Monday, 1 April 2013

Ave Cleto Afonso - O Testamento de Um Moribundo (1966)

Pankash estava profundamente intrigado. Por mais voltas que desse à cabeça, não conseguia descortinar a razão dessa sentença que tinha de cumprir.

“Não, assim é que não irei. Quero ver o Raju antes de partir. Quero dar-lhe este pião, aquela bola e mais o arco. É tudo quanto tenho de meu”, resolvera, agachado por detrás da sebe, olhando atentamente em direcção da sua casa. Esperava que o seu tio Tucaram se fosse embora. Assim poderia retardar a sua saída da aldeia onde passara toda a sua vida, cheia de recordações.

Pankash tinha os seus doze anos, já completos. Frequentava a escola da localidade e era o mais irrequieto da companhia. Entre todos outros da sua roda, era talvez o mais estimado e impunha-se logo como chefe indisputado. Os adultos, estes é que não o compreendessem bem. Se tentasse adoptar maneiras de pessoas já de idade, censuravam-no, riam-se dele, expunham-no ao ridículo. Se quisesse portar-se como um menino despreocupado, então repreendiam-no também, exortavam-no a ser mais sensato, queriam que seguisse o exemplo dos velhos. Era um dilema que era incapaz de vencer só por si.

Agora tinha mais um problema a enfrentar: o seu irmão Raju, de oito anos de idade. Sempre que ele fosse jogar ao pião, lá vinha ele arrancá-lo das suas mãos. Mal tocasse na bola, o Raju pedia o esférico. Se fosse jogar com os seus amigos da vizinhança, o pequeno déspota do seu irmão lá chegava também, e punha-se no meio. Em mais de uma ocasião, tivera de fazer de juiz e carrasco, impondo e executando penas contra o impostorzinho: uns murros aplicados à socapa, uns empurrões e outros correctivos desse género.

Mas, invariavelmente Pankash fora, por sua vez, castigado pela sua mãe. Mais novo como era, Raju estava nas boas graças de todos os adultos de casa. Os seus olhos, deitando lágrimas de teimosia infantil, nunca haviam deixado de comover Vijaybhai, a mãe dos petizes. Em resultado, o mais velho merecera muitas vezes penas corporais várias.

Desta vez, porém, o castigo consistia simplesmente numa deportação. Pankash teria de acompanhar o seu tio Tucaram para a terra deste e ficar lá isolado por quanto tempo não se sabia. Frequentaria a escola nessa nova paragem, criaria novos amigos, adquirira novos gostos. Já não teria mais a companhia de Raju, a quem, aliás, muito queria. Os seus bosques e campos favoritos, amigos queridos e tudo o resto ficaria muito longe, por muito tempo, talvez para sempre.

“É verdade que atirei o Raju ao chão, mas só por isso terei de abalar para tão longe? E porque é que não querem saber daquilo que ele fez a mim? Não me deixava livre o baloiço e avisei-o, três vezes, a sair”.

Contudo, estava decidido a não acompanhar o velho Tucaram sem fazer o testamento. Queria dizer que amava muito o seu irmãozinho e fazer dele o herdeiro dos seus bens: um pião de madeira, uma bola de lona, um arco de metal. Custava-lhe muito este exílio e observava, do seu esconderijo, o velho casarão como se tivesse sido ausente por algumas décadas de anos. Já sentida saudades da figura turbulenta de Raju, como se tivesse regressado depois de um longo desterro.

Era tarde demais para continuar nessa posição. O sol já encarregara a Lua de tomar conta do seu reino dentro de uns momentos mais. O irmão de Vijaybhai decidira pernoitar em casa do cunhado Venctesh, ausente na cidade.

Como um condenado expiando o crime, Pankash transpôs o umbral da quinta. Queria pedir desculpas à mãe, mas um semblante indiferente e ameaçador manteve-o à distância. Esperou que o tio fosse mais afectuoso, mas ouviu sair da sua boca de educador rigoroso: “Saberei curá-lo”. Buscou Raju com o olhar e viu-o a um canto, saboreando guloseimas e insistindo em não levantar os olhos para ele.

Quando estendeu o corpo pesado na enxerga, sentiu uma ligeira dor na cabeça e um calafrio sacudiu, ao de leve, o seu ser. Antes de ser vencido por um pesado sono, ouviu confirmada a cruel sentença. :Bahu, por Deus, leve-o consigo. Talvez consiga corrigi-lo. Estou cansada das suas diabruras” – dissera Vijaybhai ao seu mano.

*

“Não... não... não me batam. Irei com ele... Tuca’m bab vamos agora mesmo... Eu vou consigo... Não quero mal a Raju...” Era noite alta quando Pankash pôs-se a gritar em sonhos. Acordou sobresaltado e viu que todos de casa tinham acordade aos seus gritos. Pela fenda da janela soube que havia luar lá fora. Que horas seriam? Desejaria que fosse já dia e pudesse ir-se embora com o tio.

Mas Raju... Ao menos queira vê-lo. Queria que ele dissesse que faria uso do seu pião, da sua bola e do arco. Sentiu então que tinha a testa e o corpo orvalhado de suor. Tentou dormir de novo.

“Levem-me ao Raju... Levem-me ao Raju... Quero ver Raju...”. Tentou levantar-se mas viu que não podia. Estava com febre e sentia como que uma fornalha ao redor. Vijaybhai comovida aconselhou-o a dormir sossegadamente. Queria que o filho ficasse bom na manhã seguinte e não mais exigiria o cumprimento do castigo de separação. “Pankash e Raju não mais brigarão. Pankash há-de ser bom rapaz e há-de ficar connosco” idse a mãe, acariciando a testa e a cabeleira do filho enfermo.

“Mãe, quando Raju acordar amanhã, diga-lhe que gosto dele. Aquele pião... o meu pião...”. Trouxeram-lhe então de um canto o brinquedo que Pankash tomou nas suas mãos febris e trémulas exclamando: “É para Raju. Raju gosta dele...”

Havia um nervosismo no semblante de todos ao redor. Pankash estava seriamente mal e não havia médico algum na aldeia que pudesse acudir mas o jovem parecia indiferente a tudo aquilo. Só lhe interessava que Raju aceitasse a sua oferta de pião, bola e arco. Para ele, o irmão mais novo, que entretanto já se encontrava ao pé do doente, tornara-se a única preocupação. Os dois haviam brigado sempre mas já não brigariam mais.

“Eu gosto de Raju e quero dar-lhe o meu pião”, era o último juramento de Prakash.

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