Tuesday, 9 July 2013

Laxmanrao Sardessai - Aqueles Momentos (1966)

Quero agarrar entre os dedos
Aqueles momentos vagos
Que se esbatem no passado,
Profundo como os seus suspiros,
Vastos como os meus pensamentos,
O rosto da minha mãe moribunda,
Varada por um golpe duma epidemia,
Com a luz baça nos olhos,
A procurar-me.
Era eu então uma criança
De oito anos...
Rolaram hoje cinquenta
Sobre este infortúnio.
A minha memória
Pálida, nublada,
Não pode fixar as linhas
Daquele rosto
Que nunca mais vi,
E aqueles momentos,
Quais pombas minúsculas
Ainda brilham
A distancias infinitas
Na luz dourada!

Walfrido Antão - Telo de Mascarenhas, ou Um Padrão Ocidental na Situação Indiana (1979)

“Mal com os homens por amor à terra; mal com El Rei por amor à terra”

Cada homem tem direito a um sonho ou posto burocrático e não há que assacar culpas à grandeza imensa do Sonho como tal ou a limitação dos mangas-de-alpaca sim senhor El Rei dos Algarves, Yes Sir Milord of Wheat Fields of Punjab, o colonialismo é uma antítese do self-government com todo o seu manto de CORRUPÇÃO. No caso da Burocracia ou do self-employed man de negócios a ascensão ou declínio depende de um certo numero de constantes entre os quais conta a habildade de adorar o sol nascente e a intriga palaciana o problema do sonho é um caso diferente. O sonho de um homem letrado afasta-o das massas como numa contradição infeliz, essas mesmas massas humanas em cujo benefício o sonho visita o Homem. Tal foi o caso trágico do sonho de Telo de Mascarenhas. Nascido na aldeia de Velção, quase meu coaldeano, o Dr. Telo de Mascaranhas teve de ir a Coimbra como escolar de Direito para reconhecer as suas raízes indianas e juntamente com Adeodato Barreto, o grande e infeliz poeta que morreu até a consumação do ideário marxista numa aldeia de Portugal, com José Paulo Teles e outros (conforme leio num dos exemplares da “Índia Nova”) fundou o Instituto Indiano anexo a Biblioteca da Faculdade de Letras. Eram os anos 1920, a literatura portuguesa dividia-se entre o Surrrealismo de Almada Negreiros e a poesia épica decantada no ocultismo de Fernando Pessoa ou a trágico desespero de Mário de Sá Carneiro. O liberalismo democrático de António José de Almeida vivia horas de agonia e o MONGE de Coimbra preparava-se para tomar de assalto a velha Lisboa das naus que tinham vindo à Índia e marinheiros de Alfama. A longa noite da Ditadura com seus mitos glorificadores do Imperador Máximo de Aquém e Além Mar ia espalhando seu véu de sombras por sobre esse tão belo povo português, um povo capaz de uma cultura humanista como provam António Sérgio e Jaime Cortesão. Não se ouve falar mais do Instituto Indiano em Coimbra. “A Índia Nova” que chega a publicar uma mensagem de Tagore vê os seus redactores já formados e com família bem portuguesa. Adeodato Barreto recusa-se a burocratizar o pensamento em tacho oportunista que lhe podia dar pão e vinho e mantém-se firme a um ideário de redenção económica que lhe nega suficientes para se tratar e tratar dos seus, morrendo quase em penúria. São dos anos 1940 algumas traduções de obras de Tagore que aparecem em Lisboa da lavra de Telo Mascarenhas e que, muito embora venham via língua francesa, constituem uma bela introdução da alma indiana ao povo português. Anos 1949 e Telo Mascarenhas surge-nos aqui em casa fresco de Lisboa e Porto para convidar meu pai que ao tempo era presidente da câmara de Mormugão para presidir uma conferência no Casino de Vasco da Gama sobre “Primavera e os Poetas de Amor”, conferência esta que não se chegou a realizar por a polícia portuguesa ter cheirado o indianismo do autor. Tinha eu 13 anos de idade e admirava-o de improvisar versos às flores, às plantas, ao palmeiral tudo com invocações aos deuses indianos. É um poeta, pensava eu e por lá o teria esquecido, quando embrulhado entre revistas femininas de Bombaim começou a enviar-nos cópias do “Ressurge, Goa” do exílio. Há idealismo na sua Invocação quando rezava alto “edificaremos sobre o mar, sobre a terra, sobre as estrelas, a glória da nossa Terra Imortal”. Quem poderá negar que ele amava Goa?

Poeta do campestre, do rural como se diria agora, com profundas influências de Gil Vicente e Rodrigues Lobo, Telo de Mascarenhas provou-se um misfit, quem sabe um inconveniente que não sabia Konkani e Marata aos grupos políticos de Bombaim que trabalhavam pela libertação de Goa.

A política indiana não é para poetas ou idealistas e o exemplo mártir de um Tristão Bragança Cunha ou um Jaypracasha Narain (a este claram o grito de Revolução total com uma bolsa de um crore de rupias) chega-nos para não alimentarmos quaisquer dúvidas a este respeito. No caso de Tristão Bragança Cunha e tantos outros heróis esquecidos como Polly da Silva que foi a morrer aos 30 e poucos anos num curral basta-nos o facto de o Sonho de alguns ter sobejado para os mineiros, em especial uma família, continuarem a gozar do Poder. Uns sofreram para os mineiros continuarem a gozar os privilégios.

Como disse atrás, o Sonho de um homem letrado afasta-o das massas. No caso de Telo de Mascarenhas que depois de sofrer dez longos anos de prisão havia tentado entrar na politica, o resultado foi constrangedor. As massas não vão pelos sacrifícios, vão sim pelos símbolos comunalistas, daí a tragédia da democracia dos analfabetos com seu corolário de self-government is always better than alien rule. É ainda cedo demais para se pronunciar sobre a validade de um sonho, só a História poderá abarcar o Juízo final. Entretanto fica-nos a morte de um homem de letras portuguesas, um cativo do teatro vincentino e um devoto nem sempre regular das canções de escárnio e mal-dizer de que nos deu provas no Ressurge Goa dos anos de exílio.

Amigo da minha família, Telo de Mascarenhas impôs-se-me sobretudo pelo amor à Terra regado com anos de cárcere no exílio. Pena foi que educado mentalmente nos padrões da cultura jurídica do mundo latino não pudesse ajustar-se ao calão da Terra de que tanto se orgulhava. Dele se podia dizer “mal com os homens por amor à Terra, mal com El-Rei por amor à Terra”.

Como homem de Letras, Telo de Mascarenhas merece ser notado como poeta da tradição vicentina, das canções de escárnio e mal-dizer, um improvisador à velha moda portuguesa das desgarradas, um antigo que não chegou a alcançar os movimentos modernos da poesia e prosa portuguesa. Sendo assim, um poeta da língua lusa, era natural que até o sonho do Nacionalismo ficasse a mercê de suspeição e dúvida porque o local só aceita, porque compreende, unicamente o que se lhe diga em vernáculo ou no colonial mas ganha-pão inglês.

Curvando-nos reverentes perante a grandeza do sonho que permitiu aos Capitalistas maior mobilização de Depósitos e Investimentos em construções, alta de preços de terrenos e melhores facilidades de ensino para os filhos de mães goesas embora com um self-government corrupto, pedimos a Higher Power que nos tolha a mão antes de atirarmos a primeira acusação de Telo de Mascarenhas a paz do silêncio e da verdade junto da campa do grande esquecido Nascimento Mendonça.

Saturday, 8 June 2013

RA - Quanto vale uma simples factura ou ditam os preços a subida da temperatura (1957)

O caro leitor já comprou um fato, não é verdade? Pois não se admire com a pergunta, porque, quase sempre, encarregamos disso as nossas consortes (a palavra não quer significar que elas seja “um poço de sorte” por nos terem conhecido) e elas é que tratam da escolha do padrão, discutem o preço, pedem para cortar uma polegada mais alegando que a fazenda encolhe, enfim, revolvem uma loja põem à prova a resistência dos nervos do empregado do balcão, e no final descobrem um defeitozinho que justifique um desconto de oito tangas.

Insisto, pois, com o caro leitor!

- Já comprou tecido para uma fatiota?

- Já, sim senhor!

- Esplêndido! Eu, também.

Ainda há dias entrei num estabelecimento da capital, e, com aquele ar superior de quem tem muitas Quintas lá na terra (é corrente ouvir-se: ‘tenho umas quintazinhas lá na aldeia que me dão umas quantas pipas’) disse para o empregado: “Ora eu quereria uma fazenda para fato... e o homem nem de deixou dizer mais nada, correndo solicito para as prateleiras e tirando a fazenda que lhe parecia, a matar para a minha aparência de proprietário de ‘Quintas’. O patrão interveio para elogiar o tecido e a afirmar “sob sua palavra” que o mesmo não perdia a cor, sendo baratíssimo para a qualidade. Não deixei que acabasse o seu brilhante discurso. Atalhei-o quando, possivelmente, iria cair no capítulo de mais difícil digestão: o preço. Disse-lhe que sim senhor, que estava encantado com o padrão e a qualidade, que há muito procurava em todas as lojas aquela fazenda e, por não ter encontrado, já tinha desistido de a comprar. Feliz a hora em que tinha trasposto as portas do seu estabelecimento, porque via renovarem-se as esperanças de adquirir o fato com que há muito sonhava. Pena é que hoje não possa ser – disse-lhe eu. Retomei aquele ar de proprietário de Quintas (tenho uma todas as semanas) e atirei-lhe, olhando por cima dos meus óculos: Sabe, eu hoje – e acentuei com ênfase a palavra ‘hoje’ – quero uma coisa qualquer, daquelas ‘para bater’, um tecido inferior, de baixo preço.

O dono da loja, retribuindo em hipocrisia, afirmou que ia apresentar imediatamente o que eu desejava, artigo muito bom, de categoria e baixo somente no preço... um preço módico de 6 rupias a jarda. Mesmo assim fiz encher de peças o balcão (quanto aprendemos com as mulheres!), e foi preciso recorrer a um catálogo de amostras para escolher o padrão mais harmonioso com o tom da minha tez (tanta exigência chega a ser uma tristeza!). Três jardas cortadas, pago o custo... e um pedido que quase nunca fazemos: “se não se importa passa-me uma notazinha... só para ficar com o nome da Casa... o senhor foi tão amável!...”. Acrescentei ainda, “não posso esquecer esta fazenda!...”

Dois dias depois recebia em recado pelo qual o alfaiate – aquele que empresta alguma estética ao fardo que arrasto – me existia “mais um palmo” de tecido para a gola.

Eis-me de novo no estabelecimento que possui a jóia de fazenda que eu disse ambicionar e que nunca desejei nem em sonhos. Atende-me um outro empregado.

- Olhe, eu queria um palmo desta fazenda... um momento... tenho aqui a amostra.

O rapaz procurou por aqui e por ali, acabando por encontrar a mesma peça donde tinham sido cortadas as preciosas três jardas de calibre 6 (segue na quarta pagina)

(seis rupias, claro!).

- Posso cortar? É somente um palmo que deseja, não é verdade?

- Sim, corte!

- Quanto é?

- Ora, a sete rupias a jarda...

- A sete rupias a jarda? Mas está enganado!

- Não... não... Como sabe a nossa casa tem preços fixos... e não podemos baixar nem uma poiçá...

- ... Mas está provado que podem subir!

- Não, nunca! Temos a maior consideração pelo freguês etc etc.

- Então como me explica que eu tivesse comprado esta fazenda, desta mesma peça, a 6 rupias?

- V. Exa. está equivocado.

Calmamente procurei no meu porte-papéis a factura do dia 30 de Março (sim, compras só no fim do mês) e submeti-a a cuidadosa apreciação do leal zelador do “Preçário” da “casa dos preços fixos”. O moço desatou a abanar a cabeça com a rapidez dum pêndulo de relógio que adianta oito horas nas vinte e quatro, e respondeu: “Sim... Senhor pode levar.”

E assim, por ter solicitado uma factura, salvei-me de perder umas tangas num palmo de tecido “para bater”... mas ainda hoje penso se naquela casa de “preços fixos” se não teria verificado um fenómeno físico que o empregado não me soube explicar. Vejamos o caso: quando comprei as três jardas, - há muito as chamadas lâmpadas eléctricas tentavam imitar os lumes dos diuleiôs, corria um ventinho agradável e a temperatura era bastante amena; três dias passados quando comprei o tal “palmo de fazenda” batiam as 16 horas, o sol escaldava, tudo estava quente como brasa. Não teriam os preços sofrido, com a subida de temperatura, uma dilataçãozinha... ali, naquela casa de PREÇOS FIXOS?

Thursday, 6 June 2013

Um Bibliografo - Vasco da Gama: Explorador ou Conquistador (1970)

Levantou-se esta controvérsia a propósito duma tentativa feita pelo Governo local, de remover o busto de Vasco da Gama do pedestal do Jardim Municipal de Pangim.

Interpelado na Assembleia Legislativa sobre o assunto, o MC, Sr. Bandorcar disse que recebera instruções para este efeito do Governo Central. Quem conhece o que se passou neste assunto no resto da Índia o que pensa sobre ele um considerável sector dentro de Goa, não há de estranhar o que se passou.

Por Deus não me perguntem a minha opinião pessoal. Quanto à pergunta do título, remeto os leitores a um artigo em inglês que apareceu no Navhind Times do domingo, 5. E aos que não percebem o inglês, direi que a história regista claramente que Gama foi uma e outra coisa. Regista o seu acto histórico de chegar até a Índia pelo mar, aproveitando da primeira exploração de Bartolomeu Dias até o Cabo de Boa Esperança e do piloto gujerate Davane, que o trouxe de Melinde a Calicut. Também regista que Gama foi cruel e bárbaro, tendo morto a sangue frio e com torturas 1,200 pessoas em duas ocasiões, incluindo mulheres e crianças.

Aos que tiverem a pachorra histórica, remeterei aos livros “Portuguese Pirates and Indian Seamen” por O.K. Nambiar e “Malabar and the Portuguese” por Sardar K.M. Panikkar.

Não obstante tudo isto, o meu Nacionalismo é bastante vigoroso para não se incomodar com um “Padrão Comemorativo da Celebração do Quarto Centenário do Descobrimento do Caminho Marítimo da Índia, 1898”, como ele se intitula.

Esta campanha contra as estátuas dos conquistadores estrangeiras foi iniciada duma forma sistemática pelo finado líder socialista Dr. Rammanohar Lohia era de opinião de que não existia nada de artístico ou cultural nas muitas estátuas de conquistadores, reis e rainhas ingleses que tinham sido plantados em várias partes da Índia. Elas só haviam procurado ferir o sentimento patriótico dos indianos, fazendo-lhes significar que eles eram um povo para ser conquistado, dominado e humilhado.

Perante esta campanha sistemática, o governo indiano decidiu agir passo a passo; seriam deslocadas em primeiro lugar as estátuas dos ingleses que, desta ou daquela maneira, houvessem ferido o brio nacional; na segunda fase, seriam removidas as estátuas dos reis e rainhas ingleses. Só seriam conservados as estátuas dos ingleses que não fizeram nenhum mal aos indianos, ou antes, serviram a humanidade, em vários campos de actividade.

As instruções recebidas do Governo Central devem estar enquadradas dentro destas normas. Caberia ao Governo local interpretar se Vasco da Gama é explorador ou (segue na 2a pagina) conquistador, e agir consequentemente. Se acha que o padrão está lá para comemorar uma expedição científica, pode deixá-lo incólume.

Mas andariam enganados os que pensassem que a reacção popular em Goa seria toda a favor de manutenção das estátuas dos heróis portugueses. Aqui, em O Heraldo, na mesma edição em que o editorial dizia o que estava erigido no jardim não era monumento a Vasco da Gama mas sim padrão para comemorar um facto, o seu colaborador Zótico de Souza na secção inglesa dava a opinião de que a estatua tinha de ser removida.

Cerca de 40 anos antes, o Sr. Dr. António Mirando, então Juiz de Direito, numa conferência feita no Centro Regional de Chinchinim sob o título de “Alguns Aspectos da nossa Mentalidade” escalpelisava os goeses por estarem a baptizar tudo com o nome dos conquistadores.

Dava o exemplo de Margão, cujos mercados eram então denominados Afonso de Albuquerque (Novo) e Vasco da Gama (Velho) e de Pangim que tinha o Liceu Nacional com o nome de A., um Instituto de Cultura com o nome de V. de G. (hoje mudado para o de Menezes Bragança) e um Club V. da Gama, etc.

O Sr. Tristão de Bragança Cunha no seu livro “Desnacionalização dos Goeses” lamentava o facto de os goeses aceitarem piamente o que se lhes meteu na cabeça a respeito de vários “Heróis Portugueses”:

Heróis do Mar

Nobre Povo,

Valente e Imortal.

Creio que não andam esquecidos disto...

Meus caros patrícios, sei compreender o que se passou durante a presença portuguesa aqui. Os portugueses não nos permitiam pensar doutra maneira, sob o risco de meter-nos em ferros.

Mas hoje os srs. não terão desculpas, se não procurarem pensar pelo cérebro próprio e sentirem-se dignos da vossa indentidade nacional. Lembrem-se de que centenas de goeses passaram pelas cadeias portuguesas, combatendo pela liberdade, e quando eles se reúnem até protestam contra um brazão português que estaria gravado na cadeira reservada ao Presidente da Municipalidade das Ilhas!

Saibam, que quanto ao Padrão a que me refiro, já foram chapadas nos jornais as fotogravuras de quatro medalhões de mármore que existem na sua base, sendo 3 deles dos conquistadores A. A., D. João de Castro e D. Francisco de Almeida, que podem ser heróis para os portugueses, mas cometeram um sem-numéro de atrocidades contra a nossa gente.

Um deles é de Luís de Camões que os Nacionalistas respeitam como Poeta que foi, de renome internacional.

Os que acham que o Padrão comemorativo do descobrimento do caminho marítimo não deve ser removido, têem o dever de convencer os seus compatriotas doutra opinião, de que se trata de comemorar um evento histórico-científico e que esperam deles tolerância quanto ao outro aspecto da carreira do Gama – o de pirata e conquistador – que este Padrão não procura comemorar. Não só não devem revelar ignorância dos factos históricos pouco abonatórios aos portugueses, mas não devem criar ambiente hostil patrocinando a Causa Colonialista portugesa em cubículos vizinhos. Se não fizeram isto, o Governo não poderá guardar esses monumentos contra a sanha popular... Lembrem-se de que em várias partes da Índia foram cortados os narizes a esses estatuas e untadas as mesmas com espesso breu!

Permitiriam os portugueses estátuas aos nossos guerreiros Ashoka, Akbar, Shivaji e Netaji no seu solo? Porque permitiremos então estátuas aos que nos conquistaram, como o “Grande” Albuquerque? Para revelar ao mundo que somos uma raça inferior que se ufana de ter sido conquistada e dominada e insultada?

O bem que tenha advindo do domínio português é outra história. Nenhuma acção humana é só mal ou só bem. Há muito bem que vem no encalço das conquistas e guerras.

Mas nem por isso os homens gostam das guerras e conquistas. O homem é por natureza um ente que gosta de ser livre. Assim o prova a história. Só os indoctrinados, desnacionalizados, creolizados beijam as mãos dos seus conquistadores.

Pedro Correia-Afonso - Agostinho Fernandes (1973)

Foi através de “A Literatura Indo-Portuguesa” de Vimala Devi e Manuel de Seabra que eu vim a conhecer o Agostinho Fernandes e o seu romance “Bodki”. Eis o que aqueles dois autores dizem de um e doutro:

“Se não foi o primeiro romance adulto da Índia Portuguesa (referência ao “Signo da Ira” de Orlando da Costa), “Bodki” é, sem dúvida, o mais importante.

“Agostinho Fernandes traduz nesta obra a sua experiência de clínico numa pequena aldeia do interior de Goa. Trata-se de um romance em primeira pessoa, autobiográfico na medida em que a confissão pessoal tem lugar numa obra de arte. Recém-formado, o autor – ou antes a principal personagem – preterido num concurso para delegados de saúde por um colega menos classificado mas melhor apadrinhado, decide exercer medicina em Maxém, na zona fronteiriça. Toda a obra é a luta que se vê obrigado a empreender contra os mitos, as superstições da população hindu e católica. O seu primeiro cuidade é estabelecer uma reputação, a fim de poder criar influência com que deter o gadhi, o feiticeiro hindu que mantém aquela gente agarrada às suas superstições tradicionais.”

“Feita a sua reputação, ao protagonista não faltam doentes, principalmente a gente humilda da terra. Mas a luta contra a ignorância e a superstição é uma constante de todo o livrom, sobre cujo enredo, além disso, paira, do principio ao fim, a sombra aziaga e misteriosa da bodki, alvo de todo o ódio e frustração da gente da aldeia. Mas quem é a bodki? Sabê-lo é condição indispensável para a perfeita compreensão da obra. Agostinho Fernandes, cônscio de que está a escrever para um público desconhecedor das tradições religiosas hindus (o livro foi publicado não em Goa mas em Lisboa), põe a explicação na boca da própria bodki, que a trasmite à filha Kamala, a heroína do romance. Bodki é um substituto do sati, o sacrifício da viúva na pira funerária do marido. As viúvas que se recusavam a este sacrifício tinham de considerar-se mortas para o mundo. Rapavam a cabeça, vestiam sari branco e retiravam-se da povoação, passando a ser consideradas aziagas, amaldiçoadas, pela deusa Agni, a deusa do fogo, a quem não tinham obedecido.

“O tema, a luta contra a ignorância; a moral, de que só elevando o nível cultural do povo, é possível vencer nessa luta, estão admiravelmente delineados. A intriga é aliciante e Bodki é certamente um dos romances mais bem construído da moderna literatura portuguesa, e um dos poucos romances portugueses com possibilidades de conseguir vasta audiência internacional por mérito próprio” (as expressões parentéticas são minhas).

Compreende-se que, lida a apreciação dos autores de “A Literatura Indo-Portugueses” quando esta obra apareceu; eu tivesse o mais vivo interesse em ler o romance de Agostinho Fernandes. Mas como ninguém em Goa, que eu soubesse, possuía um exemplar da obra, foi só recentemente em Lisboa que pude ler o livro, depois de o adquirir por uma ninharia, 5 escudos, num passeio ao pé do Chiado, posto à venda no chão por um livreiro ambulante que ainda tinha pelo menos meia dúzia de exemplares, todos em primeira mão.

O romance, publicado por conta própria pelo autor, com capa de Anita Estibeiro, em 1962, um ano apenas, portanto depois do “Signo da Ira” ter-se-ia, pelos vistos, vendido mal, o que mostra que, sem embargo de tudo o que dele dizem Vimala Devi e Manuel de Seabra, esta primeira tentativa literária de Agostinho Fernandes não teve sequer em Portugal a audiência que seria de prever para “um dos romances mais bem construídos da moderna literatura portuguesa” e “um dos poucos com possibilidades de conseguir vasta audiência internacional”.

Há aliás um manifesto exagero e algumas inexactidões na apreciação crítica de Vimala Devi e Manuel de Seabra. Para apontar duas destas, trata-se realmente de um romance autobiográfico numa certa medida, mas o autor não é a principal personagem, pois a principal personagem, a heroína, como se diz mais tarde, é Kamala, a filha da bodki e ela mesma em vias de se tornar, de qualquer modo, uma bodki, por morte do amante, o pintor Singh, sique e não parse, como se infere do próprio nome.

Bodki será de facto um romance com uma “intriga aliciante” e que “decorre todo num ambiente de grande suspense e dramatismo, que prende e arrasta o leitor”, mas não se pode dizer que seja “um dos romances mais bem construídos” de (toda) a moderna literatura portuguesa. A meu ver, há mesmo uma sobrecarga de episódios, alem de divagações, os tais “longos solilóquios” discutindo os méritos da medicina, problemas de consciência, etc., que quebram a unidade da narrativa, faltando-lhe precisamente aquilo que mais se gaba no romancista, “uma notável e instintiva noção de “medida””.

Ainda bem, pois, que os dois críticos reconhecem que Bodki está longe de ser um romance perfeito e tem defeitos, “tem-nos principalmente de estilo e técnica. Vê-se claramente que a Agostinho Fernandes falta “ofício”. A linguagem é por vezes descuidada, pouco precisa... Não admira que assim seja, pois Agostinho Fernandes não é, ao que consta, um “literato”, não frequentou tertúlias nem discutiu problemas de técnica e estética literária, talvez não possua mesmo uma grande cultura literária. Agostinho Fernandes é um escritor nato, que viveu e escrever espontaneamente, longe de influências e de “literatos”. É precisamente isto que, em minha opinião, dele destingue, de modo assinalado, o outro romancista goês contemporâneo Orlando da Costa, autor do “Signo da Ira”, Prémio Ricardo Malheiros de 1962.

Maria Piedade - Radioscopia (1954)

Um perfume intenso de flores
Subia até mim
Do jardim
E, estática, eu olhava a noite escura
Onde eram sombras os perfis e as cores.

Mas não sei se era uma esplêndida tortura.
Porque aquela noite escura
Penetrando-me subitamente na alma
Pôs-me nos olhos
A luz de um relâmpago
E numa estranha radioscopia
Eu ia descobrindo, a pouco e pouco,
As mil estátuas e os tesouros
Que, no seio, a noite ciosa escondia.

E assim eu olhava, e via, via
Toda a transparência da noite sombria.

As artérias estendiam-se desertas e tortas
Pois a essas horas mortas
Mesmo o rio cessara
O rumor das águas imprecisas...
E o silêncio guardava
As vozes das coisas invisíveis...

Aqui e alem sons inúteis e desgarrados...
Um vago latido de cão fiel e amigo,
E, nas casas, as ingénuas donzelas
Bem guardadas
Tinham há muito cerrado as janelas
Onde sentadas
Fizeram rendas e bordados lançando olhares furtivos p’ra as vielas!

Sós, eu e a cidade,
Na intimidade da paz não perturbada
Com ondas de orgulhosa tristeza e triunfante verdade
A erguerem-se... a desfazendo-se
Nas praias da minha alma iluminada.
Então eu senti... vibrar doce a sensibilidade
Pulsar mais forte a minha mocidade.

E o coração da noite, a palpitar
Abria-se
E descobria-se
Entre os faróis dos meus olhos, a vaguear.

Em estreitos sobrados
Fazendeiros refractários e endinheirados
- novos e velhos em pagã irmandade –
Jazendo tristonhos
 E monótonos, sem paixão e sem sonhos!...

Uma luz acendeu-se...
... uma lâmpada acendeu...
Abrindo a porta um sonolento criado
Ao marido retardado e embriagado
Na estúrdia dos cabarets e dos cafés...
E a mulher no sofá
... dormindo um sono fraco.

Forte e penetrante
Cada vez mais,
Era apenas
O perfume que vinha do jardim
E a noite interpondo-se entre a cidade e mim...
Tudo o mais é distante, frágil
Envolto nos mistérios dos lares.

Noite de angústias e de receios
Para os infelizes desgraçados,
Sem o amor, a ternura, o carinho de uma mãe;
Para os que no erro e na maldade se entretêm,
Roendo misérias e afrontas,
Remoendo vinganças...!
Para outros noite cheia de promessas e sorrisos
No braseiro de horas vividas
E ao calor das esperanças...

Tudo é grande, intenso e profundo
Quando, ardente, a Noite beija o mundo!

As folhas das árvores já não tremem,
O vento parou... os ramos não gemem.

E na Igreja a Cruz
São braços nus
Estendendo-se piedosamente.

A Noite dorme sobre a cidade
Em total abandono de mulher enamorada
Enquanto os meus olhos indiscretos,
Na ânsia de tudo ver,
Seguem os caminhos longos e incertos
Do drama misterioso do Ser.

Mas a noite dorme sobre a Cidade,
Tremente, bela, apaixonada...
Fechado em si o segredo da verdade e da tristeza
Que não foi dito aos meus olhos ávidos de beleza.

Margarida de Lacerda - “A Lenda de Josafate e Barlaao” (1981)

A primeira vez que o nome de Buda se encontra mencionado no Ocidente é nos escritos de Clemente de Alexandria (cristão morto em 217) com a vorma Boutta nos Stromata.

No campo da filosofia, por exemplo, foi a profunda impressão que as ideias contidas nos Upanishads causaram em Schopenhauser que o fez escrever: Os Upanishads são a leitura mais compensadora possível no mundo. Tem sido o lenitivo e sê-lo-á da minha morte.

Gaston Paris pensava que as influências principais que geraram medieval, as canções de gesta e as literaturas modernas foram a antiguidade clássica, o cristianismo, as tradições celtas e os livros indianos.

Foi graças aos estudos orientalistas feitos no século passado que muitas das origens de géneros literários cultivados no Ocidente se revelaram e que até aí tinham sido atribuídas aos Persas, Árabes, Gregos que não teriam sido mais que os transmissores de tais correntes. Foram eruditos como Bournouf, Max Müller, Weber, Benfey Oldenberg, Bergaigne, Sacy, Deslongchamps, Muir, Zotenberg, Gaston Paris Bedier e tantos outros novos horizontes e investigação com as suas fascinantes descobertas e divulgação das literaturas da Índia que forneceu grande manancial de inspiração literária, nomeadamente os escritos de origem budista.

Na Índia, no dizer de Lin Yu-Tang, “a land and people intoxicated wth God”, foi a religião a principal preocupação desde tempos imemoriais; o conhecimento da alma divina e a maneira de atingir o que eles chamavam a libertação: Moksa para os Hindus, Nirvana para os Budistas. Por isso a literatura indiana está profundamente imbuída desse espírito religioso, e a grande parte das ciências estudadas pelos indianos girava em volta da religião e do sacrifício. A astronomia para determinar as influências benéficas aos cerimoniais, a gramática e a fonética para preservarem os textos sagrados dos Vedas, etc. As parábolas e fabulas, que tanta popularidade conheceram foram grandemente usadas para ensinar um preceito moral, uma regra de conduta para narrar episódios das vidas do Buda, mesmo quanto não tinha ainda atingido, na sua longa evolução a carreira humana para dar ensinamentos de politica, por vezes para ilustrar um moral utilitária – cujo mérito pode ser discutível sob o nosso ponto de vista.

Um dos capítulos mais fascinantes nesta história, das influências indianas nas literaturas ocidentais é sem dúvida o das fabulas e apólogos indianos e, a par deles a lenda do Buda, conhecida no Ocidente como a História de Barlaam e Joasaph ou Barlaão e Josafate.

É esta história de Barlaão e Josefate reconhecida como uma das mais flagrantes contribuições da Índia para as letras do Ocidente. Esta lenda teve grande voga desde a sua aparição e difusão do século XI em diante e conta pelo menos noventa versões em diferentes línguas. O seu estudo já fez correr no dizer de Jean Sonet, ondas de tinta e, apesar disso, ainda não está tudo dito a seu respeito, e de quando em quando aparece mais alguém que não pode resistir ao seu fascínio.

Este caso de lenda budista que aparece como história cristã no Ocidente, como um sermão dado para exemplo dos cristãos, especialmente dos monges, visto ela andar mormente em voga nos mosteiros, foi um caso único nos anais da História. Will Waynes afirma que este fenómeno é “one of the most remarkable things that ever happened in the history of religion.” Macdonnell: “one of the most astounding facts in religious history.”

Esta história, surgida nos alvores da Idade Média, teve o raro condão de servir, mediante ligeiríssimas adaptações de instrumento apologético e variadas religiões. É um caso inédito o desta lenda, que vestindo-se ora com outro encantou e catequizou os leitores das diversas raças, credos e seitas. Foi este livro tão apreciado não só devido à moral que encerra como também por o seu principal herói ser um príncipe de um reino longínquo, mas e principalmente por aquela moral exemplificada por numerosas parábolas que tanto apelam para a imaginação. Tal como o celebre livro de fábulas Calila e Dymna do qual nos ocuparemos outro lugar, o livro de Sindband veio-nos do Oriente em longa peregrinação através de traduções sucessivas e de acrescentamentos feitos pelos povos que iam conquistando e os iam adoptando.

No Ocidente esta influência nota-se marcadamente em Don Juan Lope de Vega Calderón, Boccaccio, Shakespear, La Fontaine e até em Tolstoi. Em Portugal, no que respeita à influência dos apólogos indianos, Vasconcellos Abreu descobriu o paralelismo que é indubitável entra a nossa Mofina Mendes, de Gil Vicente e a fabula sânscrita do Panchatantra o Mofino brâmane e o jarro de farinha nas quais por singular coincidência – que, segundo V. Abreu não se verifica em qualquer outra língua – ambos foram apelidados de Mofinos. Este mesmo tema econtra-se na celebre fabula de La Fontaine, “La laitière et le pot au lait à Perrette” na qual a influência indiana é magistralmente estudada por Max Müller.

Encontramos também entre outros influências do Oriente em Chaucer, Staparola, Doni Firenzuola, Eberard Rabelais e até nas canções de gesta.

É esta a lenda de Barlaão e Josafate a transposição ou antes disfarce do Buda em vestes cristãs e este fenómeno fez uma sensação enorme.