossas necessidades?” volveu Luís Bernardo.
“Não sejas herege, homem, nem ambicioso”, censurou D. Ubélia.
“Não sou herege nem ambicioso, criatura de Deus! Apenas desejo reaver o que é nosso. E aquilo que foi dos nossos antepassados de direito nos pertence. Nem Deus pode levar a mal que assim seja”, replicou ele mal-humorado.
“E não vês que isso te tira o sossego do espírito?”, disse D. Ubélia para o aplacar. “Pois, sim! O maior desassossego é uma pessoa andar a tinir. E nem o céu se ganha sem trabalhos e canseiras”, disse Luís Bernardo, como que se quisesse pôr termo ao assunto.
Levantou-se e saiu resmugando, arrastando os chinelos para se ir refastelar no balcão e fumar, descansado, o seu cigarro.
Nisto, viu vir subindo os
(segue na 5a pagina)
degraus do balcão, com ares misteriosos e modos mesureiros, Manoel João, o casamenteiro. O ofício de casamenteiro é muito antigo nas aldeias de Goa, tão antigo como a própria instituição do casamento. Não há aldeia que não tenha o seu casamenteiro que, incumbido pelos pais com filhas casadoiras, leva a proposta à algum jovem, herdeiro rico, ou lançado na vida como funcionário público, por mais modesta que seja a sua categoria, porque um emprego público é aspiração máxima numa terra sem grandes horizontes nem perspectivas, como é a nossa. Ou então são os pais de filhos que voltam da África ou de Bombaim, com algum pecúlio, e os querem casar nas famílias de alto nível social, mas decaídas de fortuna.
Manoel João era o casamenteiro da aldeia. Pequeno proprietário, lançara mão daquela missão benfazeja que lhe dava o direito a uma percentagem sobre o dote, e comia a dois carrilhos – da família da noiva e do noivo.
Luís Bernardo, pressentindo ao que ele vinha, acolheu-o com o seu hábil ar galhofeiro: “Então, Manoel João, que bons ares o trazem a esta sua casa!”
Há muito tencionava fazer uma visita ao batcará, para saber da sua saúde”, disse Manoel João com a sua manha habitual.
“Bom, bom, não há razão para sustos. Sente-se, Manoel João, e conte como lhe corre a vida”.
“Se o batcará dá licença”, disse ele e sentou-se na extremidade de um banco. “A vida vai mal, batcará, muito mal. A minha profissão está a dar pouco. Uma crise pavorosa. Cada vez recorrem menos aos meus bons ofícios”.
“Então, que quer Manoel João? O preceito “crescei e multiplicai-vos” não se coaduna com estes tempos de vacas magras. No entanto, não me consta que alguém tenha feito voto de celibato”, disse Luís Bernardo.
“O mundo está perdido, batcará”, tornou Manoel João. “A gente nova faz pouco caso dos nossos bons e moralizadores costumes. Pegam em namoriscar e as duas por três estão casados sem se importarem com o futuro, quer dizer, com o dote nem com os conselhos dos pais”
“Mas isso é óptimo, Manoel João. Porque, afinal, quem se casa são os filhos e não os pais”.
“Vejo que está demasiadamente moralizador e pessimista, Manoel João. Então, assim, pela hora da morte, os seus bons ofícios de casamenteiro?”
“É como diz, batcará. O meu ofício não dá para mandar cantar um cego”.
“O meu amigo já fez uma razoável fortuna. Podia agora descansar e gozar o que ganhou casando os outros”.
“São mais vozes de que as nozes, batcará. Eu ando nisto devido a extrema necessidade que tenho de ganhar a vida. A propósito. Trago a proposta de filho de Manoel da Anastácia que, como sabe, voltou há pouco da África. É muito bom trabalhador, e deve dar um bom marido”.
O filho de Manoel da Anastácia que abalou há anos, quase descalço, para África? E como chegou ele a fazer fortuna, homem?”, perguntou Luís Bernardo.
“A África, como o batcará sabe, é um El-Dorado para quem tenha expediente e habildade. Dizem que o rapaz andou no mato a vender aos pretos riscado pelo preço do brocado e fez fortuna.”
“Magnifico, Manoel João! Esta proposta pode fazer a sua fortuna. Não o poupe. Ele que andou a esfolar o negro, pode enchê-lo de oiro.”
“Eu tinha pensado numa dessas filhas do batecará. É um belo partido. E a sua filha seria tratada como uma rainha.”
“Deus me livre falar-lhe nisso. Eu conheço bem as minhas filhas. O oiro nunca as tentou. Veio bater a má porta, Manoel João.”
“Para falar verdade batecará realmente a diferença de famílias é um grade empecilho. Contudo, há precedente. Como sabe, o filho de Gertrudes piladeira, que tem grandes estabelecimentos em Mombaça, onde ele é vice-consul de Portugal, casou com a filha do batcará da Casa Grande”.
“Cada um sabe as linhas com que se cose, meu amigo”, disse Luís Bernardo, causticante.
“O batcará não leve a mal o meu atrevimento. Pensei que talvez chegássemos a um entendimento e o casamento se fizesse. Visto isso, retiro-me, se me dá licença”.
“Pois bem, Manoel João. Estimei vê-lo”, disse Luís Bernardo, despedindo-o.
Manoel João levantou-se, limpou ao lenço encanado as bagas de suor que lhe perlava o rosto e, vendo goradas as suas diligências, foi descendo os degraus do balcão, arreliado com a sua vida, cabisbaixo e vexado, como um cão batido, murmurando entre dentes: “Pobres mas soberbos”.
Ao jantar, Luís Bernardo deu a novidade à família: “Sabem quem esteve cá esta tarde?”
“Quem foi”, perguntou D. Ubélia.
“Manoel João”, disse ele.
“Manoel João, casamenteiro? E o que é que ele queria pois? Quis saber Rosália, ardendo de curiosidade.”
“Vinha com a proposta do filho de Manoel da Anastácia para uma de vocês”.
“Do filho de Manoel de Anastácia que chegou há dias da África?” perguntou D. Ubélia.
“Esse mesmo. Mas eu tirei-lhe as ilusões”, disse Luís Bernardo, autoritárian.
“Deus me livre de casar com o filho de Manoel de Anastácia; nem que ele fosse pintado a oiro. Prefiro ficar solteira toda a vida”, foi o comentário tempestuoso de Rosália.
“E tu, Isabel, o que dizes?”, perguntou Luís Bernardo à filha mais nova, para a arreliar.
“Eu não quero casar. Quero ficar a fazer companhia aos meus pais”, disse Isabel, corando.
“Nesse caso terei que arranjar um ghor-zaoim, um genro estabelecido”, disse Luís Bernardo, divertido, o que a fez arreliar ainda mais.
“Não digo com o filho de Manoel de Anastácia; mas porque não hás-de casar, Isabel? Queres ficar para tia?”, disse Rosália com o seu ar chistoso, e acrescentou: “Já estou a ver a nossa Isabel de pano-baju como as tias clássicas das famílias antigas, devotas e beatas”.
E Isabel, ante a observação da irmã, conservou-se calada e cabisbaixa, e ficou a remoer o seu amuo e a sua timidez.
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