Num fim de Maio embarcou com destino à vida. Estava mar e viajar no convés foi coisa horrível. Jurou nunca mais fazê-lo. Era preciso, mas é, arranjar dinheiro para as passagens do camarote da primeira. Ali sim! Viajava-se bem, e o contraste entre as condições do convés e o luxo das cabines era demasiado abismante, para não excitar o sadismo que todo o homem possui.
Depois... tinha em casa uma mulher que era um mimo. E o filhinho recém-nascido! Porque não seria ele um reizinho, fazendo tudo quanto fazem os filhos de gente de bem?!
A manhã raiava fresca, mas sem encantos. Os encantos deixara-os todos no cais da sua terra, quando retraído e humilde, como são os do seu sangue, acenou à mulher e ao filho com o seu lenço, amarelo de tanto tempo que esteve sem uso, na “área” da sua casa. Não era o único a partir, embora de todos os mais moiro. Um irmão do batcará, rico e, ao que dizia, muito parecido com ele – a maledicência popular atribuía a esse senhor de gente de bem, a paternidade do nosso José – seria o seu futuro patrão. Ia para criado de mesa da sua casa.
O porto estava à vista. Um pouco de água suja, adocicada – chamavam a isso chá – num púcaro muito velho de alumínio e uma fatia de pão torrado, foi o seu pequeno almoço. Bebeu e comeu num instante e apertou o seu saco de viagem. Ao longe, via uma agitação que nunca vira: eléctricos, guindastes, autobus de dois andares. Mas tudo isso de nada servia: a mulher ficara em casa, grávida, à espera de novo filho, e a cuidar do outro que já tinha. Sentiu uma lágrima húmida na sua face encovada de fome. Sacudiu-a, importuna que era. A lágrima secou. O seu menino, porém, não mais lhe saiu de olhos. “Que bonito que era, e quanto eram parecidos, pai e filho”. Embocou-se e acarinhou o seu saco de viagem. O regresso não tardaria...
Já na alfândega, fizeram-lhe desarrumar o saco; mexeram-lhe em tudo e perguntaram-lhe se trazia contrabando. Borgaço, e boçal, recém-vindo da sua aldeia e atirado de chofre contra uma cidade endemoinhada, abriu muito os olhos para compreender tão misteriosa pergunta. Gaguejou um não, que lhe mereceu o sumário “suspeito”, dita seca e ciosamente pelo alfandegário. Também, não compreendeu o que dele acabavam de julgar. Sentiu o perigo só quando um guarda, pegou-lhe pela gola do casaco e arrastou-o à cela.
- Não toque no meu casaco – bradara de raiva, ao ver tão mal tratado o seu melhor “coat”.
A ninguém comoveu o seu lamento. Riram-se do “suspeito” e meterem-no na cela. Que triste surpresa! Porque o prendiam – ninguém o dizia. Nem lhe esclareciam o que seria feito da mulher e do filho que deixara na terra! Chorou de cor, amargura, incerteza e inconformismo! Arguiu o seu caso, para ele com lógica, para os outros, estupidamente. Prontificara-se a jurar pela sua inocência, pondo a mão no crucifixo. Mas não lhe aceitaremos semelhante prova de honestidade.
- Que homens, que nem no juramento acreditam? – chorou deseperado.
Aos poucos, foi-se habituando à vida da cela. Já lhe tinham revistado tudo, mas nada lhe apanharam. Depois mandaram-no despir, e quanto o ofendeu esta ordem! Foi em vão que quis ser pudibundo! Queriam-lhe ver tudo, mas tudo. Nunca sofrera semelhante vexame. Até o médico da sua aldeia, era mais compreensivo. Após o exame convenceram-se de que nada trazia.
- Mas o que posso trazer – perguntava o José – se venho aqui para levar dinheiro para a minha mulher e os meus filhos (o que tenho e o que há de nascer)?
Conservaram-no mais uns dias na cela, a pretexto de lhe extraírem confissões a respeito de “outros” contrabandistas. Mas quais “outros”? Se ele nem sequer as conhecia?
Por fim, fizeram-no comparecer num tribunal e mandaram-no em paz! Que alegria! Ia escrever à mulher, ou melhor, ia à casa do seu patrão, pedir-lhe que lhe fizesse o favor de escrever à sua mulher.
Andou à roda da cidade três dias, sem saber onde o patrão morava. Perdera a direcção, mas lembrava-se bem da descrição que lhe haviam feito do patrão. Perguntou a mil e uma pessoas, e a todos deu as indicações que sabia! Uns não lhe compreendiam a língua! Outros riram da sua ingenuidade. Até que por fim, mais por acaso do que por qualquer outra circunstância, viu o patrão, em pessoa, numa via pública. Correu para ele, e pô-lo ao corrente do que se passara.
O patrão fixou muito a sua cara, e disse, sem mais somentos:
“Julguei que já não vinha. Faz dezoito dias que contratei outro criado”
“Mas então, o que será da minha mulher e dos meus filhos (o que tenho e o que há-de nascer)?”
Não obteve resposta. Passou a mão pela cara. Tão desesperado, que nem lágrimas tinha. Sentou-se no passeio para não cair. Sem vintém no bolso; o que tinha, gastara nos três dias que andou à procura do patrão! O passeio era mais porco do que o convés do barão: papeis de todas as cores, nódoas vermelhas de betel em todo o lado! Encostou-se a um poste... dormiu e sonhou: que alívio para a fadiga! Estava rico e regressava à terra, no camarote da primeira. A mulher esperava-o no porto, com dois miúdos crescidos. Que bonitos que eram, e quanto se pareciam com ele. Agora estava rico. Era homem. Já não precisava de falar com a mulher humilde e retraidamente. Era “gente” como qualquer outro ricaço. Havia de beijá-la, como os ricos beijam quando se cumprimentam... Reparou que a mulher ainda se atrapalhava... Afastou-o de envergonhada. “Mas porquê? Se temos direito à vida como qualquer outro”. A mulher dizia que não, que ainda eram humildes e “gente pequena”. Bateu com o pé no chão, furioso que estava perante tão servil companheira.” Fê-lo com força e acordou!
Envergonhou-se da sua vaidade, do seu sonho, da sua estupidez. Levantou-se, pegou no saco e caminhou sem propósito. Estava com fome, embora sem dinheiro. “Nada há que subordine o estômago à bolsa” pensou.
A fome ia-lhe torturando o ventre. Que caimbrãs que ela fazia. Tomou coragem e entrou num restaurante. Chegou-se a um criado que parecia ser seu patrício e explicou-lhe a sua situação. Este, arranjou-lhe um emprego. Que bem! Tinha cama, mesa, trabalho e 30 rupias mensais!
Nessa mesma noite deitou ao correio uma carta para a mulher...
Afagou a carta antes de a deitar, e limpou as mãos húmidas de lágrimas, ao maro marco postal.
Agora estava menos bicho de mato. Conhecia a cidade. Esquecera, ser da aldeia. Enquanto tinha boas notícias tudo lhe correu bem! O filho, que esperava, já tinha nascido. O outro ia bem, assim diziam as cartas que lhe liam.
Depois as cartas começaram a rarear! A mulher dizia-se doente. Os filhos nunca mais ficavam livres de pequenas enfermidades. As dívidas cresciam! O barco que o trouxera, continuava a fazer viagens para a sua terra levando getne nos camarotes da 1a, e nos “decks”, e ele nem de “deck” podia viajar... tão sem dinheiro estava.
Um dia foi acusado de ter roubado trinta e tal rupias ao patrão. Foi preso . Esteve mês e qualquer coisa na polícia. Por fim, o juiz absolveu-o. Faltavam provas. Quando chegou ao quarto onde deixara o seu saco de viagem, esperava-o uma carta tarjada de negro. A mulher fora internada num hospital na enfermaria dos pobres. O seu filho mais velho falecera, por falta de dinheiro. “Que bonito que era, e quanto se parecia comigo” – soluçou. O outro filho estava também muito doente de baço. Definhava muito, enquanto a barriga crescia extraordinariamente – eram as águas da sua aldeia que provocavam semelhante mal! Depois de “ouvir” a carta pediu-a; dobrou-a, conservou-a muito juntinho ao coração, num bolso interior do casaco, pegou no saco e partiu sem destino.
Precisara de dinheiro, roubara-o, fora absolto e à sua família nenhumbem fizera. Riu-se do mundo, da justiça, dos homens e de si próprio. Lançou para longe o saco de viagem, cabriolou furiosamente e sentiu que já não estava em si. O tê-lo reconhecido, ainda mais o enlouqueceu.
Dali em diante, passou a ser o deleite da petizada. Despia em plena rua e pedia que o revistassem para verem se trazia contrabando! Quando levado à esquadra, por causar escândalo público, ria-se muito e dizia: Estou absolto! Tantas vezes lhe ouviram isso, que todos a ele se habituaram. Só os turistas achavam curioso vê-lo no meio de crianças, ora imitando o juiz, ora fazendo-se réu, ora advogado, para no fim dizer:
“Absolto!”
Depois... tinha em casa uma mulher que era um mimo. E o filhinho recém-nascido! Porque não seria ele um reizinho, fazendo tudo quanto fazem os filhos de gente de bem?!
A manhã raiava fresca, mas sem encantos. Os encantos deixara-os todos no cais da sua terra, quando retraído e humilde, como são os do seu sangue, acenou à mulher e ao filho com o seu lenço, amarelo de tanto tempo que esteve sem uso, na “área” da sua casa. Não era o único a partir, embora de todos os mais moiro. Um irmão do batcará, rico e, ao que dizia, muito parecido com ele – a maledicência popular atribuía a esse senhor de gente de bem, a paternidade do nosso José – seria o seu futuro patrão. Ia para criado de mesa da sua casa.
O porto estava à vista. Um pouco de água suja, adocicada – chamavam a isso chá – num púcaro muito velho de alumínio e uma fatia de pão torrado, foi o seu pequeno almoço. Bebeu e comeu num instante e apertou o seu saco de viagem. Ao longe, via uma agitação que nunca vira: eléctricos, guindastes, autobus de dois andares. Mas tudo isso de nada servia: a mulher ficara em casa, grávida, à espera de novo filho, e a cuidar do outro que já tinha. Sentiu uma lágrima húmida na sua face encovada de fome. Sacudiu-a, importuna que era. A lágrima secou. O seu menino, porém, não mais lhe saiu de olhos. “Que bonito que era, e quanto eram parecidos, pai e filho”. Embocou-se e acarinhou o seu saco de viagem. O regresso não tardaria...
Já na alfândega, fizeram-lhe desarrumar o saco; mexeram-lhe em tudo e perguntaram-lhe se trazia contrabando. Borgaço, e boçal, recém-vindo da sua aldeia e atirado de chofre contra uma cidade endemoinhada, abriu muito os olhos para compreender tão misteriosa pergunta. Gaguejou um não, que lhe mereceu o sumário “suspeito”, dita seca e ciosamente pelo alfandegário. Também, não compreendeu o que dele acabavam de julgar. Sentiu o perigo só quando um guarda, pegou-lhe pela gola do casaco e arrastou-o à cela.
- Não toque no meu casaco – bradara de raiva, ao ver tão mal tratado o seu melhor “coat”.
A ninguém comoveu o seu lamento. Riram-se do “suspeito” e meterem-no na cela. Que triste surpresa! Porque o prendiam – ninguém o dizia. Nem lhe esclareciam o que seria feito da mulher e do filho que deixara na terra! Chorou de cor, amargura, incerteza e inconformismo! Arguiu o seu caso, para ele com lógica, para os outros, estupidamente. Prontificara-se a jurar pela sua inocência, pondo a mão no crucifixo. Mas não lhe aceitaremos semelhante prova de honestidade.
- Que homens, que nem no juramento acreditam? – chorou deseperado.
Aos poucos, foi-se habituando à vida da cela. Já lhe tinham revistado tudo, mas nada lhe apanharam. Depois mandaram-no despir, e quanto o ofendeu esta ordem! Foi em vão que quis ser pudibundo! Queriam-lhe ver tudo, mas tudo. Nunca sofrera semelhante vexame. Até o médico da sua aldeia, era mais compreensivo. Após o exame convenceram-se de que nada trazia.
- Mas o que posso trazer – perguntava o José – se venho aqui para levar dinheiro para a minha mulher e os meus filhos (o que tenho e o que há de nascer)?
Conservaram-no mais uns dias na cela, a pretexto de lhe extraírem confissões a respeito de “outros” contrabandistas. Mas quais “outros”? Se ele nem sequer as conhecia?
Por fim, fizeram-no comparecer num tribunal e mandaram-no em paz! Que alegria! Ia escrever à mulher, ou melhor, ia à casa do seu patrão, pedir-lhe que lhe fizesse o favor de escrever à sua mulher.
Andou à roda da cidade três dias, sem saber onde o patrão morava. Perdera a direcção, mas lembrava-se bem da descrição que lhe haviam feito do patrão. Perguntou a mil e uma pessoas, e a todos deu as indicações que sabia! Uns não lhe compreendiam a língua! Outros riram da sua ingenuidade. Até que por fim, mais por acaso do que por qualquer outra circunstância, viu o patrão, em pessoa, numa via pública. Correu para ele, e pô-lo ao corrente do que se passara.
O patrão fixou muito a sua cara, e disse, sem mais somentos:
“Julguei que já não vinha. Faz dezoito dias que contratei outro criado”
“Mas então, o que será da minha mulher e dos meus filhos (o que tenho e o que há-de nascer)?”
Não obteve resposta. Passou a mão pela cara. Tão desesperado, que nem lágrimas tinha. Sentou-se no passeio para não cair. Sem vintém no bolso; o que tinha, gastara nos três dias que andou à procura do patrão! O passeio era mais porco do que o convés do barão: papeis de todas as cores, nódoas vermelhas de betel em todo o lado! Encostou-se a um poste... dormiu e sonhou: que alívio para a fadiga! Estava rico e regressava à terra, no camarote da primeira. A mulher esperava-o no porto, com dois miúdos crescidos. Que bonitos que eram, e quanto se pareciam com ele. Agora estava rico. Era homem. Já não precisava de falar com a mulher humilde e retraidamente. Era “gente” como qualquer outro ricaço. Havia de beijá-la, como os ricos beijam quando se cumprimentam... Reparou que a mulher ainda se atrapalhava... Afastou-o de envergonhada. “Mas porquê? Se temos direito à vida como qualquer outro”. A mulher dizia que não, que ainda eram humildes e “gente pequena”. Bateu com o pé no chão, furioso que estava perante tão servil companheira.” Fê-lo com força e acordou!
Envergonhou-se da sua vaidade, do seu sonho, da sua estupidez. Levantou-se, pegou no saco e caminhou sem propósito. Estava com fome, embora sem dinheiro. “Nada há que subordine o estômago à bolsa” pensou.
A fome ia-lhe torturando o ventre. Que caimbrãs que ela fazia. Tomou coragem e entrou num restaurante. Chegou-se a um criado que parecia ser seu patrício e explicou-lhe a sua situação. Este, arranjou-lhe um emprego. Que bem! Tinha cama, mesa, trabalho e 30 rupias mensais!
Nessa mesma noite deitou ao correio uma carta para a mulher...
Afagou a carta antes de a deitar, e limpou as mãos húmidas de lágrimas, ao maro marco postal.
Agora estava menos bicho de mato. Conhecia a cidade. Esquecera, ser da aldeia. Enquanto tinha boas notícias tudo lhe correu bem! O filho, que esperava, já tinha nascido. O outro ia bem, assim diziam as cartas que lhe liam.
Depois as cartas começaram a rarear! A mulher dizia-se doente. Os filhos nunca mais ficavam livres de pequenas enfermidades. As dívidas cresciam! O barco que o trouxera, continuava a fazer viagens para a sua terra levando getne nos camarotes da 1a, e nos “decks”, e ele nem de “deck” podia viajar... tão sem dinheiro estava.
Um dia foi acusado de ter roubado trinta e tal rupias ao patrão. Foi preso . Esteve mês e qualquer coisa na polícia. Por fim, o juiz absolveu-o. Faltavam provas. Quando chegou ao quarto onde deixara o seu saco de viagem, esperava-o uma carta tarjada de negro. A mulher fora internada num hospital na enfermaria dos pobres. O seu filho mais velho falecera, por falta de dinheiro. “Que bonito que era, e quanto se parecia comigo” – soluçou. O outro filho estava também muito doente de baço. Definhava muito, enquanto a barriga crescia extraordinariamente – eram as águas da sua aldeia que provocavam semelhante mal! Depois de “ouvir” a carta pediu-a; dobrou-a, conservou-a muito juntinho ao coração, num bolso interior do casaco, pegou no saco e partiu sem destino.
Precisara de dinheiro, roubara-o, fora absolto e à sua família nenhumbem fizera. Riu-se do mundo, da justiça, dos homens e de si próprio. Lançou para longe o saco de viagem, cabriolou furiosamente e sentiu que já não estava em si. O tê-lo reconhecido, ainda mais o enlouqueceu.
Dali em diante, passou a ser o deleite da petizada. Despia em plena rua e pedia que o revistassem para verem se trazia contrabando! Quando levado à esquadra, por causar escândalo público, ria-se muito e dizia: Estou absolto! Tantas vezes lhe ouviram isso, que todos a ele se habituaram. Só os turistas achavam curioso vê-lo no meio de crianças, ora imitando o juiz, ora fazendo-se réu, ora advogado, para no fim dizer:
“Absolto!”
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