Naquela gélida manhã de Dezembro, Alberto saltara ledo da sua caminha a que se tinha achegado, com a noite a povoar-lhe a cabeça de mil e uma fantasias, qual delas a mais tentadora e obsediante...
De todas, duas ideias tinham-se obcecado implacavelmente e a sua corporização não lhe seria muito difícil, atenta a sua perspicácia. Se outros triunfavam também ele havia de triunfar!
Jovem ainda, 16 primaveras, com alguns invernos bem rigorosos, conhecendo por experiência própria o que era a luta pela vida, guardava sempre bem presente na sua memória, com uma relíquia, uma frase que ouvia repetir constantemente ao seu vizinho, o Doutor Meireles: “Ad augusta per augusta”.
O dealbar da manhã, daquela gélida manhã, de Dezembro, se fora para o Alberto uma maviosa canção da vida, também lhe fera uma surpresa! É que nem sequer previra a hipótese de fazer a travessia da noite em branco, embalado nas seus sonhos cor de rosa...
Em silêncio, sempre em silêncio, pé ante pé, não fosse despertar o sono da sua Mãezinha a quem evitava o mais pequenino desgosto, já pronto, abeirou-se da sua cama e passou-lhe um círculo na testa e, à meia voz, dulcíssima e meiga, chamou-a: Mãezinha! Minha boa e santa mãezinha!
Lentamente, viu a sua Mãezinha abriu os seus formosos olhos, os lábios a esboçarem um sorriso triste e indefinível, com o estigma de sofrimento estampada no seu rosto formosos, restod da sua beleza antiga, que tanto penalizava Alberto.
- Meu filho! Filho da minha alma... do meu coração! E Mãe e filho, num amplexo para confundirem-se por algum tempo.
Docemente, meigamente, levantada a cabeça do filho, e Mãe reviu-o.
- Choras, Mãezinha? Eu também sofro e muito por causa da Mãezinha, que nem a Mãezinha calcula!
Cena arrebatadora, a mais sublime de todas, soberba, divina! D’Annunzio com a sua pena de outro e Tiofane com o seu pincel mágica, não restituiriam ao quadro sedutor, emotivo, impressionante.
Olha, Mãezinha, deixemos isso por agora e vamos às coisas práticas. O Natal este ano tem de ser melhor e eu vou trabalhar para isso! Tive uma ideia: vou vender cautelas e hei-de ganhar muito dinheiro. Sempre, sempre nesta vida que não dá nada! Raio de vida! Concordas, Mãezinha? Para o não contrariar, a Mãe concordou: como quiseres, meu filho. Um abraço breve e ei-lo na Rua, dir-se-ia a voar estonteado.
Conseguidos os números numa casa da Baixa, onde o seu malogrado pai era muito conhecido, todo optimista e aquecido pelo entusiasmo incabível, começou a apregoar: É o 3.4449. Amanhã anda a roda! É o 3.449! Amanhã anda a roda!
Ao entrar na Rua da Conceição quase ia esbarrando com um transeunte que andava um pouco apressado.
- Cavalheiro, compra um número? É o 3.449. Amanhã anda a roda!
- Já agora deixe-me ver o número...
- Compre este, cavalheiro, o *.449. Tenho cá um palpite!
- Deixe-se lá dos seus palpites, que eu também tenho cá os meus...
Era a sua estreia como... “cauteleiro” principiante. O frio quase que o tolhia naquela gélida manhã de Dezembro. Como o navegante que procura o primeiro porto de salvação, procurava os locais abrigados da Nortada e aquecida pelo Sol. Tinha já feito o seu “giro” pela Baixa com uma apreciável receita. Na Avenida da Liberdade detêm-se por momentos e um turbilhão de ideias desorientaram-no deixando-o triste e macambúzio, vergado sob o peso de qualquer coisa que o esmagava inexoravelmente.
Alberto lembra-se agora dolorosamente da tragédia em que numa manhã Sul-America, de Lisboa, ali, onde se encontrava o seu malogrado pai, de volta da última viagem da África, como capitão de navio, num luxuoso “Packard” que trouxera consigo como surpresa, perdera a vida em circunstâncias horripilantes, deixando-o, novo ainda, na orfandade e a sua Mãezinha, em eternas crepes de viúva, conservando, desde então, bem viva a recordação dos seus dias de privações; de viveres, conservando, desde então, bem viva a recordação dos seus dias de privações de época, não muito longínqua em que a dura realidade lhe dera lições magistrais. Baixou a cabeça num profundo e respeitoso silêncio e abalou Avenida acima... É o 3.449, E amanhã anda roda! Olhe o 8.449, o número de palpite!... Vendidas mais alguns números, saltam para “fender” de um “eléctrico” da carreira do Campo Grande, escondendo-se das vistas do condutor que se encontrava no interior do carro a atender os passageiros e que parecia não ter dado pela sua presença. Estava agora na Praça do Duque de Saldanha quando, sentindo a aproximação do condutor, trémulo, baixando-se e olhou para cima, a ver se se encontrava encoberto, quando aquele lhe deitou serradura para os olhos, o que o fez desequilibrar e cair.
- Mãezinha! Minha boa e santa Mãezinha, não me podes acudir, pois não, minha boa mãezinha?! É ajudado por uma vendedeira que ia a passar perto. Já se levantava como pôde e coxeando e com o braço dorido, agradeceu: muito obrigado! Que Deus lhe pague!
- Adeus, rapaz. Boa sorte e livra-te desses malvados com pelos no coração!
- É tão dura a vida! Nem sei para que vivemos, afinal! Pensava de si para si. É o 3.449! E amanhã anda a roda! Ninguém compra! Isto por aqui não dá nada!
Tomado um “eléctrico” voltou para a Baixa, campo proveitoso e fácil.
Já o sol ia a pino! Na Rua da Pretas a “Floresta” parecia convidá-lo. Com um apetite devorador pediu pão com sardinhas e pasteis e saiu, indo sentar-se num banco da Avenida. Para completar, comprou o “Diário de Notícias” que, em grandes paranganas, trazia notícias da Guerra desse dia, e leu: “Berlim, 28 – O Alto Comando do Exército Alemão comunica que na frente de Varsóvia, após batalhas sangrentas, as tropas Germânicas esmagaram as últimas resistências do inimigo. O general Van Baech
- Pst! Ó...
- Quer um número, cavalheiro?
Mais dois números vendidos! Ficara-lhe apenas o 3.449! Der por finda o seu trabalho daquela gélida manhã de Dezembro, mas a notícia que lera no matutino Lisboeta enchia-lhe a cabeça de imagens fantásticas – parece que os Alemães têm o diabo no corpo. Que mania de querem o que é dos outros.
De repente, lembra-se da sua boa Mãezinha, que à esta hora devia estar em <>. Grande foi a sua alegria quando viu a sua Mãezinha, a quem ia contando, todo ofegante, as peripécias daquela gélida manhã de Dezembro.
- Olha, Mãezinha! Quanto dinheiro! Mas só me ficou este numero que, estou certo, será vendido amanhã.
- Já basta, meu filho. É muito o que fizeste hoje. Olha, Alberto, a costura que recebi hoje, e estes livros que a Fernanda me empresta.
Um sono profundo, longo e reparador se apossara de Alberto. A Mãe recolheu sensata à sua cabeceira e absorta balbuciava palavras imperceptíveis, como olhos perlados de lágrimas, que lhe emprestavam uma beleza suave. Vivia só para o seu filho, que adorava.
Aos primeiros alvores da manhã, Alberto, todo prazenteiro e refeito dos trabalhos da véspera, abandonou a sua caminha, ligeiro, mas desta vez encontrou a sua Mãezinha já despertada.
- Mãezinha! Minha boa e santa Mãezinha!
De braços abertos Laura chamou o seu filho:
- Alberto. A Mãezinha pede-te para não saíres hoje, sim? Toma o teu café e vamos conversar.
- Mãezinha, eu só vou acabar de vender o número que resta e volto logo para a casa.
- Vai então, meu filho, e vai com Nossa Senhora!
É o 3.449! Hoje anda a roda! Por mais voltas que desse, não conseguia vender o último número, e número que restava!
A roda já devia estar a correr. Quando chegou ao largo de Trindade Coelho uma enorme multidão comprimia-se num frenesi e breve Alberto, electrizado pelo entusiasmo dos “habilitados”, ia ouvindo os números que pausadamente eram anunciados.
-3.449! 1o prémio! 3.449! 1o prémio! Nervosíssimo e atrapalhado, olhou para o número que tinha na mão, como que a confirmar perto, dois sujeitos com um olhar medonho deixaram-no como que hipnotizado. Um arrepio percorreu-lhe o corpo todo e, olhando em volta, viu um guarda.
- Senhor Guarda! Senhor Guarda! Gritava-lhe todo espavorido! Rápido, o guarda aproximava-se enquanto Alberto agarrava-se-lhe fortemente.
- Vá! Coragem! Diz-me lá que é que tens! E Alberto, sempre abraçado ao guarda, mostrou-lhe o número.
Num momento o guarda alçou-o ao ar e gritou: Atenção! É o 3.449! Eis aqui o detentor da “taluda”! Uma trovoada de palmas atreou os ares enquanto guarda e Alberto tomava um “táxi”. Para a Ajuda ordenou o guarda.
A Rua onde Alberto morava oferecia o aspecto típico das velhas Ruas de Lisboa. Grupos de miúdos traquinavam aqui e acolá, não faltando, de quando em vez cenas de pugilato com comentários do rapazio, acabando sempre a bem, tudo harmonizado. Os pregões estridentes: ali um amolador, mais alem um latoeiro e lá, ao fundo, uma varina ganhando-se da sua fresca e rica mercadoria....
É aqui! O carro parou. Foi motivo de grande curiosidade para a gente da Rua. Da janela de um 1o andar uma jovem senhora, toda aflita. Alberto saía do carro e dizia, voltando-se para a janela: Mãezinha! Minha boa mãezinha. Tive o 1o prémio! E rápido galgou a pequena escadaria, abraçando efusivamente a Mãezinha. A nova correu como um raio. Num tempo-relâmpago toda a gente da vizinhança acorria à casa da D. Laura para associar-se à alegria dos ditosos. Os comentos eram vários e todos eram unânimes em que a sorte grande procurara quem bem a merecia.
Teremos dias melhores e aliviaremos a vida, porque a D. Laura, com o seu coração de diamante olhará por nós, pronta como é em minorar o sofrimento dos mais infelizes, dizia o “tio” João, alcoolizado. “O vinho ainda é o melhor mata-dores,” sentenciava ele, mas agora vem mudar de vida, porque já posso contar com a bondade daquela santa senhora que me dará trabalho.
Lá se fundeava “tia” Engrácia arrimada a sua sólida bengala dificilmente abria caminho por entre a já compacta mole de carícias que enchia a modesta artéria.
- Ó Maria! Ó Antónia! Helena! As suas vozes eram abafadas por milhares de vozes. Raparigas dum diabo. Já ninguém liga a “tia” Engrácia. Este malfito “romátios”. Distribuindo então bengaladas para a direita e para a esquerda encontrava-se já à pequena distância da casa de Alberto. Aqui a confusão era maior ainda. Ó rapariga deixa-me passar! E como não fosse logo obedecida, arrumou-lhe com uma bengalada com verta violência.
- A velha está tonta!
- Ó sua lambisgóia se te pões a falar muito eu te ensinarei a regra de bem viver. Este maldito romático.
Alcançando Alberto abraçou-o ruidosamente felicitando-o
- Não me esquecerei da “tia” Engrácia e do seu reumatismo que será tratato pelos melhores médicos até a tia ficar boa.
- É agora que vais ser o que sempre querias ser, “médico”, não é, minha jóia?
- Sim, “tia” Engrácia, mas hoje, a gente do nosso bairro vai ter um Natal farto e nunca me esquecerei dos pobres. Vamos esvaziar hoje a mercearia do “tio” José. Balões, marchas a “flambeas”, eu sei lá... eu voltando para a Mãezinha:
- Concordas, Mãezinha?
- Pois, então não havia de concordar, vida da minha vida? E duas lágrimas saltaram dos formosos olhos da D. Laura. Alberto abraço-a e meigamente perguntou: Que é isto, Mãezinha? Voltas a chorar, minha boa e santa Mãezinha?
- São lágrimas de alegria, são lágrimas por seres bom, com sentimentos tão humanitários, luz da minha vida.
Havia quem chorasse!
As primeiras sombras da noite, o bairro, sempre pacato, aparentava-se agora ruidoso, todo embandeirado, cheio de balões, exultante de alegria e sorrisos optimistas à vida...
Altas horas de madrugada Alberto rendeu-se a Morfeu, que o perseguia impiedosa e sistematicamente. Lá fora, os folgazões impenitentes continuavam vencendo a noite em expansões de alegria, até ao amanhecer.
O sol ia já alto, dourando o quarto de Alberto. Na meia-sonolência as imagens daquela gélida manhã de Dezembro perpassavam-lhe como num “écran”...
Como tudo lhe parecia um sonho, quando tudo, afinal, era uma realidade...