O autor do artigo que se vai ler é sr. dr. Agostinho Fernandes, médico goês, hoje radicado nas Caldas da Rainha. É autor de um romance intitulado Bodki, com capa de Anita Estibeiro, publicado em Lisboa. É o segundo romance adulto goês (o primeiro é, como se sabe, Signo da Ira de Orlando da Costa), ambientado em Goa, numa região sertaneja, onde exercia a profissão de médico e em que dominava a figura de mau agoiro de uma viúva hindu de cabeça rapada)
Após um dia particularmente laborioso e fatigante estava a descansar o espírito por uns momentos olhando distraído para o pequeno escran do televisor. Entre dois programas, a Rádio-Televisão Portuguesa mimoseou-nos com uma canção, já antiga, mas bela, na voz de Rui Mascarenhas:
Oh, minha terra
Onde eu nasci,
Quantas saudades
Eu tenho de ti
E foi naquele preciso instante que tudo começou: uma imensa saudade, em ondas sucessivas, apoderou-se dos confins mais recônditos da minha alma, uma lágrima furtiva brotou no canto do olho e um soluço, em no, estrangulou-me a garganta... Sim, bruscamente, que saudades eu senti da minha querida Goa e dos entes queridos e dos amigos que lá deixei... Seguiu-se uma noite semeada de horríveis pesadelos como que expiação de tenebrosas culpas e, ao acordar, tinha já a decisão tomada: sigo para Goa o mais depressa possível! A minha habitual agência de viagens informou-me que havia um voo para Bombaim, via Frankfurt, ainda esta semana e que poderia estar em Goa já na próxima sexta-feira.
É o que vou fazer. Em poucos dias estarei contigo, Goa querida. Não vou de vez, não! Ainda não!... Mas prometo estar lá muito tempo, um mês inteiro, pois tenho muitas saudades para matar, muita vida para reviver... Não vou só, levo a família toda, a mulher e os filhos, para te verem mais uma vez, para te quererem, para te amarem...
Pois é, Goa, dentro em pouco estarei lá...
Gostaria de chegar encoberto ainda pelas brumas do alvorecer para ninguém me ver chorar ao abraçar a minha mãezinha, os meus irmãos e sobrinhos, os meus velhos e queridos amigos e neles, Goa inteira, naquele abraço sufocante, feito de amor e saudade...
Gostaria de chegar bem de madrugada para, do alto de Dabolim, ver o sol raiar lá pelas bandas dos Gates efusivamente saudado pelo desconcertado chilrear da passarada...
Pois é Goa, dentro em pouco estarei lá...
Quero rever os cantos e os recantos da minha casa onde, num gatinhar desenfreado primeiro e depois num andar trémulo e indeciso, fui tomando contacto com a imensidão do mundo que me era ofertado na palma da mão ainda insegura, logo ao balbuciar as primeiras palavras...
Quero mostrar ao meu rebento mais novo a goiabeira gigante, mesmo ao lado da casa, sobre a qual por horas infindas me pendurava saboreando o delicioso agridoce das goiabas mais além onde, no topo, colocava a comprida haste de bambu impregnada de visco de jaca para apanhar os periquitos mais incautos, e ainda, o coqueiro mais alto lá do sítio, quase a tocar o céu, que eu um dia subi, até à copa, em temerária aposta com um amiguinho meu e que me valeu um exemplar correctivo da parte do meu pai, que Deus tem. Que saudades...
Ao outro filho meu, ainda mais traquinas que eu com igual idade, o tal que também herdou o vício de pesca quero mostrar o sítios secretos do rio, até hoje ciosamente guardados, a curva mais fechada, o fundo mais acidentado, onde o peixe é mais abundante, mais graúdo e quiçá mais saboroso... Que saudades, Goa, que saudades...
Pois é verdade, dentro em pouco estarei lá... Tenho muito que rever...
Quero saltitar por Goa inteira, de Tiracol a Galgibaga, de Castle-Rock até a costa de Malabar...
Quero visitar as ruínas da minha escola primária, onde a velha profissora Adelaide me ensinou as primeiras letras e os primeiros algarismos à custa de muitas palmatoadas e puxões de orelhas... Sim, tembém disso tenho saudades...
Quero visitar, subindo demoradamente a escadaria monumental do antigo Liceu Afonso de Albuquerque, onde os queridos mestres passaram tormentos sem fim nas nossas mãos, vítimas favoritas das nossas mãos, vítimas favoritas das nossas rudes brincadeiras, tão estouvadas que nos éramos...
Quero visitar o edifício da gloriosa Escola Médica, momumento vivo de antanho, onde, a par de alguma ciência, na altura bem pouca ainda, nos enriquecemos de amor pelo próximo e de profundo respeito pelos que sofrem...
Tenho muito que fazer, Goa... Mas tenho tempo, um mês inteiro...
Acompanhado do meu primogénito, o buço a romper-lhe já pelo rosto semeado de borbulhas, quero rodopiar nas festas de AVC ou quejandas, ao som das ternas melodias da “Rádio Serenaders” ou , já em trejeito de fim de baile, o sol a querer entrar à força pelas janelas dos Clubes Nacional e Vasco da Gama, ouvir extasiado o mágico violino do Johnson acompanhado do veludo da sua lânguida voz a murmurar quase em prece: “au revoir... j’attendrai... cette nuit...”
Tenho muitas saudades para matar...
Em loucas correrias quero caminhar pelas escaldantes areias da praias de Calangute, Baga, Colvá, Betul, Agondá, Palolém, quero banhar-me vezes sem conta na láctea espuma das tépidas e salsas águas, quero dormir sob a copiosa sombra dos coqueiros, docemente embalado pelas brisas, e sonhar...
Quero percorrer de ponta a ponta os bazares de Margão, Pangim, Mapuçá, regatear com as peixeiras, discutir sem razão com os vendedores de bugigangas...
Em dia de festa, quero saborear um “ambott tic” de cação como só a minha mãe sabe fazer, um “chacuti” de cabrito com não há no mundo outro igual, meu Deus, como sinto a água crescer-me na boca – e, para rematar, arroz com caril de cavalas a cheirar a olorosas “teofollamm”... Uma talhada de papaia bem madurinha e ainda uma boa fatia de bebinca de sete folhas que ficara, metade no prato, por comer por o estômago já não aguentar mais.. Por fim um cálice de “fenim” de caju para “tudo digerir”, como diria o meu impedido quando andei na tropa... Será que ainda se come em Goa? Que diabo, e festa e um dia não são dias.
Mas há mais coisas que tenho de fazer em Goa...
Está próximo o Setembro e as suas bucólicas alegrias... Quero ouvir os cânticos das ceifeiras em ondulantes searas, louras espigas de arroz a amontoarem-se nas eiras, os altos montículos de palha na paisagem...
E depois, quando a faina estiver terminada, o “bate” a bom recanto nos celeiros, quero assistir, uma vez só, ah, isso sim! A terrível fúria dos elementos da natureza, os ventos ululantes a fustigarem a escura noite de breu, os relâmpagos a riscarem os céus em compridas e tortuosas serpentes, os trovões a ecoarem por montes e vales, grossos cordões de chuva a despejarem-se ininterruptamente do firmamento esburacado... As terríveis “chuvas da terra”, como sempre as temi, como sempre as adorei!...
E ao entardecer, em religioso silêncio, quero deleitar-me em contemplar o sol no ocaso, o oceano a arder aos poucos, todo fogo liquido, dum amarelo alanjarado, com laivos de sangue.
E, à noite, em Pangim, de braço dado a minha mulher, o luar a desfazer-se em poalha doirada nas águas do Mandovi, quero passear pelo Campal, quase em romagem de saudade, rememorando as recordações das inesquecíveis serenadas, contando-lhe o desfazer dos inconsequentes namoros, frutos imaturos de turbulenta adolescência, as juras nunca compridas, os sonhos, jamais realizados...
Pois é, Goa, a minha vida não é mais que um rosário de recordações...
Sim, quero ainda ver novamente o cais de Mormugão, aquele tirano, onde, uma vintena de anos atrás me vi, de repente, quase sem dar por isso, encostado a murada do navio “Índia”, os olhos a turvarem-se de lágrimas e, o barco a distanciar-se dos lenços a dizerem adeus, dos coqueiros a abanarem os longos braços a terra a desaparecer numa nuvem esbatida e, à nossa frente, impiedoso, o negro oceano a raptar-nos para a Europa distante...
Fomos em busca de novos horizontes, para conhecer novos mundos e novas gentes, mas a saudade... conseguiu vingar, cresceu, agigantou-se... e, por isso, em breve estarei lá!
Então, Goa querida, até sexta-feira, se Deus quiser...
Saturday, 29 October 2011
António Colaço - Apreciação de Mariano Gracias (1965)
O doce poeta da Saudade, da esperança e do Amor, Mariano Gracias, com o seu lirismo insinuante e cândido, deixou algumas produções que bem merecem um sucinto estudo, adentro da orientação a que, em boa hora, se subordinam os programas desta Emissora. No domínio da poesia subjectiva, com o seu verso correntio e fácil, enriquecendo às vezes de fortes tintas orientais, próprias de um artista que bebeu a sua inspiração no ardente “Súrya” tropical, o poeta goês, vivendo entre a saudade da Índia e a saudade de Portugal, numa alternância em que o subjuga, porém, a sua vincada ancestralidade oriental, produziu uma obra decerto irregular e desconexa, mas sempre animada daquela sinceridade e pathos que são a característica da verdadeira poesia.
De um físico impressionante e aristocrático, o rosto coroado por uma grenha densa e exuberante e rematado por amplas barbas grisalhas (é assim que o vi, um dia, fugazmente, num dos seus ‘regressos ao lar’), a poesia estava-lha no corpo e na alma e a sua obra denuncia bem que se tratava, realmente de alguém que (como ele diz) “sonhara” que sonho a vida se resume! No Jardim das Musas goesas, não pretendeu reivindicar um canteiro privilegiado. Contentou-se com uma álea humilde, que regou carinhosamente com o seu sorriso, a sua doçura, a sua dor. No post scriptum do seu livro “O Crespúsculo da Saudade”, escrevia modestamente:
“Quando eu morrer, que mão piedosa vá pôr sobre o meu raso coval apenas uma cruz, de bronze ou ferro, - símbolo da fé cristã em que hei vivido e conto acabar – atravessada por um raio, símbolo da vida, que, na sua rápida passagem, fosse escrevendo nela esta profunda palavra – “Nihil”. E, no sopé da cruz, estas quatro linhas, seguidas do meu obscuro nome:
Aqui dorme quem, em suma,
Sempre amou o Belo e o Bem,
Quem jamais foi cousa alguma,
Nunca passou de ninguém
Um eco distante do celebre Cinis, Pulvis et Nihil de D. Custódio de Pinho. Ponto de encontro (espontâneo!) entre os que seguem, cada um à sua maneira, a linha do Espírito. A atitude poética de Mariano Gracias (e de tantos outros poetas) é, de um modo geral, a mesma que a da Santa de Lisieux: a da Infância Espiritual. Os mesmos olhos ingénuos e claros, abertos a tudo quanto há de mais belo e nobre na vida, candura, inocência, abandono. Claro que o confronto acaba aí. Seria ousado pretender transferir para o ambiente humilde do Poeta os transcendentes e arrojados voos da Florzinha do Carmelo. “Sou criança também!...”, dizia timidamente o nosso poeta, se bem que, obtectivando logo a distancia que separa a infância real da infância de espírito, tivesse de confessar, um dia, soluçando:
Que é dessa infância perfumada e leve
Desse mocidade de rubro sal loiro?
Que é do passado, que foi que ele teve?
Que é da quimera que se evolou breve?
Que é dessa luz, desse sol, desse oiro?!
De um físico impressionante e aristocrático, o rosto coroado por uma grenha densa e exuberante e rematado por amplas barbas grisalhas (é assim que o vi, um dia, fugazmente, num dos seus ‘regressos ao lar’), a poesia estava-lha no corpo e na alma e a sua obra denuncia bem que se tratava, realmente de alguém que (como ele diz) “sonhara” que sonho a vida se resume! No Jardim das Musas goesas, não pretendeu reivindicar um canteiro privilegiado. Contentou-se com uma álea humilde, que regou carinhosamente com o seu sorriso, a sua doçura, a sua dor. No post scriptum do seu livro “O Crespúsculo da Saudade”, escrevia modestamente:
“Quando eu morrer, que mão piedosa vá pôr sobre o meu raso coval apenas uma cruz, de bronze ou ferro, - símbolo da fé cristã em que hei vivido e conto acabar – atravessada por um raio, símbolo da vida, que, na sua rápida passagem, fosse escrevendo nela esta profunda palavra – “Nihil”. E, no sopé da cruz, estas quatro linhas, seguidas do meu obscuro nome:
Aqui dorme quem, em suma,
Sempre amou o Belo e o Bem,
Quem jamais foi cousa alguma,
Nunca passou de ninguém
Um eco distante do celebre Cinis, Pulvis et Nihil de D. Custódio de Pinho. Ponto de encontro (espontâneo!) entre os que seguem, cada um à sua maneira, a linha do Espírito. A atitude poética de Mariano Gracias (e de tantos outros poetas) é, de um modo geral, a mesma que a da Santa de Lisieux: a da Infância Espiritual. Os mesmos olhos ingénuos e claros, abertos a tudo quanto há de mais belo e nobre na vida, candura, inocência, abandono. Claro que o confronto acaba aí. Seria ousado pretender transferir para o ambiente humilde do Poeta os transcendentes e arrojados voos da Florzinha do Carmelo. “Sou criança também!...”, dizia timidamente o nosso poeta, se bem que, obtectivando logo a distancia que separa a infância real da infância de espírito, tivesse de confessar, um dia, soluçando:
Que é dessa infância perfumada e leve
Desse mocidade de rubro sal loiro?
Que é do passado, que foi que ele teve?
Que é da quimera que se evolou breve?
Que é dessa luz, desse sol, desse oiro?!
Vivendo como um forcado entre o estreito âmbito de uma... repartição pública (a grilheta de tantas poetas!) e um lar feliz, inundado de poesia – “a felicidade suprema e encantadora do meu pequenino lar abençoado de Deus”, dizia o poeta, referindo-se à família – a sua existência decorria naturalmente no mesmo ramerrão de amarguras e de alegrias que o dos restantes mortais, mas transfigurada em perene sonho pela sua alma de Poeta. É nesse lar que, num encantamento, ele pôde beber a inspiração para esta poesia de um lirismo enternecedor e simples:
Canção do Berço
A minha mulher, para adormecer Wanda
Canção do Berço
A minha mulher, para adormecer Wanda
Água da fonte que canta,
Água do mar que murmura,
É ter mão nessa garganta
Que fale com mais brandura,
Folha de árvore que treme,
Ave que pia no ninho,
Roda da nora que geme,
Mais baixinho... mais baixinho.
Nuvem que no espaço corre,
Asa que passa no ar,
Água da rocha que escorre,
Devagar... mais devagar.
Onda que suspira e rola
Ave que vai de caminho,
Fumo do lar que se evola
Devagar... devagarinho.
Moinho que cantas e giras,
Mosca que fazes zumbido,
Vento agreste que suspiras,
Cessai com vosso ruído.
Pomba que estás no telhado,
Folha que rolas no chão,
Tende cautela, cuidado,
Não faças barulho, não!
Carro que chias na estrada,
Eco que vem desse vale,
Deixai-a dormir coitada
Que passou a noite mal.
Voa mais longe, andorinha,
Não ma venhas despertar,
Anda muito doentinha,
Deixa-a dormir, descansar.
Ai que está muito doente
A minha rica menina!
Ai de quem é inocente!
Ai de quem é pequenina!
Dorme, dorme, filha q’rida,
Que o dormir a dor acalma,
Ó vida da minha vida!
Ó alma da minha alma!
É ter mão nessa garganta
Que fale com mais brandura,
Folha de árvore que treme,
Ave que pia no ninho,
Roda da nora que geme,
Mais baixinho... mais baixinho.
Nuvem que no espaço corre,
Asa que passa no ar,
Água da rocha que escorre,
Devagar... mais devagar.
Onda que suspira e rola
Ave que vai de caminho,
Fumo do lar que se evola
Devagar... devagarinho.
Moinho que cantas e giras,
Mosca que fazes zumbido,
Vento agreste que suspiras,
Cessai com vosso ruído.
Pomba que estás no telhado,
Folha que rolas no chão,
Tende cautela, cuidado,
Não faças barulho, não!
Carro que chias na estrada,
Eco que vem desse vale,
Deixai-a dormir coitada
Que passou a noite mal.
Voa mais longe, andorinha,
Não ma venhas despertar,
Anda muito doentinha,
Deixa-a dormir, descansar.
Ai que está muito doente
A minha rica menina!
Ai de quem é inocente!
Ai de quem é pequenina!
Dorme, dorme, filha q’rida,
Que o dormir a dor acalma,
Ó vida da minha vida!
Ó alma da minha alma!
Coração, não batas tanto,
Não batas, tem dela dó,
Dorme, filha, meu encanto,
Dorme, dorme, amor, o’, o’...”
Os dois primeiros versos desta última quadra são, como se vê, uma interessante trouvaille...
Como é sabido, o Poeta levava sempre na alma a doce luz da Crença, bruxoleante às vezes, mas logo intensa, e vemo-lo um dia cantando, num dos seus “regressos ao lar”, na cidade (ou vila) de Margão, onde nescera:
“É neste monte que a Virgem mora,
Na ermida branca, branca de luz,
P’ra cá vinha eu rezar outrora...
Com fé igual eu venho, Senhora,
Dar-Te a minha alma, mãe de Jesus!
Ó minha irmã! Que tardes amenas
Quando íamos juntos com a nossa mãe
Levar-Lhe flores para as novenas,
Pedir-Lhe alivio p’ra as nossas penas!
- Magoas e dores quem os não tem?!
Quando eu um dia deixei meu lar,
Ao pé do monte em que ora estou,
Em longes terras e sobre o mar
Aquele doce e bendito olhar
Em toda a parte me acompanhou...”
Claro que o Poeta – cumpre notar – nos poderia oferecer, do seu vasto e rico Cancioneiro, braçadas de flores de um colorido dessemelhante e variegado desde “O amor não se explica”:
(“Porque te amo... Sei lá, eu?
Acaso sabes tu, filha,
Porque se ama o azul do céu
E o clarão dos sol que brilha?)
Até esta quadra risonha e maliciosa, dir-se-ia cantada ao desafio:
Quem canta seu mal espanta,
Diz o popular ditado;
Mas quando aquele que canta
Não canta desafinado...
Como consta de “A Bíblia do amor”, Fialho comentando amavelmente o poemeto “Regresso ao Lar”, escrevia a Mariano Gracias: “As estrofes são lindas, o veio poético fácil, a emoção profunda e comunicativa, a forma a mais não cantante e vaporosa...” O furibundo critico amainava perante a doçura e a brandura de um Poeta perdido no seu ideal e no seu sonho.
Onde, porém, Mariano Gracias parece ter atingido a plena maturidade da sua vis poética, embora perdendo-se em extravagâncias devaneios e em exuberâncias de colorido, é no opúsculo “Terra de Rajás”, em que pinta a nossa encantadora Terra-Mater como que num deslumbramento, e do qual o próprio Poeta diz com carinho: “Não sei se este é o melhor livro; mas é o mais querido”.
Depois de registar este cândido desabafo num cartão de parabéns”
A Malaquite e o Corall
Dorme, filha, meu encanto,
Dorme, dorme, amor, o’, o’...”
Os dois primeiros versos desta última quadra são, como se vê, uma interessante trouvaille...
Como é sabido, o Poeta levava sempre na alma a doce luz da Crença, bruxoleante às vezes, mas logo intensa, e vemo-lo um dia cantando, num dos seus “regressos ao lar”, na cidade (ou vila) de Margão, onde nescera:
“É neste monte que a Virgem mora,
Na ermida branca, branca de luz,
P’ra cá vinha eu rezar outrora...
Com fé igual eu venho, Senhora,
Dar-Te a minha alma, mãe de Jesus!
Ó minha irmã! Que tardes amenas
Quando íamos juntos com a nossa mãe
Levar-Lhe flores para as novenas,
Pedir-Lhe alivio p’ra as nossas penas!
- Magoas e dores quem os não tem?!
Quando eu um dia deixei meu lar,
Ao pé do monte em que ora estou,
Em longes terras e sobre o mar
Aquele doce e bendito olhar
Em toda a parte me acompanhou...”
Claro que o Poeta – cumpre notar – nos poderia oferecer, do seu vasto e rico Cancioneiro, braçadas de flores de um colorido dessemelhante e variegado desde “O amor não se explica”:
(“Porque te amo... Sei lá, eu?
Acaso sabes tu, filha,
Porque se ama o azul do céu
E o clarão dos sol que brilha?)
Até esta quadra risonha e maliciosa, dir-se-ia cantada ao desafio:
Quem canta seu mal espanta,
Diz o popular ditado;
Mas quando aquele que canta
Não canta desafinado...
Como consta de “A Bíblia do amor”, Fialho comentando amavelmente o poemeto “Regresso ao Lar”, escrevia a Mariano Gracias: “As estrofes são lindas, o veio poético fácil, a emoção profunda e comunicativa, a forma a mais não cantante e vaporosa...” O furibundo critico amainava perante a doçura e a brandura de um Poeta perdido no seu ideal e no seu sonho.
Onde, porém, Mariano Gracias parece ter atingido a plena maturidade da sua vis poética, embora perdendo-se em extravagâncias devaneios e em exuberâncias de colorido, é no opúsculo “Terra de Rajás”, em que pinta a nossa encantadora Terra-Mater como que num deslumbramento, e do qual o próprio Poeta diz com carinho: “Não sei se este é o melhor livro; mas é o mais querido”.
Depois de registar este cândido desabafo num cartão de parabéns”
A Malaquite e o Corall
A João de Vilhena
“no dia do seu noivado oferecendo-lhe um par de botões de malaquite e coral”
Lisboa, 7/IX/1918
Diz do mais pais a lenda
Que o malaquite e o coral
Andam em rija contenda
Contra o azar e contra o mal
São talismãs de ventura
Amuletos de fortuna,
Mas quando alguém porventura,
Por um fio de oiro os una,
São símbolos de bonança,
Antídoto contra o mal;
Malaquite: verde-esperança,
Cor de alegria o coral!
Eis pois a razão da prenda,
- Bem pobre, mas singular –
Sou índio, creio na lenda
- Seja feliz o teu lar/”
... vai logo o Poeta, em sucessivos arroubos, até às estrofes candentes da “Oração ao Surya” ou da “Ilha Encantada” (onde, por entre delírios de imaginação e exageros picturais, encontramos versos tão límpidos e perfeitos como estes: “Que linda noite de luar florido – Qual virgem a noivar de lírio ao peito! – Luar de opala em leite diluído – Um luar de diamante liquefeito!”), ou até às estâncias mais equilibradas do “Génio da Raça” ou da “Sundorém”, para amainar logo no transposição, em verso fluído e cantante, de “As três lendas indianas” e na recomposição poética de uma outra velha lenda, a que dá o título de “Metempsicose”, tão justamente louvada, no seu valioso estudo critico da Literatura Indo-Portuguesa, pelo Rev. Filinto Cristo Dias.
A um goês fala, evidentemente, mais de perto este mimoso soneto que, a despeito de certos desvios ou licenças poéticas, exalta em nós o verdadeiro amor filial à Terra-Mater, que tão perto devia estar sempre do nosso coração:
Goa
“no dia do seu noivado oferecendo-lhe um par de botões de malaquite e coral”
Lisboa, 7/IX/1918
Diz do mais pais a lenda
Que o malaquite e o coral
Andam em rija contenda
Contra o azar e contra o mal
São talismãs de ventura
Amuletos de fortuna,
Mas quando alguém porventura,
Por um fio de oiro os una,
São símbolos de bonança,
Antídoto contra o mal;
Malaquite: verde-esperança,
Cor de alegria o coral!
Eis pois a razão da prenda,
- Bem pobre, mas singular –
Sou índio, creio na lenda
- Seja feliz o teu lar/”
... vai logo o Poeta, em sucessivos arroubos, até às estrofes candentes da “Oração ao Surya” ou da “Ilha Encantada” (onde, por entre delírios de imaginação e exageros picturais, encontramos versos tão límpidos e perfeitos como estes: “Que linda noite de luar florido – Qual virgem a noivar de lírio ao peito! – Luar de opala em leite diluído – Um luar de diamante liquefeito!”), ou até às estâncias mais equilibradas do “Génio da Raça” ou da “Sundorém”, para amainar logo no transposição, em verso fluído e cantante, de “As três lendas indianas” e na recomposição poética de uma outra velha lenda, a que dá o título de “Metempsicose”, tão justamente louvada, no seu valioso estudo critico da Literatura Indo-Portuguesa, pelo Rev. Filinto Cristo Dias.
A um goês fala, evidentemente, mais de perto este mimoso soneto que, a despeito de certos desvios ou licenças poéticas, exalta em nós o verdadeiro amor filial à Terra-Mater, que tão perto devia estar sempre do nosso coração:
Goa
(O Goa, céu d’amores
Veneza oriental!
Canais por entre as flores,
Palhetas de mil cores,
No murmuro cristal! – Tomás Ribeiro)
Dezembro. Manhã linda e gloriosa!
Sob a bênção do sol, a Natureza,
Comovida e ridente, canta e reza
A velha prece ardente e misteriosa!...
Passam terrais, em onda harmoniosa,
Espalhando perfumes!... Há beleza,
Frescura, encanto, em toda a redondeza,
A grande paz sagrada e religiosa!...
Toda perfume é um encanto a Goa!
Florida, de mil lótus a lagoa
É uma linda noiva engrinaldada!
Terra de rajás, moiras encantadas,
Diamantes, rubis, pérolas, esmeraldas!...
- Eis a ditosa Pátria minha amada!
Canais por entre as flores,
Palhetas de mil cores,
No murmuro cristal! – Tomás Ribeiro)
Dezembro. Manhã linda e gloriosa!
Sob a bênção do sol, a Natureza,
Comovida e ridente, canta e reza
A velha prece ardente e misteriosa!...
Passam terrais, em onda harmoniosa,
Espalhando perfumes!... Há beleza,
Frescura, encanto, em toda a redondeza,
A grande paz sagrada e religiosa!...
Toda perfume é um encanto a Goa!
Florida, de mil lótus a lagoa
É uma linda noiva engrinaldada!
Terra de rajás, moiras encantadas,
Diamantes, rubis, pérolas, esmeraldas!...
- Eis a ditosa Pátria minha amada!
Eduardo de Sousa - Saudades (1979)
I
É um quadro vivaz de natureza
Ver a seara viçosa quão ardente
Flutuando sob a brisa corrente
Cheia de calor e tanta beleza.
Mote
Em Candolim o Sol-Poente
Bola de fogo em brasa acesa
À minha alma diz comovente
É um quadro vivaz de natureza
II
Contemplada aquela grandeza
Tomo rumo pelo nascente
Para contrastar aquela viveza
Ver a seara viçosa quão ardente
III
Extasiado, medito na estranheza
E nas agruras do presente
Miro a Bandeira Portuguesa
Flutuando sob a brisa corrente
IV
Lembro-me de Goa florescente
Dos dias em que esta princesa
Tinha vida tão diferente
Cheia de calor e tanta beleza.
É um quadro vivaz de natureza
Ver a seara viçosa quão ardente
Flutuando sob a brisa corrente
Cheia de calor e tanta beleza.
Mote
Em Candolim o Sol-Poente
Bola de fogo em brasa acesa
À minha alma diz comovente
É um quadro vivaz de natureza
II
Contemplada aquela grandeza
Tomo rumo pelo nascente
Para contrastar aquela viveza
Ver a seara viçosa quão ardente
III
Extasiado, medito na estranheza
E nas agruras do presente
Miro a Bandeira Portuguesa
Flutuando sob a brisa corrente
IV
Lembro-me de Goa florescente
Dos dias em que esta princesa
Tinha vida tão diferente
Cheia de calor e tanta beleza.
Telo de Mascarenhas - Crónica de Viagem (1978)
Sempre que víamos o barco de carreira de Bombaim atracado ao cais da Alfândega, um imenso anseio enchia o nosso peito de aventura pelas Sete Partidas do Mundo, sulcando sete rios e sete mares; de percorrer os cinco Continentes (que os ingleses alargaram para seis, partindo a América em duas, talvez para dar maior dimensão aos seus domínios, quando eram senhores da Terra e do Mar, onde o Sol nunca se punha).
Uma bela manhã de princípios de Janeiro, ligeiramente friorenta, tirámo-nos de cuidados para dar realidade ao nosso anseio e metemo-nos num daqueles Leviathans de cabotagem (à cautela, porque hoje em dia os desastres de avião frequentes, não se sabe se por os Jumbos estarem a pedir repouso nalguma estancia de sucatas ou por mãos criminosas e vingativas, com fins políticos, esconderem bombas no seu bojo, como quem esconde mata-ratos na cave).
Mal largou as amarras, o Konkan Shakti, pesadão e negro como um albatroz, foi descendo o rio abaixo, com a cidade desbobinando-se com as suas imagens policrómicas de caleidoscópio e, na outra margem, com os perfis de fortes aparatosas, meio desmantelados e inúteis eriçados de guaritas e ameias negros e soturnos como se ainda sentissem mouro na costa – fortes que estão a pedir camartelo demolidor para que deles não fique pedra sobre pedra e memória sinistra de prisões políticas, para arejar e alindar esta terra outrora tão cobiçada pelos soldados de aventura e pelos buscadores de fortuna; mas sempre bela, sempre verde e sempre procurada pelos turistas que vão de cá desiludidos por falta de alojamento condignos a condizer com a beleza paisagística, as praias encantadoras e os monumentos artísticos. Goa, hoje em dia, abunda em hippies seminus, esfarrapados, escanzelados, entregues ao tráfico de estupefacientes, com o que unicamente evidenciam o seu desprezo pela Nossa Terra e pela Nossa Gente, coisa que, de certo, na sua própria terra não lhes é permitido. Mas os nossos governantes, seduzidos pelo brilho das divisas estrangeiras, fecham os olhos à realidade e deixam que eles conspurquem e intoxiquem a nossa juventude e as nossas belezas naturais.
Viajar com a mulher e a bagagem (ambas femininas), coisa incómoda, por elas demandarem cuidados e atenções. Não há nada mais cómodo como viajar só com uma malinha de mão, com a qual se pode ir, comodamente, até o fim do mundo e, com um pouco de boa vontade, até para o outro mundo.
O sol doira o mar e o horizonte no ocaso, e a noite tropical desce bruscamente para envolver a terra e o mar no seu manto de veludo negro. Vem a lua de prata e a poalha de estrelas. Só os faróis, de longe em longe, piscam seu olho faiscante de Ciclope para avivar a navegação do perigo à proa. Às 20:30 passa, emproado e garboso, todo salpicado de clarões de luz, soltando mugidos roucos atroadores da sirene, o irmão gémeo do nosso – o Konkan Sevak.
As sete de manhã já se avista Bombaim, ainda sonolenta e embrulhada no seu xaile de neblina parda. O sol já acima do horizonte é como um muhur de oiro remirando-se nas águas paradas e glaucas da baía, qual Narciso para atrair “as sereias, que no fundo do mar, dançam sobre as areias” na velha canção da nossa infância. O bruhaha das horas do desembarque. Os passageiros pressurosos em chegar ao seu destino. Assalto aos táxis e a exigência dos bagageiros, que amenizam o tom à aproximação do policia, para condescender: “de o que estiver na vontade do freguês.” O táxi tem de abrir passagem à força de buzinadelas, por entre a multidão de gente grulhante que peja as ruas. Apesar de o Congresso estar dividido nunca se viu tanto Gandhi-cap, em manhãs como esta, nas ruas circundantes ao cais.
Bombaim, terra de exílio tão nossa conhecida, onde andamos empenhados, durante anos, na luta fecunda e apaixonante, empunhando o facho ardente e triunfante de “Ressurge, Goa!” Bombaim, que cresceu verticalmente, com os arranha-céus, como uma floresta de cimento, parecendo querer topetar o céu. A arquitectura vitoriana cedeu o passo aos multi-storeys modernos de Bacbay e Cuffe Parade.
Chegámos, enfim, ao cabo do nosso roteiro Goa-Bombaim – dois esteios do defunto Império Colonial Português no Oriente. Goa sob a durindana implacável de Albuquerque o Terríbil e Bombaim que já no século 17 deixou de ser portuguesa por o rei D. João IV a ter dado em dote a sua filha D. Catarina de Bragança ao casá-la com Carlos 2o, da Inglaterra e onde um Garcia, curioso das plantas, medicinais da Índia, tinha uma quinta, pelo que ficou sendo conhecido entre os seus amigos íntimos (que fazem sempre melhor cama), pela alcunha “O da Orta.” Aquele Garcia da Orta ganhou fama com o seu livro do ‘Colóquios sobre Simples e Drogas e Plantas Medicinais da Índia.”
Já em terra firme, libertos do espaço acanhado da cabina e da estreiteza da tolda onde os ‘passos perdidos’ não podiam estender-se muito, ocorreu-nos à memória a quadra do “Pescador de Pérolas” do drama ‘Sundorem’, do elenco do Grupo Teatral:
Mar alto, mar alto, mar alto,
Mais alto que eu sulco de escaler;
Mais vale andar no mar alto,
Do que sujeito ao capricho de mulher.
As frequentes evasões de Goa para Bombaim ou Nova Delhi concorrem para nos mergulhar no banho de civilização e para rejuvenescer o nosso espírito, proporcionando-nos o ensejo de assistir a diversas manifestações intelectuais, tais como a inauguração de exposições de manuscritos preciosos e livros raros, organizada pela Asiatic Society of Bombay, no Durbar Hal do majestoso Town Hall, exposições de arte (pintura e escultura), conferências científico e literárias, dramas e bailados, e a excursão pelo inextricável “Filmland” e, em especial, o magnífico “Planetárium”, maravilha da ciência moderna de perscrutar os astros de que os próprios Aryabhata, Copérnico e Galileu se orgulhariam: os grandes comícios do Shivaji Park, que não se realizaram devido às rivalidades internas do próprio partido no poder, para gáudio de indígena e das facções do Congresso, e para amargurar a vida politica do Primeiro-Ministro, Morarji Desai, em contraste com as grandes manifestações publicas que foram acolhidos na Índia, Carter and Callaghan.
The Asiatic Society of Bombay foi fundada em Novembro de 1804, com o fim de promover o conhecimento, em particular, dos trabalhos literários respeitantes à Índia. Ela é sucessora da Asiatic Society de Calcatá, fundada em 1784, por William Hastings, e da qual foi Presidente William Jones, orientalista eminente que revelou ao mundo ocidental o drama Shakuntala, de Kalidasa que mereceu a Schopenhauer entusiásticos louvores. Tivemos o ensejo de admirar naquela exposição não só velhos e preciosos manuscritos indianos, em Devanagri, árabe, persa e urdu, mas também edições impressas dos Vedantas e Puranas, o Bhagavad Purana, traduzido para o francês pelo insigne orientalista e filosofo Eugène Barnouf e o Bhagavadgita, igualmente traduzido para o francês pelo sanscritólogo Émile Burnouf. Os originais clássicos franceses, Les Fleurs du Mal, de Baudelaire e obras de Voltaire e Rousseau; Sylvain Levy, com Le Théatre Indien, que, segundo o seu autor “a originalidade da Índia é expressa inteiramente na sua arte dramática que os seus dogmas, as suas doutrinas, os seus mitos e as suas lendas”; obras de François Rabelais e Rochefoucauld; a Correspondência de George Sand e Alfred Musset e Pierre Loti representado como o “L’Inde sans les Anglais.”
Uma noite ofereceu-se-nos o ensejo de percorrer, numa corrida rápida, a longa e sinuosa avenida de Chowpatty – o Marine Drive – que marginava a grande baía orlando de enfiada de luzes multicores reflectindo nas águas como um colar principesco de pedras preciosas, de caminho ao Catholic Gymkana, onde em Dezembro de 1948, aquando do nosso primeiro regresso do exílio voluntário em Portugal, assistimos pela primeira vez (com assombro misto de escândalo) ao Baile do Fim do Ano, e em 1974, à recepção do Dr. Mário Soares. É uma das muitas reminiscências que afloraram ao nosso espírito – pois, o que é a vida se não uma enfiada de contas que desafiamos com saudade para “recordar e viver?”
Os nossos afazeres em Goa forçam-nos a encurtar as férias e cortar cerce o fio da nossa digressão pelo mundo colorido e ultramoderno, com os seus inevitáveis contrastes, que é Bombaim.
Na noite anterior, os ventos rijos e o mar picado tinham provocado a demora, na manhã seguinte, do barco que nos devia trazer de torna-viagem para Goa. Porém o Konkan Sewak que largara de Bombaim com hora e meia de atraso, brioso como era, com marchas forçadas recuperou o tempo perdido e manhã cedo do dia seguinte avistámos terra de Goa, que reconhecemos, mercê das suas praias brancas, os edifícios alvejando por entre o denso palmeiral e a silhueta do negredado Forte da Aguada, a ponta do Cabo com o seu palácio banco poisado um pombal e a foz do Zuari coalhada de barcos cargueiros, que trazem contrabando e levam a maior riqueza que Goa possui, que é o seu minério.
Mergulhámos, novamente, na pasmaceira de Goa, unicamente amenizada pelos trabalhos que nos assoberbam, intelectuais e culturais.
Uma bela manhã de princípios de Janeiro, ligeiramente friorenta, tirámo-nos de cuidados para dar realidade ao nosso anseio e metemo-nos num daqueles Leviathans de cabotagem (à cautela, porque hoje em dia os desastres de avião frequentes, não se sabe se por os Jumbos estarem a pedir repouso nalguma estancia de sucatas ou por mãos criminosas e vingativas, com fins políticos, esconderem bombas no seu bojo, como quem esconde mata-ratos na cave).
Mal largou as amarras, o Konkan Shakti, pesadão e negro como um albatroz, foi descendo o rio abaixo, com a cidade desbobinando-se com as suas imagens policrómicas de caleidoscópio e, na outra margem, com os perfis de fortes aparatosas, meio desmantelados e inúteis eriçados de guaritas e ameias negros e soturnos como se ainda sentissem mouro na costa – fortes que estão a pedir camartelo demolidor para que deles não fique pedra sobre pedra e memória sinistra de prisões políticas, para arejar e alindar esta terra outrora tão cobiçada pelos soldados de aventura e pelos buscadores de fortuna; mas sempre bela, sempre verde e sempre procurada pelos turistas que vão de cá desiludidos por falta de alojamento condignos a condizer com a beleza paisagística, as praias encantadoras e os monumentos artísticos. Goa, hoje em dia, abunda em hippies seminus, esfarrapados, escanzelados, entregues ao tráfico de estupefacientes, com o que unicamente evidenciam o seu desprezo pela Nossa Terra e pela Nossa Gente, coisa que, de certo, na sua própria terra não lhes é permitido. Mas os nossos governantes, seduzidos pelo brilho das divisas estrangeiras, fecham os olhos à realidade e deixam que eles conspurquem e intoxiquem a nossa juventude e as nossas belezas naturais.
Viajar com a mulher e a bagagem (ambas femininas), coisa incómoda, por elas demandarem cuidados e atenções. Não há nada mais cómodo como viajar só com uma malinha de mão, com a qual se pode ir, comodamente, até o fim do mundo e, com um pouco de boa vontade, até para o outro mundo.
O sol doira o mar e o horizonte no ocaso, e a noite tropical desce bruscamente para envolver a terra e o mar no seu manto de veludo negro. Vem a lua de prata e a poalha de estrelas. Só os faróis, de longe em longe, piscam seu olho faiscante de Ciclope para avivar a navegação do perigo à proa. Às 20:30 passa, emproado e garboso, todo salpicado de clarões de luz, soltando mugidos roucos atroadores da sirene, o irmão gémeo do nosso – o Konkan Sevak.
As sete de manhã já se avista Bombaim, ainda sonolenta e embrulhada no seu xaile de neblina parda. O sol já acima do horizonte é como um muhur de oiro remirando-se nas águas paradas e glaucas da baía, qual Narciso para atrair “as sereias, que no fundo do mar, dançam sobre as areias” na velha canção da nossa infância. O bruhaha das horas do desembarque. Os passageiros pressurosos em chegar ao seu destino. Assalto aos táxis e a exigência dos bagageiros, que amenizam o tom à aproximação do policia, para condescender: “de o que estiver na vontade do freguês.” O táxi tem de abrir passagem à força de buzinadelas, por entre a multidão de gente grulhante que peja as ruas. Apesar de o Congresso estar dividido nunca se viu tanto Gandhi-cap, em manhãs como esta, nas ruas circundantes ao cais.
Bombaim, terra de exílio tão nossa conhecida, onde andamos empenhados, durante anos, na luta fecunda e apaixonante, empunhando o facho ardente e triunfante de “Ressurge, Goa!” Bombaim, que cresceu verticalmente, com os arranha-céus, como uma floresta de cimento, parecendo querer topetar o céu. A arquitectura vitoriana cedeu o passo aos multi-storeys modernos de Bacbay e Cuffe Parade.
Chegámos, enfim, ao cabo do nosso roteiro Goa-Bombaim – dois esteios do defunto Império Colonial Português no Oriente. Goa sob a durindana implacável de Albuquerque o Terríbil e Bombaim que já no século 17 deixou de ser portuguesa por o rei D. João IV a ter dado em dote a sua filha D. Catarina de Bragança ao casá-la com Carlos 2o, da Inglaterra e onde um Garcia, curioso das plantas, medicinais da Índia, tinha uma quinta, pelo que ficou sendo conhecido entre os seus amigos íntimos (que fazem sempre melhor cama), pela alcunha “O da Orta.” Aquele Garcia da Orta ganhou fama com o seu livro do ‘Colóquios sobre Simples e Drogas e Plantas Medicinais da Índia.”
Já em terra firme, libertos do espaço acanhado da cabina e da estreiteza da tolda onde os ‘passos perdidos’ não podiam estender-se muito, ocorreu-nos à memória a quadra do “Pescador de Pérolas” do drama ‘Sundorem’, do elenco do Grupo Teatral:
Mar alto, mar alto, mar alto,
Mais alto que eu sulco de escaler;
Mais vale andar no mar alto,
Do que sujeito ao capricho de mulher.
As frequentes evasões de Goa para Bombaim ou Nova Delhi concorrem para nos mergulhar no banho de civilização e para rejuvenescer o nosso espírito, proporcionando-nos o ensejo de assistir a diversas manifestações intelectuais, tais como a inauguração de exposições de manuscritos preciosos e livros raros, organizada pela Asiatic Society of Bombay, no Durbar Hal do majestoso Town Hall, exposições de arte (pintura e escultura), conferências científico e literárias, dramas e bailados, e a excursão pelo inextricável “Filmland” e, em especial, o magnífico “Planetárium”, maravilha da ciência moderna de perscrutar os astros de que os próprios Aryabhata, Copérnico e Galileu se orgulhariam: os grandes comícios do Shivaji Park, que não se realizaram devido às rivalidades internas do próprio partido no poder, para gáudio de indígena e das facções do Congresso, e para amargurar a vida politica do Primeiro-Ministro, Morarji Desai, em contraste com as grandes manifestações publicas que foram acolhidos na Índia, Carter and Callaghan.
The Asiatic Society of Bombay foi fundada em Novembro de 1804, com o fim de promover o conhecimento, em particular, dos trabalhos literários respeitantes à Índia. Ela é sucessora da Asiatic Society de Calcatá, fundada em 1784, por William Hastings, e da qual foi Presidente William Jones, orientalista eminente que revelou ao mundo ocidental o drama Shakuntala, de Kalidasa que mereceu a Schopenhauer entusiásticos louvores. Tivemos o ensejo de admirar naquela exposição não só velhos e preciosos manuscritos indianos, em Devanagri, árabe, persa e urdu, mas também edições impressas dos Vedantas e Puranas, o Bhagavad Purana, traduzido para o francês pelo insigne orientalista e filosofo Eugène Barnouf e o Bhagavadgita, igualmente traduzido para o francês pelo sanscritólogo Émile Burnouf. Os originais clássicos franceses, Les Fleurs du Mal, de Baudelaire e obras de Voltaire e Rousseau; Sylvain Levy, com Le Théatre Indien, que, segundo o seu autor “a originalidade da Índia é expressa inteiramente na sua arte dramática que os seus dogmas, as suas doutrinas, os seus mitos e as suas lendas”; obras de François Rabelais e Rochefoucauld; a Correspondência de George Sand e Alfred Musset e Pierre Loti representado como o “L’Inde sans les Anglais.”
Uma noite ofereceu-se-nos o ensejo de percorrer, numa corrida rápida, a longa e sinuosa avenida de Chowpatty – o Marine Drive – que marginava a grande baía orlando de enfiada de luzes multicores reflectindo nas águas como um colar principesco de pedras preciosas, de caminho ao Catholic Gymkana, onde em Dezembro de 1948, aquando do nosso primeiro regresso do exílio voluntário em Portugal, assistimos pela primeira vez (com assombro misto de escândalo) ao Baile do Fim do Ano, e em 1974, à recepção do Dr. Mário Soares. É uma das muitas reminiscências que afloraram ao nosso espírito – pois, o que é a vida se não uma enfiada de contas que desafiamos com saudade para “recordar e viver?”
Os nossos afazeres em Goa forçam-nos a encurtar as férias e cortar cerce o fio da nossa digressão pelo mundo colorido e ultramoderno, com os seus inevitáveis contrastes, que é Bombaim.
Na noite anterior, os ventos rijos e o mar picado tinham provocado a demora, na manhã seguinte, do barco que nos devia trazer de torna-viagem para Goa. Porém o Konkan Sewak que largara de Bombaim com hora e meia de atraso, brioso como era, com marchas forçadas recuperou o tempo perdido e manhã cedo do dia seguinte avistámos terra de Goa, que reconhecemos, mercê das suas praias brancas, os edifícios alvejando por entre o denso palmeiral e a silhueta do negredado Forte da Aguada, a ponta do Cabo com o seu palácio banco poisado um pombal e a foz do Zuari coalhada de barcos cargueiros, que trazem contrabando e levam a maior riqueza que Goa possui, que é o seu minério.
Mergulhámos, novamente, na pasmaceira de Goa, unicamente amenizada pelos trabalhos que nos assoberbam, intelectuais e culturais.
Friday, 21 October 2011
Augusto do Rosário Rodrigues - Xavier (1960)
Em verso sonoro, eu canto-vos a glória,
Em ardente prece, eu rendo-vos o preito,
Um canto cristão, de emoções puras feito,
Tecendo-vos palmas à santa memória!
Vós sois lembrado com honra na História
Como herói da Cruz, a virtudes afeito!
Com o mesmo orgulho, trazemos no peito,
Vossa Santidade – toda luz e glória...!
Alma lirial, mística, santa e pura,
Aspirando à Eterna Mansão de Ventura,
Sofre assaz martírios e derrama o Bem...
Nasce na opulência. Mas larga a grandeza...
Quer só Virtude, Abnegação, Pureza...
Laxmanrao Sardessai - Eu Idealizo (1965)
Eu idealizo esta terra
Para os seus filhos, toda inteira
Fresca e bela
Com o mar à frente
A cordilheira atrás
Com os seus rios e fontes
Arequeiras e palmeiras
Mas toda inteira para seus filhos
Ricos e pobres, não os haverá depois
Todos serão iguais e nobres
Como os são seus rios
Como os são seus montes
De mãos dadas irão para a frente
Serão como coqueiros
Seus irmãos, altivos e humildes
Lhanos e hospitaleiros
Como as suas casas sempre abertas
Vastos como o mar
Que os banha
E frescos como os arecais
E serão filhos dignos
Dessa natureza farta e bela
Paz e harmonia que aqui habita
Viverão nas suas almas
E a bondade que rescende
De cada canto desta terra
Impregnará a sua mente
E a honra e a dignidade
Não falsas, mas genuínas
Darão traços firmes
À sua estatura.
A visão dos Rishis
E o amor de Cristo
Guiarão seus passos
Para a frente
E para Índia será
Embora pequena
Fonte da beleza
E grandeza eterna
Tal idealizo esta terra
Para os seus filhos, toda inteira.
Para os seus filhos, toda inteira
Fresca e bela
Com o mar à frente
A cordilheira atrás
Com os seus rios e fontes
Arequeiras e palmeiras
Mas toda inteira para seus filhos
Ricos e pobres, não os haverá depois
Todos serão iguais e nobres
Como os são seus rios
Como os são seus montes
De mãos dadas irão para a frente
Serão como coqueiros
Seus irmãos, altivos e humildes
Lhanos e hospitaleiros
Como as suas casas sempre abertas
Vastos como o mar
Que os banha
E frescos como os arecais
E serão filhos dignos
Dessa natureza farta e bela
Paz e harmonia que aqui habita
Viverão nas suas almas
E a bondade que rescende
De cada canto desta terra
Impregnará a sua mente
E a honra e a dignidade
Não falsas, mas genuínas
Darão traços firmes
À sua estatura.
A visão dos Rishis
E o amor de Cristo
Guiarão seus passos
Para a frente
E para Índia será
Embora pequena
Fonte da beleza
E grandeza eterna
Tal idealizo esta terra
Para os seus filhos, toda inteira.
Carmo de Azavedo - Cristãos e Hindus (1965)
Cristãos e hindus de Goa fariam bem de ler – e digerir – o oportuníssimo artigo que na última edição de domingo de The Navhind Times publicou o Rev. Baltazar J. Pereira, missionário goês no norte da Índia, outrora Professor de Filosofia no Seminário de Allahabad e recentemente nomeado Administrador da Sé de Simla. Como vêem, não se trata – repito o que disse a propósito do discurso do Prof. Armando Menezes no Colégio do Carmelo em Margao e da palestra sobre o Secularismo Indiano ao microfone da AIR pelo Rev. Dr. Nicolau Pereira, largamente comentados nesta coluna – de um “adepto da religião professada por Nehru”, como aprouve a um plumitivo descrever-me ao publicar uma série de artigos sobre a religião do falecido Primeiro Ministro da Índia, aparentemente “agora convertido ao credo de Paulo VI”, segundo o mesmo plumitivo, ao ler a actual série sobre o Pontífice reinante. Antes de entrar na apreciação do artigo do Rev. Baltazar Pereira, devo dizer, entre parênteses, para desfazer equívocos que a religião é um negócio do foro íntimo de cada indivíduo, com que os outros nada têm que ver, que sou por inteira liberdade religiosa e que defendo e defenderei sempre – diga de mim o que disserem – o secularismo do Estado, hoje adoptado em todos as nações progressivas do mundo e que na Índia, especialmente, se tornou uma imperiosa necessidade em vista da sua sociedade pluralista.
Católicos fechados e abertos
Para o católico “fechado” (d’après Graham Greene) de Goa, que se arrepelou todo perante o namastê do Papa Paulo VI ao assomar à portada carlinga do Nanga Parbat, o seu Jai Hind em plena “catedral aberta” do Oval, as suas citações de Tagore, dos Upanixadas e de outras escrituras hindus e muito do que disse e fez durante os quatros dias da sua da sua histórica visita à Índia, afigurar-se-á também bastante estranho muito do que, à laia de preambulo, nos conta a seu próprio respeito o Rev. Baltazar Pereira: que em 1958 trocou de vez Goa pela então Índia Britânica para se fazer missionário “ao longo do sagrado Ganges”; que poucos anos mais tarde renunciou à cidadania portuguesa para se naturalizar indiano; que julgou ter realizado o seu sonho quando um belo dia foi escolhido para trabalhar “no próprio coração hinduísmo – em Benares”; que foi para ele motivo de grande alegria ser acolhido por hindus em suas casa e recebê-los na sua, desfrutar a sua hospitalidade, mesmo de noite, e ser considerado por eles um membro distinto da sua família, assistir às suas funções sociais, mesmo as relacionadas com a religião, convidá-los para a ceia do Natal e outras refeições e enfim discutir com eles assuntos religiosos e outros, com mútuo proveito.
Três períodos distintos
Passa em revista o ilustre articulista três períodos sucessivos, mas distintos, da história de Goa, no que diz respeito às relações entre hindus e cristãos: - o períodos anterior a 1928, isto é correspondente à sua mocidade, antes da sua saída de Goa; o período de 1928 a 1961, coincidente, mais ou menos, com a ditadura de Salazar; e o período pós-libertação. No primeiro período, diz, notava-se uma inércia mortal entre os hindus que, como um todo, tinham pouco influência na vida pública e os cristãos que, embora ocupando a maior parte dos cargos do Governo, pareciam satisfeitos com o status quo, havendo pouco intercâmbio social entre uns e outros, mas sem animosidade de parte a parte, antes uma espécie de amizade passiva que, oferecendo-se uma ocasião, podia dar lugar a atitude útil. O regime de Salazar teria coincidido com uma nova era na história política, económica, social e religiosa de Portugal e produzido também mudanças em Goa: melhoramentos económicos, um reajustamento proveitoso entre o Estado e a Igreja e um despertar entre os hindus. Finalmente, no terceiro período, que estamos a atravessar, estaríamos a presenciar o rompimento dos laços que uniam hindus e cristãos cedendo o lugar a mútua desconfiança.
Separação do Estado e da Igreja
Antes de prosseguir, convinha corrigir um erro factual no artigo do Rev. Baltazar Pereira: o despertar dos hindus de Goa não foi obra do regime salazarista, implantado em 1928, mas da República democrática, proclamada em 1910. Com efeito, foi a partir de 1910, com o baquear da Monarquia e a implantação do regime republicano, que decretou a Separação do Estado da Igreja, que os hindus de Goa começaram a desfrutar inteiro igualdade de direitos e de oportunidades, como deixou registado o saudoso António de Noronha na sua excelente memória “Os Indus de Goa e a República Portuguesa”. O governo de Salazar, com a assinatura da Concardata e do Acordo Missionário, representou um retrocesso sob este ponto de vista pois se não restabeleceu o estado de coisas anteriormente existente, procurou de certo modo identificar a Igreja com o seu regime ditatorial; e se, para nos servirmos das palavras do distinto articulista, este reajustamento das relações do Estado e da Igreja foi proveitoso àquele, foi pelo contrário prejudicial a esta por diversos motivos. Foi só por conveniência politica local que os hindus de Goa começaram a ganhar ascendente na burocracia, não a partir de 1928, mas nos últimos cinco ou seis anos antes da libertação.
Repostos os factos no seu devido lugar, prossigamos na análise do artigo do Rev. Baltazar J. Pereira na última edição de The Navhind Times, sob o título de Hindus and Christians in Goa Must Stand Together. O ilustre articulista diz que a sua recente visita a Goa foi uma completa desilusão e que não pôde deixar de observar que estão a romper-se os laços que uniam cristãos e hindus em Goa. Espraia-se em seguida em largas considerações, diz-nos que visitou quase toda a Índia, do norte ao sul e do este ao oeste, e conheceu os seus povos (usando a palavra “povos” deliberadamente plural), que visitou também Portugal e a Espanha, a Suíça, a Itália, França, Inglaterra, e Irlanda e os Estados Unidos da América e que, em sua opinião, nenhum país é capaz de rivalizar com Goa no conjunto dos seus dons e potencialidades; a sua beleza estética, as qualidades maravilhosas do seu povo, entre os quais cumpriria mencionar a mescla das culturas do Oriente, do Ocidente, as suas riquezas naturais.
Um Estado-Modelo
Onde quer que se econtrem os goeses – salienta o Rev. Baltazar Periera - conquistaram um excelente nome para si e para a sua terra, com as mais esplêndidas potencialidades para reajustamento, a sua amabilidade, a sua inteligência e a sua honestidade acima do normal, o que outros povos e governos acabaram por apreciar e recompensar. Alem disso, Goa é terra rica em peixe, vegetação e minerais, e com um pouco de desinteresse no serviço e uma administração inteligente baseada no amor justo pela terra pode ser convertida não só num território auto-suficiente, mas benfeitor de outros estados na Índia, De facto, conclui, embora seja de exíguas dimensões e com reduzida população, Goa pode ser transformada num estado modelo. Mas – e é um grande mas – os goeses parecem não reconhecer as qualidades de que estão dotados, não ter confiança em si mesmos e, com a mútua desconfiança e receio entre hindus e católicos, a maravilhosa unidade que existia está em vias de desaparecer.
Quatro hipóteses
Tentando explicar as razões da actual tensão comunal em Goa aventura o distinto articulista quatro hipóteses: 1) receio de dominação de uma comunidade por outra, receio explorado por elementos perniciosos de fora de Goa; 2) incapacidade da parte dos goeses, habituados a um estilo de vida europeu continental, de se adaptarem ao estilo de vida indiano ou inglês; 3) obra de inimigo de fora de Goa que semeou a cizania entre os ignorantes e esta se espalhou por toda a sociedade goesa; 4) todos os três factores combinados. Cabe aos goeses, hindus e cristãos, analisar a causa, diz o Rev. Pereira, pois só então poderão cortar o mal pela raiz. Vivemos, acrescenta, numa era de ecumenismo. O Congresso Eucarístico Internacional de Bombaim provou que hindus e cristãos podiam unir-se e trabalhar juntamente pela sua prosperidade. A Exposição das Relíquias de S. Francisco Xavier também demonstrou que hindus e cristãos apreciam o que de bom existe e podem congraçar-se. Aos líderes, sobretudo, dentre hindus e cristãos compete fortalecer os laços de união entre as duas comunidades, vencendo os preconceitos infundados. Só então, diz, Goa e os goeses prosperarão. Aliás, o inimigo, o lobo sob a pele do cordeiro, se aproveitará da desunião para destruir o que de verdadeiro, bom e belo existe em Goa. Hindus e cristãos, que ouçam estas palavras do Rev. Pereira.
Católicos fechados e abertos
Para o católico “fechado” (d’après Graham Greene) de Goa, que se arrepelou todo perante o namastê do Papa Paulo VI ao assomar à portada carlinga do Nanga Parbat, o seu Jai Hind em plena “catedral aberta” do Oval, as suas citações de Tagore, dos Upanixadas e de outras escrituras hindus e muito do que disse e fez durante os quatros dias da sua da sua histórica visita à Índia, afigurar-se-á também bastante estranho muito do que, à laia de preambulo, nos conta a seu próprio respeito o Rev. Baltazar Pereira: que em 1958 trocou de vez Goa pela então Índia Britânica para se fazer missionário “ao longo do sagrado Ganges”; que poucos anos mais tarde renunciou à cidadania portuguesa para se naturalizar indiano; que julgou ter realizado o seu sonho quando um belo dia foi escolhido para trabalhar “no próprio coração hinduísmo – em Benares”; que foi para ele motivo de grande alegria ser acolhido por hindus em suas casa e recebê-los na sua, desfrutar a sua hospitalidade, mesmo de noite, e ser considerado por eles um membro distinto da sua família, assistir às suas funções sociais, mesmo as relacionadas com a religião, convidá-los para a ceia do Natal e outras refeições e enfim discutir com eles assuntos religiosos e outros, com mútuo proveito.
Três períodos distintos
Passa em revista o ilustre articulista três períodos sucessivos, mas distintos, da história de Goa, no que diz respeito às relações entre hindus e cristãos: - o períodos anterior a 1928, isto é correspondente à sua mocidade, antes da sua saída de Goa; o período de 1928 a 1961, coincidente, mais ou menos, com a ditadura de Salazar; e o período pós-libertação. No primeiro período, diz, notava-se uma inércia mortal entre os hindus que, como um todo, tinham pouco influência na vida pública e os cristãos que, embora ocupando a maior parte dos cargos do Governo, pareciam satisfeitos com o status quo, havendo pouco intercâmbio social entre uns e outros, mas sem animosidade de parte a parte, antes uma espécie de amizade passiva que, oferecendo-se uma ocasião, podia dar lugar a atitude útil. O regime de Salazar teria coincidido com uma nova era na história política, económica, social e religiosa de Portugal e produzido também mudanças em Goa: melhoramentos económicos, um reajustamento proveitoso entre o Estado e a Igreja e um despertar entre os hindus. Finalmente, no terceiro período, que estamos a atravessar, estaríamos a presenciar o rompimento dos laços que uniam hindus e cristãos cedendo o lugar a mútua desconfiança.
Separação do Estado e da Igreja
Antes de prosseguir, convinha corrigir um erro factual no artigo do Rev. Baltazar Pereira: o despertar dos hindus de Goa não foi obra do regime salazarista, implantado em 1928, mas da República democrática, proclamada em 1910. Com efeito, foi a partir de 1910, com o baquear da Monarquia e a implantação do regime republicano, que decretou a Separação do Estado da Igreja, que os hindus de Goa começaram a desfrutar inteiro igualdade de direitos e de oportunidades, como deixou registado o saudoso António de Noronha na sua excelente memória “Os Indus de Goa e a República Portuguesa”. O governo de Salazar, com a assinatura da Concardata e do Acordo Missionário, representou um retrocesso sob este ponto de vista pois se não restabeleceu o estado de coisas anteriormente existente, procurou de certo modo identificar a Igreja com o seu regime ditatorial; e se, para nos servirmos das palavras do distinto articulista, este reajustamento das relações do Estado e da Igreja foi proveitoso àquele, foi pelo contrário prejudicial a esta por diversos motivos. Foi só por conveniência politica local que os hindus de Goa começaram a ganhar ascendente na burocracia, não a partir de 1928, mas nos últimos cinco ou seis anos antes da libertação.
Repostos os factos no seu devido lugar, prossigamos na análise do artigo do Rev. Baltazar J. Pereira na última edição de The Navhind Times, sob o título de Hindus and Christians in Goa Must Stand Together. O ilustre articulista diz que a sua recente visita a Goa foi uma completa desilusão e que não pôde deixar de observar que estão a romper-se os laços que uniam cristãos e hindus em Goa. Espraia-se em seguida em largas considerações, diz-nos que visitou quase toda a Índia, do norte ao sul e do este ao oeste, e conheceu os seus povos (usando a palavra “povos” deliberadamente plural), que visitou também Portugal e a Espanha, a Suíça, a Itália, França, Inglaterra, e Irlanda e os Estados Unidos da América e que, em sua opinião, nenhum país é capaz de rivalizar com Goa no conjunto dos seus dons e potencialidades; a sua beleza estética, as qualidades maravilhosas do seu povo, entre os quais cumpriria mencionar a mescla das culturas do Oriente, do Ocidente, as suas riquezas naturais.
Um Estado-Modelo
Onde quer que se econtrem os goeses – salienta o Rev. Baltazar Periera - conquistaram um excelente nome para si e para a sua terra, com as mais esplêndidas potencialidades para reajustamento, a sua amabilidade, a sua inteligência e a sua honestidade acima do normal, o que outros povos e governos acabaram por apreciar e recompensar. Alem disso, Goa é terra rica em peixe, vegetação e minerais, e com um pouco de desinteresse no serviço e uma administração inteligente baseada no amor justo pela terra pode ser convertida não só num território auto-suficiente, mas benfeitor de outros estados na Índia, De facto, conclui, embora seja de exíguas dimensões e com reduzida população, Goa pode ser transformada num estado modelo. Mas – e é um grande mas – os goeses parecem não reconhecer as qualidades de que estão dotados, não ter confiança em si mesmos e, com a mútua desconfiança e receio entre hindus e católicos, a maravilhosa unidade que existia está em vias de desaparecer.
Quatro hipóteses
Tentando explicar as razões da actual tensão comunal em Goa aventura o distinto articulista quatro hipóteses: 1) receio de dominação de uma comunidade por outra, receio explorado por elementos perniciosos de fora de Goa; 2) incapacidade da parte dos goeses, habituados a um estilo de vida europeu continental, de se adaptarem ao estilo de vida indiano ou inglês; 3) obra de inimigo de fora de Goa que semeou a cizania entre os ignorantes e esta se espalhou por toda a sociedade goesa; 4) todos os três factores combinados. Cabe aos goeses, hindus e cristãos, analisar a causa, diz o Rev. Pereira, pois só então poderão cortar o mal pela raiz. Vivemos, acrescenta, numa era de ecumenismo. O Congresso Eucarístico Internacional de Bombaim provou que hindus e cristãos podiam unir-se e trabalhar juntamente pela sua prosperidade. A Exposição das Relíquias de S. Francisco Xavier também demonstrou que hindus e cristãos apreciam o que de bom existe e podem congraçar-se. Aos líderes, sobretudo, dentre hindus e cristãos compete fortalecer os laços de união entre as duas comunidades, vencendo os preconceitos infundados. Só então, diz, Goa e os goeses prosperarão. Aliás, o inimigo, o lobo sob a pele do cordeiro, se aproveitará da desunião para destruir o que de verdadeiro, bom e belo existe em Goa. Hindus e cristãos, que ouçam estas palavras do Rev. Pereira.
Juliana Cordeiro Monteiro - Para Onde? (1965)
Folha despegada
Ao sopro do vento,
Para onde vais tu,
Assim azoinada?
Sem rumo nem norte,
Do monte ao vale,
De ravina em ravina,
Assim à sorte...
Ao sabor da rajada,
Destrambelhada,
Diz-me lá
Que procuras tu?
Onde o teu destino?
- Não sei para onde vou,
Nem mesmo atino
No que quero,
No que sou
Vou aonde me leva
O vento e a corrente
Aonde vai toda a gente
A folha do manjericão
Do cravo e jasmim.
Vou,
Quer queira quer não,
Porque não sei mandar em mim.
Ao sopro do vento,
Para onde vais tu,
Assim azoinada?
Sem rumo nem norte,
Do monte ao vale,
De ravina em ravina,
Assim à sorte...
Ao sabor da rajada,
Destrambelhada,
Diz-me lá
Que procuras tu?
Onde o teu destino?
- Não sei para onde vou,
Nem mesmo atino
No que quero,
No que sou
Vou aonde me leva
O vento e a corrente
Aonde vai toda a gente
A folha do manjericão
Do cravo e jasmim.
Vou,
Quer queira quer não,
Porque não sei mandar em mim.
Friday, 7 October 2011
Visnum Porobo Sincró - Remanso (1963)
Brisa suave, aroma inebriante revigorador
O gado pressuroso caminhando para o lar
Os transeuntes, no passo apressado, a correr
Atenção concentrada para o repouso ansiado!
Tudo aqui cheira paz, as agruras fogem
Desaparece o torpor citadino cobrindo novo alento
Os pássaros calcurreando no firmamento
Avançado velozmente, ao seu lar longínquo dirigem
Para gozarem no lar o repouso almejado,
Para ratear os grãos adquiridos afanosamente
A deleitarem satisfeitos com o chilreio dos filhinhos
Como pintos delicados os filhos – famílias esperam.
“O pai querido chegara trazendo guloseima
Contaremos a ele tudo o que sucedeu atrás dele.
O gado pressuroso caminhando para o lar
Os transeuntes, no passo apressado, a correr
Atenção concentrada para o repouso ansiado!
Tudo aqui cheira paz, as agruras fogem
Desaparece o torpor citadino cobrindo novo alento
Os pássaros calcurreando no firmamento
Avançado velozmente, ao seu lar longínquo dirigem
Para gozarem no lar o repouso almejado,
Para ratear os grãos adquiridos afanosamente
A deleitarem satisfeitos com o chilreio dos filhinhos
Como pintos delicados os filhos – famílias esperam.
“O pai querido chegara trazendo guloseima
Contaremos a ele tudo o que sucedeu atrás dele.
RV Pandit - As Paredes Têm Ouvidos (1962)
Têm ouvidos
As paredes?
Não importa!
Basta
Que tenhamos
Procedimento liso…!
Para lhes tapar
A boca!
As paredes?
Não importa!
Basta
Que tenhamos
Procedimento liso…!
Para lhes tapar
A boca!
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