Wednesday, 27 February 2013

Eduardo Meirelles - Fantasia Goesa (n.d.)

A noite saíra, fazendo o seu turno
Pela praia deserta onde o vento bailava.
Pousado num muro, um mocho nocturno
Piou tristemente. – Serídia sonhava
Num vulto que vinha, rasgando a paisagem,
Por sob os coqueiros que a Lua embranquece.
Vem só, meditando, que triste viagem!
Mas traz Sol nos olhos que olhado entontece.
Donde virá ele? Que rude caminho!
Avança gingando, traz veste do mar...
Mas quem será ele que à noite, sozinho,
Parece perdido... Parece sonhar?!
Serídia acordava do seu sonho lindo,
E, abrindo uma porta que deita p’ró mar,m
Ouviu, fascinada, um homem, sorrindo,
Cantar suas penas à luz do Luar!
E as horas que a Lua batia na alma
Da pobre Serídia, d’amor despertando,
Levaram esse homem pela noite calma
Chorando sorrindo, sofrendo e cantando!
Na praia deserta, Serídia ficou
Chamando por ele... Por um nome qualquer.
Ele ouve; não para; e ao longe cantou
Suas penas d’amor... Por outra mulher!
Beijaram-se os meses: ei-lo que voltava.
O mar tranqüilo, sereno se ouvia,
E a Lua, enlutada, no Céu se embrulhava.
Chamou: nem viv’alma! Na praia sombria
Só algas boiavam à tona das águas.
O vento cessara seus loucos bailados.
E o mocho nocturno chorara tais mágoas
Que a vista perderam seus olhos vidrados.
Abraçåm-se os anos: eis grita,h já calma!
Seu corpo balouça na cruz d’agonia.
Na casa da praia, extinguiu-se a chama.
Ninguém lhe responde – Serídia dormia...

Remígio Botelho - Ó Sol de Maio (1964)

Ó Sol de Maio
Queima-me a alma...
Queima-me mais
A alma queimada,
Acrisolada,
Como o topo dos palmeirais:
Alma de jovem
Exilada
Em terras d’além:
Alma de crente
Penitente,
Sonhando
Ao Sol brando
De Lisboa:
Sonhando, sonhando sempre
Longe, longe de ti,
Ó Sol de Goa!

Ó Sol de Maio!
Sol ardente,
Dardejante,
Quão diferente
Do Sol distante
Que me vela os passos,
Ó Sol do Hindustão!
Tu só velas os abraços,
Dos que voltam e dos que vão...

Ó Sol de Maio,
Canicular!
A bater
Intransigente
Sobre a terra e sobre o mar...
A bater eternamente
Sobre o fruto
Amadurando
Na herdade,
E sobre a praia
Onde se espraia
A Saudade...

E que saudade, meu Deus!
Sob esses mesmos céus
Donde me fitas e gritas
Ó Sol amigo!
Ouvi eu em grito
Aflito
Dos que não têm abrigo,
E dos que não têm pão...
E o teu calor
Abrasador
Não me faltou então!

E quando a chuva caía
Noite e dia,
Caía incessante,
Alagando,
Ameaçando
O viandante,
Muita vez ajoelhados,
Sobre os soalhos molhados,
Pedíamos o teu calor!
E tu, Sol amado,
Desejado
Eras sempre o vencedor!

Ó Sol de Maio!
Sol ardente, dardejante...

E agora parto, Sol d’Amor
Que me vistes nascer,
E crescer
Ente as jaqueiras,
E as goiabeiras,
E as mangueiras em flor...
Eu parto... mas em mim fica,
A mensagem rica
Do teu rico calor...
E quando um dia voltar,
Já cansada de andar
De toda a Terra em redor,
- Já cansada finalmente,
Doutros mundos, doutra gente –
Seja me dado,
Ó Sol de Maio, abençoado,
Na santa embriaguez
Daquela hora,
Abraçar mais uma vez,
Os que me abraçou outrora.

Ó Sol de Maio
Queima-me a alma...
Queima-me mais
A alma queimada,
Acrisolada,
Como o topo das palmeirais;
Alma de jovem
Exilada
Em terras d’além;
Alma de crente
Penitente,
Sonhando
Ao sol brando de Portugal;
Sonhando, sonhando sempre,
Longe, longe de ti,
Torrão natal!

Clara de Meneses - Expiação (1964)

Como vergada ao peso da desgraça
Viva numa tristeza aterradora
Quando despontará p’ra mim a aurora?
Quando me raiará a luz mesmo baça?

Vem esgotando de amargura a taça
E ao sumir nesta chama redentora
A vida que cantou e agora chora
Minha alma sairá de lá sem jaça.

Rasga-se a treva, rompe alva a manhã
Tudo em volta trabalha com afã
Mas vencido ainda jazo no torpor.
É que estou a cumprir meu triste fado

A expiar o capital pecado
De não ter compreendido bem teu amor.

Tuesday, 26 February 2013

Padre Pedro Lobo - O Sovina (1982)

Dizem que os escoceses são sovinas por natureza; mas há destes sob todos os céus porquanto a índole é a mesma onde quer que seja. Ser sovina é feitio com que cada um nasce, ou que cada qual adquire por força de hábito, que se torna segunda natureza. Como tudo o mais, sovinice tem graus. Conheci um. Bom homem religioso e escrupuloso, mas dessa religiosidade e escrupulosidade” que não vão para alem da epiderme, e se limitam a certas áreas da vida, ou como Cristo disse com muita piada, religiosidade que é capaz de coar um mosquito e engolir um camelo.

Trabalhou desde jovem com afinco e honestidade, entrou nas boas graças dos seus superiores e subiu aos poucos os degraus da burocracia. Gastou o mínimo, economizou o máximo e pôs o dinheiro a render o melhor possível.

Casou porque precisava de uma mulher que lhe fizesse todo o serviço domestico e lhe poupasse cozinheiro, lavadeiro, jardineiro, alfaiate e outro pessoal i.e. o correspondente dinheiro em salário e comida. Depois de alguns anos nasceu-lhe uma filha. “Primeira filha, maravilha”, diz-se, mas para ele foi esse um dia de luto, só de pensar que no futuro muito distante ela o privaria em dote duma parte considerável do vil metal que adorava e que tão somiticamente tinha amealhado. Apertou a cinta e pôs-se a economizar mais ainda, para enfrentar a negra eventualidade, que a má sorte lhe deparara, e que lhe era desde já um permanente pesadelo. Depois de ter matutado profundamente, resolveu conservá-la solteira, convencendo-se, como bom cristão, de que o estado de virgem era mais perfeito do que o conjugal. Quando viu que a mulher não o presenteava com mais prole, concluiu que a melhor maneira de guardar o dinheiro em casa era ter um genro comensal. Instrução primária, que graças ao Governo era gratuita, era mais que bastante para a filha que ia ser esposa e mãe. A mulher lhe ensinaria a cozinhar e a fazer outros trabalhos caseiros, de modo que a filha seguisse o mesmo teor de vida que ele tão fanaticamente impusera à mãe. Ele estaria lá para regular o orçamento e vigiar as despesas. O genro seria membro da família, mas não dono da casa. Pronto!

Vivia uma vida triangular – casa, igreja e repartição; não visitava ninguém para não ser visitado também, poupando despesas desnecessárias com comes e bebes. Pelo mesmo critério, não ia aos clubes e não assinara jornais, vestia-se pobremente, comia parcamente, vivia miseravelmente e economizava religiosamente, sacrificando o presente ao futuro.

A mulher, cada vez mais fraca e esvaída com as magras refeições e fatigantes ocupações, adoeceu seriamente. O avarento não quis consultar médicos, visto que eles e suas receitas, custam os olhos da cara, e tratou-a por herbolarios e curandeiros, e só quando ela piorou e o seu estado se tornou muito grave, levou-a a um hospital provinciano e fê-la admitir gratuitamente, como pobre. Quando ela morreu, o fona resignou-se ao destino, como bom cristão, convencido de que tinha feito por ela tudo quanto podia ter feito, e atirou as culpas nos médicos, que não souberam diagnosticar, ou não lhe deram remédios necessários para a curar. Consolou-se com o piedoso pensamento de que Deus sabe muito bem que uma mulher doente se ia um encargo custoso e uma boca improdutiva para alimentar, alem de ser uma cruz pesada para si própria. Para mais, a filha era já crescida e casadoira, capaz de arcar com as responsabilidades doméstica, para que fora bem treinada pela mãe.

Herdeira universal de uma grande fortuna, a menina, que ia perdendo aos poucos o viço da mocidade, devido à pobre alimentação e ao excessivo trabalho que agora se via obrigada a fazer sozinha, tinha naturalmente muitos pretendentes, mas o pai não aprovava nenhum deles, por melhores que fossem. Ele quer um genro tão forreta como ele, se fosse possível. Quando algum jovem entrevistado lhe assegurasse que trataria a sua futura esposa com todos os cómodos – boa mesa, bom guarda-roupa, enfim boa vida, - o unhas de fome, que já o desqualificara na sua mente, dizia-lhe: “Fico de pensar e escrever”. E não escrevia. Assim vieram e foram muitos.

Depois, apareceram outros, que, matreiramente mudaram de táctica. O velho oferecia-lhe tabaco e eles diziam que não fumavam; oferecia-lhes bebidas, e eles fingiam ser abstémios; convidava-os para almoçar com o fim de os observar, e comiam muito pouco; finalmente, ele, já algum tanto bem disposto, pedia-lhes para passar a noite, para poderem discutir futuros planos. Mas quando notasse, e sempre notava, qualquer pormenor que não lhe agradava, dizia: “fico de pensar e escrever”, e ali terminava o assunto. Desapontados, eles comunicavam uns aos outros, os detalhes da entrevista e discutiam a provável causa do mau êxito. Finalmente, um finório, munido de todas as informações colhidas daqueles que o tinham procedido na difícil empresa, apresentou-se modestamente vestido, em casa do avarento.

Começou o ritual esperado. O sovina ofereceu-lhe tabaco e este não só recusou, mas mostrou-se tão surpreendido que uma pessoa de tanta experiência e idade despendesse dinheiro tão precioso em coisa tão inútil. E acrescentou: “Embora novo, conheço bem o furo que o tabaco faz na algibeira da gente, reduzindo a fumo e cinzas as economias reunidas com tanto sacrifício e suor. De maneira que eu, para falar francamente, em tempo, fumava cigarros e charutos da marca “Que Me Dão,” mas comprá-los, isso não! Da mesma forma, ia a casa de amigos a hora em que é costumeiro oferecer bebida e bebia quanto me apetecia, mas comprá-las e, pior ainda, oferecê-las, isso eu nunca fazia, pois era crime contra a economia.”

Quando o velho ofereceu-lhe vinho, este sentenciou que esse líquido traiçoeiro já tinha liquidado enormes fortunas, e que ele se obrigara por um voto a Sta. Cunegundes a nunca pegar num cigarro ou num copo de vinho ou aguardente. Quando o velho quis oferecer-lhe ao menos uma chávena de chá, o maroto desculpou-se dizendo que chá, leite, açúcar e lenha que uma chávena implicava, é despesa perfeitamente dispensável nesta carestia: e para mais, o açúcar, que está tão caro, é causa de diabetes, que por seu turno consome drogas que custam um dinheirão. Ao almoço comeu tão pouco, que o velho censurou-o pela sua demasiada parcimónia. Ao que este respondeu: “Come-se para viver, i.e., o indispensável para conservar corpo e alma unidos. Só os glutões vivem para comer, e isso é um vício tão mau como fumar ou beber, pois além de custar dinheiro, encurta a vida. Para mais, a nossa Santa Religião nos ensina que a gula é um dos sete pecados capitais. Sei que é indelicado fazer reparos à mesa. Mas para que está o senhor a gastar tanto dinheiro em cebola, coco e azeite? Cozer hortaliça e fritar peixe em água é mais económico e não aumenta o colesterol, pois não? Economia, acima de tudo, eis o meu princípio.”

O fona enamorou-se deste jovem que filosofava a cada passo, prova de que pensava profundo e tinha fortes convicções. Era até teólogo: mas, contudo, convidou-o a passar a noite para se conhecerem melhor. Era o que este esperava. A ceia debicou como um passarinho, notando que as refeições da noite devem ser sempre leves, visto que o estômago trabalha menos quando deitado na cama. O velho não sabia como admirar tanta sabedoria em cabeça tão nova. Estava quase decidido a aceitá-lo como genro.

Depois da ceia, foram sentar-se no balcão, para deixar a menina livre para lavar os pratos e fazer as camas. O burlão sugeriu que fosse apagada a pequena candeia que o velho lá pusera, pois era desperdício de petróleo; ele mesmo foi e apagou a luz, não obstante os protestos fingidos do avarento, que tinha gostado da ideia. Ficaram os dois em completa escuridão. Depois de alguns minutos de cavaqueira, o jovem saltou do seu assento como que alguma coisa o tivesse picado. Assustado, o velho quis saber o que fora, e o maroto explicou que era seu hábito, quando estivesse sozinho ou na escuridão, abaixar as calças e sentar-se mas que desta vez se esquecera de o fazer. Intrigado com a revelação, o sovina indagou a causa desta esquisitice e o velhaco disse: “As calças gastam-se nos joelhos e nos fundilhos: no primeiro caso podem ser convertidas em calças curtas, mas no segundo caso ficam inutilizadas. Este hábito que tenho cultivado tem-me poupado muitas calças.

O sovina ficou tão impressionado, pois tal ideia nunca lhe passara pela mente, que resolveu casar a filha com esta jóia de rapaz que a Providência lhe mandara. Certo do consentimento da filha, disse ao figurão que o aceitava de boa vontade como seu futuro genro comensal, e que no dia seguinte os dois iriam ao vigário, ao registo civil e ao tabelião fazer as diligências necessárias, sem mais perda de tempo. Foi dar a filha a boa notícia e foram os três, cada um ao seu quarto, dormir, mas nenhum deles pregou olho, de felizes que estavam, o patife mais que todos.

Fez-se o casamento com a maior economia e o sogro passou ao genro e à filha toda a sua riqueza, convencido de que ela estava mais segura nas mãos de um homem mais económico e meticuloso que ele próprio. A convicção durou pouco. O genro virou a casaca e mostrou-se as suas verdadeiras coras. Fumava como uma chaminé, bebia como um peixe, comia como um cevado e obsequiava amigos como um nababo. Às recriminações do sogro respondia com uma sonora gargalhada. Uma bela manhã encontraram o velho morto na cama, com todas as regras. Suicídio ? Ataque cardíaco? Ninguém sabia. O vigário, o sacristão, dois coveiros, o genro e a filha foram os únicos que o entregaram à terra-mãe. Tal vida, tal morte. E a riqueza? Essa o genro perdulário comia-o mais sofregamente do que os vermes comiam o sogro usuário...

Monday, 18 February 2013

Alberto de Menezes Rodrigues - O Divino Infante e o Bom Ladrão (1968)

No seu castelo Dimas agasalha
A sagrada família fugitiva,
Que, uma noite chuvosa, ele encontrou
Nos arredores, toda apreensiva.

Manhã seguinte, sobem ao terraço,
Onde respiram brisa muito pura
Dimas toma o menino nos seus braços
E conta-lhe coisinhas com ternura.

Apontando um cabrito que pastava
Não muito longe e era branco e belo
Diz que o dá ao Menino para que Ele
Se lembre da hospedagem do castelo.

Jesus sorri suavemente a Dimas
E afaga-o com a sua rósea mão;
Agradecendo desta sorte a oferta
Que era feita pelo bom ladrão.

Na tarde, despedindo-se o Menino
Seus braços põe sobre o ladrão amigo
Que ouve, então uma voz: “a tua morte
Sem gloriosa; morrerás comigo”.

Quase trinta e três anos decorreram...
No Calvário, Jesus em agonia
Reconhecendo ao lado o bom ladrão
Levava-o, termo em sua companhia...

Padre Pedro Lobo - O Casamento (1982)

Havia um casamento na minha aldeia. O noivo, um limpa-pratos vindo do Golfo Pérsico, ia ter uma festa de espavento para celebra a vitória final do seu coração sobre os seus pais e mais parentela, que se opunham a que ele se casasse com a moça a quem namorava há alguns anos. É a eterna questão de castas e classes e desequilíbrios sociais, que surge sempre contra o casamento, mas nunca contra o namoro, mancebia e outras actividades compartilhadas.

Como sucede com todos quantos sofrem do complexo de inferioridade, o novo rico, que tinha a bazófia de dizer que trazia consigo mais notas bancárias do que as folhas do tamarindeiro secular do Dr. , em cujo prédio morava, viha apostado a celebrar bodas de arromba para deslumbrar os velhos ricos e fazer cócegas à freguesia inteira com uma sumptuosidade nunca dantes vista por estas redondezas.

Talvez por eu ter simpatizado com o noivo e efectuado um armistício na família, fui convidado a fazer o brinde, mas em português, ou pelo menos em inglês – ambas as línguas perfeito chinês para os nubentes e suas relações. É a bem conhecida mania do goês, nobre ou plebeu, rico ou pobre, instruído ou analfabeto, que pensa que o seu nível social sobe alguns degraus quando fala língua que não é sua. Aceitei o convite, mas sob condição que o brinde seria na nossa língua materna, pois antevia o auditório que me esperava, e não me dispunha a fazer o ridículo papel de falar em idioma desconhecido da grande maioria, só para satisfazer a vaidade do populacho, que quer empertigar-se, guindando em andas ou pernas de pau.

A ‘entrada’ era a uma hora depois do meio-dia. Fui lá uns minutos antes da hora marcada e encontrei a sala alugada já atulhada de um formigueiro de crianças de todas as ideias e tamanhos, e de gente em trajes tão variegados e disparatados, que seria mais exacto chamá-los carnavalescos. Para amostra: estava lá uma rapariga muito gorda, vestida de calças muito apertadas de amarelo muito berrante, e uma camisola preta de malha, demais pequena para um busto tão enorme, com uma caveira no peito e outra nas costas com este dístico em letras garrafais brancas: “Meet me at the graveyard!”

Ia chegando ainda mais gente, não em pares, como se fazia dantes, mas em bandos, capazes de encher a cógulo mais uma sala. É que basta haver uma função nas nossas aldeias, e nesse dia não se acende lume de fogão, e os pais com toda a sua filharada aterrisam lá como um enxame de gafanhotos com um só intento: beber e comer à tripa forra.

Por falta de assento, fui ocupar o sofá reservado para os noivos, pois hoje ninguém tem a delicadeza de oferecer o seu lugar a uma pessoa de idade ou respeitabilidade, graças a educação moderna ou, melhor, à falta de educação elementar não obstante a pletora de escolas e colégios, onde não se suplementa o que falta à educação caseira, nem se remedia as suas flagrantes lacunas.

(continua)

A ornamentação era de tal profusão, que não havia lá lugar para mais um festão ou para mais um balão. Nas paredes penduravam cartazes com caricaturas de homem e mulher em pelo e os seguintes letreiros: Amor é felicidade. Amor é intimidade. Amor é união. Amor é sexo. Amor é??? e coisas assim, sugestivas insinuantes, de mau gosto, terminando com mais esta obscenidade: Love is a 4-letter Word! para conspurcar a santidade do matrimónio, dando-lhe uma torcedura retintamente carnal..

Uma orquestra chamada “Relâmpagos e Trovões” pôs-se a afinar os intrumentos; duas guitarras eléctricas tocavam uns arpejos, um drummer fazia umas acrobacias com as suas baquetas “para se esquentar”, e um saxofone e um clarinete executavam uns gorjeidos. Isso durou por algum tempo, até que afinal um mulherão que desejava ouvir uma musicata, disse com um ruidoso bocejo: O que estão eles a tocar? Mas a esposa do Sr. Dr. X, com ares de pessoa muito entendida na arte de Mozart, explicou-lhe em surdina: “Oiça com atenção, é música clássica!”

O relógio marcava já duas horas e meia e os noivos não apareciam. A causa desta desaforada demora era que eles tinham ido a Panjim para se fotografar, pois todos os fotógrafos de Mapuçá, conforme eles eram uma turma de palermas que não prestavam para nada. No entanto, chegava mais gente, que conhecia melhor que eu a suposta pontualidade goesa; mas o que me intrigava mais era que aqueles que, como eu, tinham chegado a hora marcada, não se ralavam com a demora, que para eles era a coisa mais natural do mundo, e até contribuía para maior solenidade da ocasião. Para o inglês o tempo é dinheiro. Para o goês, que timbra em macaqueá-lo, o tempo não vale um chavo. O relógio é uma jóia para adornar o pulso, não para ser consultado, menos ainda obedecido. É inútil perder o tempo a filosofar. Cada povo é o que é, e o que desavergonhadamente teima em ser. Dizem em tamul: “Na terra onde se cultiva nudez, vestir langotim é estupidez.”

Finalmente os noivos chegaram uns minutos depois das três, radiantes de glória nos seus ricos trajes de noivado com a sua vistosa comitiva, e foram recebidos por entre um foguetório ensurdecedor, salvas de palmas e a fanfarra de instrumentos desavindos uns com os outros. Dirigidos por um mestre de sala trazido da freguesia vizinha e que só falava a língua de Milton, os noivos passearam pela sala a passo de caranguejo e receberem uma chuva de confetti trazidos do Golfo.

Depois do corte do bolo de noivado no meio de clarões que partiram de uma meia dúzia de máquinas fotográficas profissionais e amadoras, foi anunciado que eu ia fazer o brinde. Esfomeado e sedento, armado com um copo de vinho, dei uns passos para a frente e comecei, com visível surpresa dos ouvintes, o meu brinde... em concani. Até a esposa do Dr. X resmungou, para eu ouvir: “Pouca de vergonha!” Mas eu felicitei os noivos e suas famílias, desejei-lhes todas as ventras, falei do amoroso sacrifício que a vida conjugal demandava, a sua santidade e indissolubilidade, e tudo quanto a minha teologia conservadora me inspirou, e terminei, diplomaticamente, com as sacrossantas e mágicas palavras: “God bless the bridal couple. Vivam os noivos!” Foram precisamente estas duas frases em inglês e português que me valeram uma vigorosa salva de palmas e me absolveram da ignomínia de ter falado numa língua tão desprezível como a nossa língua-mãe. O sr. noivo fez em inglês (pois não!) o seu primeiro e possivelmente o seu último discurso, bem decorado e ensaiado: “Thank you. Enjoy yourself” – a mais breve e eloquente peça de oratória que ouvi, e que foi sublinhado por uma efusiva salva de palmas e uma ruidosa improvisao da orquestra, e lhe mereceu um enleiado olhar de admiração e apreciação da sua cara metade.

A felicitação dos noivos foi um pandemónio. Quebraram-se muitos copos de vinho, enodoaram-se muitos vestidos, pisaram-se muitos calos, acotovelaram-se propositadamente muitos bustos tentadores, desarranjaram-se muitas toilettes, e de tanto beijocar, de que foram vítimas, encheram-se de carimbos de lábios carminados as caras sorridentes dos felizes noivos. Uma demonstração de amor e amizade verdadeiramente democrática e popular como o nosso governo.

Enquanto se servia o queque, o meste de sala foi ao microfone e ribombou: “Queiram ouvir. Vou-lhes contar, especialmente aos noivos uma interessante anedota: Marido e mulher foram a uma coudelaria alugar um cavalo padreador para algumas éguas que tinham. Quando Inês foi apresentado um soberbo espécime, a mulher quis saber a sua capacidade prócriativa. Foi-lhe dito: “Umas dezes vezes ao dia.” Voltando-se ao seu homem, ela disse com visível desdém: “Ouviste meu desavergonhado?”. Quando o marido por sua vez perguntou: “Ele toma a mesma égua”, foi-lhe dito: “Certamente que não”. E ele, voltando-se para a mulher: “Ouviste, minha ciumenta?”. A reacção foi variada. 90 por cento não percebeu. Alguns deram uma gargalhada. Uns poucos, como eu, ficaram nauseados com uma grosseria desse calibre, saída da boca de um jovem cristão, por ocasião de um casamento cristão, numa festa em que cada convidado era cristão, e onde se encontrava um ministro de Religião, que acabara de falar da santidade conjugal de um casal cristão! Temos lá o barómetro a indicar quanto, pela nossa cumplicidade e tolerância, temos ajudado a bancarrota geral em bom senso e bom gosto, em boa educação e boas maneiras, em boa religiosidade e boa moral.

Começaram a dançar. Eu com poucos cavalheiros e senhoras éramos os únicos espectadores daquele redemoinho que voluteava pela sala numa nevrose colectiva. O que quer que a orquestra tocasse, não fazia nenhuma diferença aos supostos dançarinos. Eles saltitavam como macacos ou energúmenos, fazendo macabros trejeitos, meneado vente e ancas, entrechocando, as nádegas, e parecendo estar em delírio hipnótico. Alguns davam a impressão de estar em convulsões epilépticas e outros faziam uma coisa parecida com a dança de S. Vito. Como diz Júlio Dantas: “A dança tinha sido noutras épocas um simples passatempo, um pormenor de festas galantes, de distinção e de boas maneiras”. Hoje nada de elegância, ritmo, arte ou decência. Hoje não é preciso saber dançar; basta ter a coragem e a pouca vergonha de fazer o melhor ou o pior que a tal criatividade lhes inspira. É o resultado daquilo que se vê no ecrã. É o único modelo.

O entusiasmo dos jovens pegou-se aos mais idosos, e no meio da confusão geral viu-se homens gordos e pançudos agarrados a mulheres bojudas e obesas a andar aos trambolhões, pisando os pés uns aos outros, tropeçando, esbarrando e pensando que estavam a dançar. Lembrei-me daquilo que tinha lido, há anos, numa revista inglesa: num luncheon a que Churchill assistia alguém viu o corpulento Ministro de Trabalho a dançar e chamou a atenção do Primeiro Ministro de Sua Magestade Britânica. Churchill, com o seu inseparável charuto na boca, voltou-se e viu o seu colega a dançar mal com uma senhora muito volumosa e, no meio de uma gargalhada, comentou: isso não é uma dança. Isso é um dos movimentos laboristas!

Wednesday, 13 February 2013

Edmundo Pacheco - O Natal do Cauteleiro (1956)

Naquela gélida manhã de Dezembro, Alberto saltara ledo da sua caminha a que se tinha achegado, com a noite a povoar-lhe a cabeça de mil e uma fantasias, qual delas a mais tentadora e obsediante...

De todas, duas ideias tinham-se obcecado implacavelmente e a sua corporização não lhe seria muito difícil, atenta a sua perspicácia. Se outros triunfavam também ele havia de triunfar!

Jovem ainda, 16 primaveras, com alguns invernos bem rigorosos, conhecendo por experiência própria o que era a luta pela vida, guardava sempre bem presente na sua memória, com uma relíquia, uma frase que ouvia repetir constantemente ao seu vizinho, o Doutor Meireles: “Ad augusta per augusta”.

O dealbar da manhã, daquela gélida manhã, de Dezembro, se fora para o Alberto uma maviosa canção da vida, também lhe fera uma surpresa! É que nem sequer previra a hipótese de fazer a travessia da noite em branco, embalado nas seus sonhos cor de rosa...

Em silêncio, sempre em silêncio, pé ante pé, não fosse despertar o sono da sua Mãezinha a quem evitava o mais pequenino desgosto, já pronto, abeirou-se da sua cama e passou-lhe um círculo na testa e, à meia voz, dulcíssima e meiga, chamou-a: Mãezinha! Minha boa e santa mãezinha!

Lentamente, viu a sua Mãezinha abriu os seus formosos olhos, os lábios a esboçarem um sorriso triste e indefinível, com o estigma de sofrimento estampada no seu rosto formosos, restod da sua beleza antiga, que tanto penalizava Alberto.

- Meu filho! Filho da minha alma... do meu coração! E Mãe e filho, num amplexo para confundirem-se por algum tempo.

Docemente, meigamente, levantada a cabeça do filho, e Mãe reviu-o.

- Choras, Mãezinha? Eu também sofro e muito por causa da Mãezinha, que nem a Mãezinha calcula!

Cena arrebatadora, a mais sublime de todas, soberba, divina! D’Annunzio com a sua pena de outro e Tiofane com o seu pincel mágica, não restituiriam ao quadro sedutor, emotivo, impressionante.

Olha, Mãezinha, deixemos isso por agora e vamos às coisas práticas. O Natal este ano tem de ser melhor e eu vou trabalhar para isso! Tive uma ideia: vou vender cautelas e hei-de ganhar muito dinheiro. Sempre, sempre nesta vida que não dá nada! Raio de vida! Concordas, Mãezinha? Para o não contrariar, a Mãe concordou: como quiseres, meu filho. Um abraço breve e ei-lo na Rua, dir-se-ia a voar estonteado.

Conseguidos os números numa casa da Baixa, onde o seu malogrado pai era muito conhecido, todo optimista e aquecido pelo entusiasmo incabível, começou a apregoar: É o 3.4449. Amanhã anda a roda! É o 3.449! Amanhã anda a roda!

Ao entrar na Rua da Conceição quase ia esbarrando com um transeunte que andava um pouco apressado.

- Cavalheiro, compra um número? É o 3.449. Amanhã anda a roda!

- Já agora deixe-me ver o número...

- Compre este, cavalheiro, o *.449. Tenho cá um palpite!

- Deixe-se lá dos seus palpites, que eu também tenho cá os meus...

Era a sua estreia como... “cauteleiro” principiante. O frio quase que o tolhia naquela gélida manhã de Dezembro. Como o navegante que procura o primeiro porto de salvação, procurava os locais abrigados da Nortada e aquecida pelo Sol. Tinha já feito o seu “giro” pela Baixa com uma apreciável receita. Na Avenida da Liberdade detêm-se por momentos e um turbilhão de ideias desorientaram-no deixando-o triste e macambúzio, vergado sob o peso de qualquer coisa que o esmagava inexoravelmente.

Alberto lembra-se agora dolorosamente da tragédia em que numa manhã Sul-America, de Lisboa, ali, onde se encontrava o seu malogrado pai, de volta da última viagem da África, como capitão de navio, num luxuoso “Packard” que trouxera consigo como surpresa, perdera a vida em circunstâncias horripilantes, deixando-o, novo ainda, na orfandade e a sua Mãezinha, em eternas crepes de viúva, conservando, desde então, bem viva a recordação dos seus dias de privações; de viveres, conservando, desde então, bem viva a recordação dos seus dias de privações de época, não muito longínqua em que a dura realidade lhe dera lições magistrais. Baixou a cabeça num profundo e respeitoso silêncio e abalou Avenida acima... É o 3.449, E amanhã anda roda! Olhe o 8.449, o número de palpite!... Vendidas mais alguns números, saltam para “fender” de um “eléctrico” da carreira do Campo Grande, escondendo-se das vistas do condutor que se encontrava no interior do carro a atender os passageiros e que parecia não ter dado pela sua presença. Estava agora na Praça do Duque de Saldanha quando, sentindo a aproximação do condutor, trémulo, baixando-se e olhou para cima, a ver se se encontrava encoberto, quando aquele lhe deitou serradura para os olhos, o que o fez desequilibrar e cair.

- Mãezinha! Minha boa e santa Mãezinha, não me podes acudir, pois não, minha boa mãezinha?! É ajudado por uma vendedeira que ia a passar perto. Já se levantava como pôde e coxeando e com o braço dorido, agradeceu: muito obrigado! Que Deus lhe pague!

- Adeus, rapaz. Boa sorte e livra-te desses malvados com pelos no coração!

- É tão dura a vida! Nem sei para que vivemos, afinal! Pensava de si para si. É o 3.449! E amanhã anda a roda! Ninguém compra! Isto por aqui não dá nada!

Tomado um “eléctrico” voltou para a Baixa, campo proveitoso e fácil.

Já o sol ia a pino! Na Rua da Pretas a “Floresta” parecia convidá-lo. Com um apetite devorador pediu pão com sardinhas e pasteis e saiu, indo sentar-se num banco da Avenida. Para completar, comprou o “Diário de Notícias” que, em grandes paranganas, trazia notícias da Guerra desse dia, e leu: “Berlim, 28 – O Alto Comando do Exército Alemão comunica que na frente de Varsóvia, após batalhas sangrentas, as tropas Germânicas esmagaram as últimas resistências do inimigo. O general Van Baech

- Pst! Ó...

- Quer um número, cavalheiro?

Mais dois números vendidos! Ficara-lhe apenas o 3.449! Der por finda o seu trabalho daquela gélida manhã de Dezembro, mas a notícia que lera no matutino Lisboeta enchia-lhe a cabeça de imagens fantásticas – parece que os Alemães têm o diabo no corpo. Que mania de querem o que é dos outros.

De repente, lembra-se da sua boa Mãezinha, que à esta hora devia estar em <>. Grande foi a sua alegria quando viu a sua Mãezinha, a quem ia contando, todo ofegante, as peripécias daquela gélida manhã de Dezembro.

- Olha, Mãezinha! Quanto dinheiro! Mas só me ficou este numero que, estou certo, será vendido amanhã.

- Já basta, meu filho. É muito o que fizeste hoje. Olha, Alberto, a costura que recebi hoje, e estes livros que a Fernanda me empresta.

Um sono profundo, longo e reparador se apossara de Alberto. A Mãe recolheu sensata à sua cabeceira e absorta balbuciava palavras imperceptíveis, como olhos perlados de lágrimas, que lhe emprestavam uma beleza suave. Vivia só para o seu filho, que adorava.

Aos primeiros alvores da manhã, Alberto, todo prazenteiro e refeito dos trabalhos da véspera, abandonou a sua caminha, ligeiro, mas desta vez encontrou a sua Mãezinha já despertada.

- Mãezinha! Minha boa e santa Mãezinha!

De braços abertos Laura chamou o seu filho:

- Alberto. A Mãezinha pede-te para não saíres hoje, sim? Toma o teu café e vamos conversar.

- Mãezinha, eu só vou acabar de vender o número que resta e volto logo para a casa.

- Vai então, meu filho, e vai com Nossa Senhora!

É o 3.449! Hoje anda a roda! Por mais voltas que desse, não conseguia vender o último número, e número que restava!

A roda já devia estar a correr. Quando chegou ao largo de Trindade Coelho uma enorme multidão comprimia-se num frenesi e breve Alberto, electrizado pelo entusiasmo dos “habilitados”, ia ouvindo os números que pausadamente eram anunciados.

-3.449! 1o prémio! 3.449! 1o prémio! Nervosíssimo e atrapalhado, olhou para o número que tinha na mão, como que a confirmar perto, dois sujeitos com um olhar medonho deixaram-no como que hipnotizado. Um arrepio percorreu-lhe o corpo todo e, olhando em volta, viu um guarda.

- Senhor Guarda! Senhor Guarda! Gritava-lhe todo espavorido! Rápido, o guarda aproximava-se enquanto Alberto agarrava-se-lhe fortemente.

- Vá! Coragem! Diz-me lá que é que tens! E Alberto, sempre abraçado ao guarda, mostrou-lhe o número.

Num momento o guarda alçou-o ao ar e gritou: Atenção! É o 3.449! Eis aqui o detentor da “taluda”! Uma trovoada de palmas atreou os ares enquanto guarda e Alberto tomava um “táxi”. Para a Ajuda ordenou o guarda.

A Rua onde Alberto morava oferecia o aspecto típico das velhas Ruas de Lisboa. Grupos de miúdos traquinavam aqui e acolá, não faltando, de quando em vez cenas de pugilato com comentários do rapazio, acabando sempre a bem, tudo harmonizado. Os pregões estridentes: ali um amolador, mais alem um latoeiro e lá, ao fundo, uma varina ganhando-se da sua fresca e rica mercadoria....

É aqui! O carro parou. Foi motivo de grande curiosidade para a gente da Rua. Da janela de um 1o andar uma jovem senhora, toda aflita. Alberto saía do carro e dizia, voltando-se para a janela: Mãezinha! Minha boa mãezinha. Tive o 1o prémio! E rápido galgou a pequena escadaria, abraçando efusivamente a Mãezinha. A nova correu como um raio. Num tempo-relâmpago toda a gente da vizinhança acorria à casa da D. Laura para associar-se à alegria dos ditosos. Os comentos eram vários e todos eram unânimes em que a sorte grande procurara quem bem a merecia.

Teremos dias melhores e aliviaremos a vida, porque a D. Laura, com o seu coração de diamante olhará por nós, pronta como é em minorar o sofrimento dos mais infelizes, dizia o “tio” João, alcoolizado. “O vinho ainda é o melhor mata-dores,” sentenciava ele, mas agora vem mudar de vida, porque já posso contar com a bondade daquela santa senhora que me dará trabalho.

Lá se fundeava “tia” Engrácia arrimada a sua sólida bengala dificilmente abria caminho por entre a já compacta mole de carícias que enchia a modesta artéria.

- Ó Maria! Ó Antónia! Helena! As suas vozes eram abafadas por milhares de vozes. Raparigas dum diabo. Já ninguém liga a “tia” Engrácia. Este malfito “romátios”. Distribuindo então bengaladas para a direita e para a esquerda encontrava-se já à pequena distância da casa de Alberto. Aqui a confusão era maior ainda. Ó rapariga deixa-me passar! E como não fosse logo obedecida, arrumou-lhe com uma bengalada com verta violência.

- A velha está tonta!

- Ó sua lambisgóia se te pões a falar muito eu te ensinarei a regra de bem viver. Este maldito romático.

Alcançando Alberto abraçou-o ruidosamente felicitando-o

- Não me esquecerei da “tia” Engrácia e do seu reumatismo que será tratato pelos melhores médicos até a tia ficar boa.

- É agora que vais ser o que sempre querias ser, “médico”, não é, minha jóia?

- Sim, “tia” Engrácia, mas hoje, a gente do nosso bairro vai ter um Natal farto e nunca me esquecerei dos pobres. Vamos esvaziar hoje a mercearia do “tio” José. Balões, marchas a “flambeas”, eu sei lá... eu voltando para a Mãezinha:

- Concordas, Mãezinha?

- Pois, então não havia de concordar, vida da minha vida? E duas lágrimas saltaram dos formosos olhos da D. Laura. Alberto abraço-a e meigamente perguntou: Que é isto, Mãezinha? Voltas a chorar, minha boa e santa Mãezinha?

- São lágrimas de alegria, são lágrimas por seres bom, com sentimentos tão humanitários, luz da minha vida.

Havia quem chorasse!

As primeiras sombras da noite, o bairro, sempre pacato, aparentava-se agora ruidoso, todo embandeirado, cheio de balões, exultante de alegria e sorrisos optimistas à vida...

Altas horas de madrugada Alberto rendeu-se a Morfeu, que o perseguia impiedosa e sistematicamente. Lá fora, os folgazões impenitentes continuavam vencendo a noite em expansões de alegria, até ao amanhecer.

O sol ia já alto, dourando o quarto de Alberto. Na meia-sonolência as imagens daquela gélida manhã de Dezembro perpassavam-lhe como num “écran”...

Como tudo lhe parecia um sonho, quando tudo, afinal, era uma realidade...

Monday, 11 February 2013

Laxmanrao Sardessai - A Noite (1966)

A noite é o sono do dia
E é o sonho da terra.
Ela revela, recatadas,
As belezas eternas do Universo
É o suspiro profundo e uno
Dos elementos da Natureza.
Nela toda a criação
Se torna eloquente
Na sua mudez
Enquanto o reino animal
Recolhe ao lar primitivo das trevas
Os outros reinos – o mineral e o vegetal –
Tomavam vulto, linhas e cores
E falam
E o espaço sideral
Assume vastidões imensas.
Os rios e os montes
As diversas fontes
Acordam para uma vida melhor
E dançam –
Enquanto tudo está calmo,
Ó noite abençoada,
O poeta compõe
No espaço solitário
Da sua alma infinita
Hinos gloriosos!

Laxmanrao Sardessai - Ela Vive (1965)

Ela vive nas ondas do mar,
No azul do céu e no verde da terra.
Vive na corrente do rio,
No voo das aves
E na brisa das praias
Vive no nevoeiro do monte
E na água da clara fonte
Vive no mistério do canto
E nos olhos do santo.
Embora morta vive radiante
Nas belezas do Universo!

José Rangel - Lonjura (1978)

Para Orlando da Costa
Ser, e não ser –
É a vivência do Goês?
Raízes cá,
Alma lá,
Será vida de entremez?

Não há
Dilema
Nem traição
Para os que
Têm como lema
A ascenção
Do Povo
Aqui, acolá –
Um mundo novo!

Encarnaste
O ideal
Dos que sofrem
Pela liberdade;
Defrontaste
Os esbirros do Poder,
Para reivindicar
A espoliada dignidade.

E hoje, vens,
Homem feito,
Refeito,
Mas não defeito
Entre duas pátrias;
Pois, ambas
Se fundiram em grandeza
No teu espírito –
Que se revelou em obras
Plenas de beleza.

Raízes cá
Espírito lá –
É sina
Do Goês,
Cujo labor fecundo
Cobre a redondez
Do Mundo.

Alma peregrina
Em ti
Confia e espera
A tua Terra
Pequenina...