Wednesday, 29 May 2013

Hipólito de Menezes Rodrigues - Mulher de Olhos Magoados (1958)

Que vago olhar o teu, mulher de olhos magoados?
Que amarga dor destila o teu estranho olhar?
Drama horrível se vê em teus olhares brilhar,
Que recorda, Mulher, calvários consumados?

Que mistério gelou nesses olhos rasgados?
As ânsias de viver e os encantos de amar?
Com que oculto pensar turvas o teu olhar?
Em que destino atroz te imolaram os fados?

Sonho morto de amor talvez feriu-te o peito,
E arruinou num instante teu castelo eleito?
Não respondes, Mulher!... Choras!... Pois tu também!...

Vem, conta-me o teu mal, e eu te direi o meu,
E nas cinzas, talvez, do sonho que morreu,
Façamos surgir um, que não viveu ninguém...

Baobahadur - Dote: Um Mal Social (1974)

Cumpre-me desta vez demonstrar, embora com fracas possibilidades, que a Sra. D. Berta Menezes Bragança confundia redondamente o chamado dote em voga neste território, com o dote previsto no regime dotal, a que se referem os artigos 1134 a 1165 do Código Civil Português, em vigor.

O regime tipo previsto no artigo 1108 do citado Código é o casamento, segundo o regime de comunhão de bens ou segundo o costume do pais, que é mais comum ou vulgar e, assim, geralmente seguido cá em Goa, mas umas vezes com a clausula de separação de bens, no caso da falta de prole sobreviva.

Isso demonstra que esse regime de casamento era o adoptado pelo povo em geral, não só em Goa, mas em toda a parte do território português, no qual ficava abrangido tanto Portugal, como as colónias portuguesas entre as quais figurava o antigo Estado da Índia, até a sua libertação.

Não é, portanto, verdade que o casamento segundo o regime dotal fosse ou seja o mais vulgar aqui.

Consequentemente, tudo quanto disse Sra. D. Berta na sua palestra em causa, e ensinou o grande Mestre Cunha Gonçalves, no seu Tratado de Direito Civil, no tocante ao regime dotal não tem relevância tratando-se do regime seguido pela grande maioria da população de Goa, Damão e Diu.

É certo que há contratos antenupciais em que se emprega, umas vezes, a expressão dote, em vez da importância em dinheiro ou em jóias com que a noiva entra para o casal, mas isso não quer dizer que esse regime é dotal. Antes pelo contrário, é o da comunhão geral dos bens, com a condição de esse dote, que, as verdade, é o quantitativo em dinheiro, em jóias ou ainda em enxoval, ser tomado na conta na futura legitima paterna e materna, por conseguinte, todo esse montante é de ser tomado, obrigatoriamente, em conta, aquando da partilha dos bens do casal dos pais de noiva, para defialr a sua legitima e consequente aplicação de bens.

Pela lei de sucessão em vigor nesta nossa terra, tanto os filhos como as filhas herdam igualmente dos pais. Não há assim desigualdade de direitos entre o homem e a mulher, como entende a ilustre palestrante, por a dita lei ser uniforme para todos.

Eu pediria a Sra. D. Berta que se desse à maçada de passar uma vista sobre todos os Acts, relativamente ao casamento, que estão em vigor na restante parte da Índia, para se convencer daquilo que eu digo, e estou certo de que me dará inteira razão, convencendo-se de que a lei portuguesa, vigente nesta terra, é a melhor entre as leis sobre o casamento que vigoram no resto do país e que são, em regra, diferentes segundo a religião que cada um professa.

Em meu entender, os 12 anos que passaram sobre o sacudimento do “domínio colonial portuguesa” são poucos em relação aos 27 anos, aproximadamente, que decorreram sobre a independência da Índia, porquanto os nossos parlamentares não foram capazes de nos proporcionar uma lei uniforme para a Nação inteira, que superasse a vigente neste território.

Não tem, portanto, a Sr. D. Berta razão para se queixar de que não obstante termos “os nossos direitos regulados pela Constituição Indiana, continuamente, paradoxalmente, a manter a legislação portuguesa.”

Há mais uma afirmação, pouco exacta, da Sra. D. Berta quando diz que proclamando a Constituição Indiana a igualdade absoluta de todos os cidadãos, garante aos mesmos a sua individualidade e dignidade, e essas são incompatíveis com a lei portuguesa (o sublinhado é meu).

Permita-me que diga, com franqueza, que essa afirmação é derivada da ignorância da lei portuguesa, sobretudo a do casamento em vigor, uma das duas Leis que o Governo Provisório da República Portuguesa promulgou em 25 de Dezembro de 1910, isto é, logo após a implantação da República Portuguesa, para não falar das outras, foi e é considerada como uma das melhores que Portugal promulgou, fazendo daquele Governo parte os liberais Joaquim Teófilo Braga, António José de Almeida, Afonso Costa, Bernardino Machado, Manuel Brito Camacho, etc.

Confundindo o dote de Goa com o regime dotal do Direito Civil Português, a Sra. D. Berta discordando da opinião do Mestre Cunha Gonçalves, de saudosíssima memória, quando ele diz que “o regime dotal é o mais seguro e vantajoso para os direitos da mulher e filhos”, faz considerações que acho algum tanto ousadas, mas merecem desculpas por terem sido feitas, não propositadamente, mas sim, irreflectidamente, sem conhecimento devido de causa.

Mas há mais uma afirmação da Sra. D. Berta que carece de ser rebatida, e é esta: “O dote é um processo de ludibriar as filhas da parte que lhes cabe por lei na herança dos pais. Aproveitando da sua ignorância ou inconsciência de direitos, consta-se, por exemplo, na escritura que a noiva leva o dote X e desiste de concorrer à herança dos pais. E não é raro acontecer que a herança é muito superior ao dote. O motivo desse “equivoco do notário”, somo lhe chama Dr. Cunha Gonçalves mais não é do que um bem engendrada arte de enganar, pois consiste em beneficiar os filhos em detrimento das filhas.:

Continuando, diz a Sra. D. Berta que “essa imoralidade de os próprios pais discriminarem entre os filhos logrando as filhas denota o critério primitivo que se inspira consciente ou subconscientemente, na desigualdade e inferioridade da mulher. É certo que a lei prevê que as filhas dotadas podem concorrer para a herança, mas esse processo é longo, servindo para criar animosidade e desarmonia entre os herdeiros. Como já vimos, mesmo em casos raros, em que não se pratica esse sistema de fraude e se cumpre a lei dotal, tal qual ela é, a situação da mulher é pouco edificante.”

Não tenho Tratado de Direito Civil a mão, nem vejo a sua necessidade, para concluir se as afirmações constantes dos trechos transcritos são do Comentador ou da própria palestrante, mas não compreendo como é que as passagens transcritas podem ter a sua aplicação na hipótese de um contrato antenupcial celebrado na vida dos pais, porquanto a legitima dos filhos (nos quais se incluem também filhas) só se pode apurar após o falecimento de algum dos pais ou de ambos, segundo o caso.

Um contrato nesse gosto em que a noiva porventura desista da herança dos pais não é permitido à fase do que preceitua o art. 2042 do Código Civil, que diz: “Ninguém pode, nem sequer por contrato nupcial, renunciar à sucessão da pessoa viva..”. Esse for feito, será sempre nulo de direito.

Há, de certo, um equivoco – e grande – da parte da Sra. D. Berta, derivado certamente do facto de pretender tratar de questões (segue na 4a pagina) de direito, sem conhecer direito, “O Direito” e há também atrevimento, até certo ponto indesculpável, de discordar, levianamente, do que Cunha Gonçalves ensinou em vida, ensina agora e continuará a ensinar de futuro a todo quanto seriamente pretender aprender o Direito Civil.

Todavia, devo dizer a Sra. D. Berta que estou inteiramente de acordo quando ela diz que “cabe às mulheres de Goa, sobretudo da nova geração, afirmar a sua dignidade e o respeito que lhes é devido”, mas discordo quando diz que devem as mesmas demandar a “terminação da primitiva e odiosa legislação estrangeira, que representa uma anomalia”, pois acho que enquanto nós não tenhamos uma legislação digna deste nome e que seja melhor do que a que está em vigor, acho que deve continuar vigente, a qual não é nada inconstitucional.

Ao terminar, pedia à Sra. D. Berta que esteja na vanguarda do movimento no sentido de extirpar, de uma vez para sempre, o mal do dote a que me referi no meu primeiro escrito e que na realidade, está roendo a nossa sociedade, porque é aquele um verdadeiro mal social, não se preocupando muito com o dote de fala o regime dotal.

Espero que a Sra. D. Berta me desculpará, se porventura, se sentir incomodada com alguma ou algumas das passagens ou das expressões deste meu trabalho e creia que apreciei imenso o seu esforço, no sentido de se inteirar dum assunto não muito de fácil alcance, no interesse único da Mulher de Goa, pretendendo a sua emancipação.

Saturday, 25 May 2013

Berta de Menezes Bragança - Dote - Um Mal Social

O sistema de dote é um anacronismo que subsiste nos tempos em que vivemos. É uma instituição que vem dos tempos muito antigos, quando a inferioridade da mulher era o marco de sua situação social e da desigualdade estabelecida entre filhos e filhas no que respeita à herança. Porém, com a passagem e evolução dos tempos, evoluíram também os regimes políticos e sistemas sociais e, com eles, as legislações. E hoje, numa grande parte do mundo, mormente nos países socialistas, estabeleceu-se completa igualdade de direitos do homem e da mulher.

Em Goa, apesar de estarmos libertados, há mais de doze anos, do domínio Português e termos os nossos direitos regulados pela Constituição Indiana, continuamos, paradoxalmente, a manter a legislação portuguesa. A Constituição Indiana proclama logo no seu preambulo a igualdade absoluta de todos os seus cidadãos e garante a sua individualidade e dignidade, o que é incompatível com a lei portuguesa. E é de acordo com esta lei que são celebrados os contractos antenupciais, sendo o regime dotal, talvez, mais vulgares.

Comentando sobre o sistema dotal na legislação portuguesa, diz o tratadista Dr. Cunha Gonçalves: “O regime dotal é o mais seguro e vantajoso para os direitos e interesses da mulher e filhos. Porque – diz ele – a inalienabilidade dos bens prevista na lei põe a mulher a coberto das prodigalidades dos destinos e da insolvência do marido e condena as suas próprias fraquezas, pois não raro ela própria participa nas mesmas prodigalidades e outras vezes não resiste aos rogos ou ameaças do marido e acaba por lhe dar carta branca para onerar ou alienar os seus bens, sendo assim inútil o regime de separação dos bens.”

Para devidamente apreciar este comentário, é necessário saber que conforme a lei, o dote não pode ser alienado, isto é não pode ser vendido; não pode ser penhorado ou prescrito a favor de doutra pessoa, não só pelo marido, mas nem mesmo pela própria mulher, a quem o mesmo pertence. Só em caso de grande necessidade, pode o marido ou a mulher dispor dele e só com a anuência do Juiz.

Sendo assim, de que vale dizer que a mulher é absoluta senhora do seu dote, se ela não pode utilizá-lo? Torna-se assim o dote um valor morto. E é preciso notar que o marido – seja ele inteligente e honesto, larápio ou mentalmente fraco – é, conforme a lei portuguesa, o administrador dos bens da mulher. E, embora não possa ele tocar no capital, pode pôr e dispor, como bem quiser, dos rendimentos do dote, ficando assim a mulher economicamente dependente, de todo, do marido. E isto, mesmo quando tinha o que se presume ser dele, como é o dote.

Diz também a lei que na escritura do regime dotal, quando o dote consistir em bens imóveis, é necessário indicar o seu valor e, quando for em dinheiro, deve o mesmo ser “convertido dentro de três meses a contar desde o casamento, em bens imóveis, inscrições de assentamento ou acções de companhia ou dado a juros, por escrituras pública com hipoteca”. Diz a mesma lei que, se não se fizer into em dinheiro, fica o mesmo como não existente e entra na comunhão dos bens.

Ora, o facto é que, em Goa, na maioria das escrituras de dote, não se cumpre esta lei. A esse respeito diz ainda Dr Cunha Gonçalves: “Num sentido vulgar, porém, chama-se dote à simples doação obnupcial feita pelos pais da nubente ou por terceiros e que, embora seja, por equivoco do notário, usada na respectiva escritura, é insuficiente para caracterizar o regime dotal; pois tais doações podem existir até no regime da comunhão ou nos outros regimes de reparação.”

Serão raros os casos em que a lei não seja tergiversada, substituindo-a pela forma que Dr. Cunha Gonçalves chama “equivoco do notário” e que não será injustificado dizer que é um equivoco bem premeditado e voluntário. Em outras palavras, o sistema de dote, tal como ele representa a realidade factual em Goa, não passa dum sistema de logro, pois raros observam as condições legais surgindo daí a incerteza da situação do dote.

Mais: o dote é um processo de ludibriar as filhas da parte que lhes cabe por lei na herança dos pais. Aproveitando da sua ignorância ou inconsciência de direitos, constata-se, por exemplo, na escritura que a noiva leva um dote x e desiste de concorrer à herança dos pais. E não é raro acontecer que a herança é muito superior ao dote. O motivo desse “equivoco do notário”, como lhe chama o Dr. Cunha Gonçalves, mais não é do que uma bem engendrada arte de enganar, pois consiste em beneficiar os filhos em detrimento das filhas.

E essa imoralidade de os próprios pais discriminarem entre os filhos logrando as filhas denota o critério primitivo que se inspira - consciente ou subconscientemente - na desigualdade e inferioridade da mulher. É certo que a lei prevê que as filhas dotadas podem concorrer para a herança, mas é esse um processo longo, complicado e dispendioso, servindo para criar animosidade e desarmonia entre os herdeiros. Como já vimos, mesmo em casos raros, em que não se pratica esse sistema de fraude e se cumpre a lei dotal, tal qual ela é, a situação da mulher é pouco dignificante.

A Constituição Indiana que está em vigor em todo o país, sem exclusão de Goa, estabelece completa igualdade dos cidadãos, sem discriminação alguma, incluindo a do sexo. E desde 1962 está em vigor no restante país, o Dowry Act, que aboliu o sistema de dote. Só em Goa continua em vigor a legislação do defunto regime colonial, mantendo as mulheres goesas na degradante situação de inferioridade, não só através do regime de dote, mas mesmo outros que regulam as escritura antenupciais, pois pela lei portuguesa que cá vigora a mulher é considerada incapaz de administrar os seus próprios bens e é o marido, quaisquer que sejam as suas capacidades mentais e o seu carácter, que é o administrador dos bens da mulher.

É hoje inconcebível tal situação. As mulheres goesas lutaram pela libertação de Goa do jugo colonial. Lutaram e sacrificaram-se ao lado dos homens. E do triunfo desta luta veio a nova situação dignificante, que lhes trouxe igualdade de direito e de oportunidades mentais e o seu talento, contribuíram para o progresso e bem-estar económico, social e cultural do nosso povo. Sendo assim, é, pois, imperativo que não fiquem elas de braços cruzados perante o que representa um insulto, uma afronta, uma degradação submetê-las a uma legislação – para mais uma legislação estrangeira – que as marca com o cunho de inferioridade.

Não se compreende que, quando é uma mulher que, como Chefe do Governo, rege os destinos dum país tão grande e importante como a Índia e mesmo em Goa é também uma mulher que chefia o Governo local eleito, as mulheres de Goa tolerem tal situação afrontosa, aceitando que sejam tidas como incompetentes para mesmo administrar os seus próprios bens! Cabe, portanto, às mulheres de Goa, sobretudo da nova geração, afirmar a sua dignidade e o respeito que lhes é devido, demandando a terminação da primitiva e odiosa legislação estrangeira, que representa uma anomalia e, sobretudo, séria contravenção dos direitos que nos garante a nossa Constituição Nacional.

Tuesday, 21 May 2013

Clara de Menezes - Mote (1952)

Sendo nada, eu dei-te tudo
E tu só me deste nada

Hipólito de Menezes Rodrigues

Fui um grão de areia, diluído
Nos teus olhos de veludo,
Nesse instante bem vivido,
Tendo nada, eu dei-te tudo.

Deste amor, fornalha a arder,
Dei-te a essência concentrada;
Dei-te a minha alma, o meu ser
E tu só me deste nada.

Laxmanrao Sardessai - O Cativo (1964)

Na teia dos teus encantos
Sou como um cativo.
Fui forte em vida.
Ao sopro das minhas ideias
Ruíram os baluartes,
Tombaram os ídolos,
Recuaram as fantasmas.
Fui temido de todos
Que exerciam prepotência
Sobre os desamparados da fortuna.
Fui algoz das feras,
Que despedacei com os golpes da minha espada,
Da minha espada rutilante,
Feita dos meus sonhos,
Dos meus ideais
Altivo, desafiei o mundo,
Desdenhando os espectadores da hipocrisia
Como guerreiro invencível.
Mas foste tu que, com a teia
Subtil dos teus olhares
Me cativaste e fizeste cativo.

O Vagabundo - Jornada de Vida (1956)

Velhos sonhos
Novas paixões,
Mãos trêmulas e arrepiadas,
Olhos de conhaque
E o corpo já velho e dorido –
Onde os levas burrinho?

E porquê tão depressa?

Se é pela chuva que sinto cair,
Corre menos meu burrinho!
Pior que a chuva que molha
E o vento que corta os flancos,
É o abalo que me fazes:
Ideias velhas misturá-las com novas;
Paixões novas fá-las velhas!

Para um bocado ó burrinho!
Há cães que uivam,
Virgens que deliram,
Mulheres de maridos traídos,
Abrigando-se debaixo das varandas...

Para um bocado ó burrinho!
Porque seremos só nós a corremos breve o caminho?

Shanker Ramani - O Cigarro (1956)

Continua aceso
O cigarro na mão
E eu só a ver
As cinzas no chão.

Continua aceso
O cigarro na mão...
Mas os lábios secos!
E faminto o coração!

Nascimento Mendonça - Pôr-de-Sol (republished 1963)

Não sei porque em mim não sinto o coração
Calmo como a luz através das procelas/
Envolve-o a dor, o luto, a escuridão
E lembra um velhinho encostado ao bordão,
Sem poder fixar os olhos nas estrelas.

Hora má, de sombras e de desenganos!
Tanta luz astral, quem sabe se o cegou.
... Tu foste a sondar o insondável arcano
Da terra e dos sóis, meu coração humano!
Ai de quem foi rico, se a fome o esmagou.

Mas não pares, não. Sê como a água corrente,
As águas de um charco estagnam e apodrecem.
Como eras feliz quando foste veemente,
Enteado sempre na harmonia ardente
De milhões de mundos que não desfalecem!

O caminho é mau, todo espinhos. Embora!
Não triunfa jamais quem não sabe sofrer,
E nem sabe amar a rósea luz da aurora
A pobre criatura que a bonança implora
Dos monstros do mar que não quis combater.

A alma humana em vão, a vacilar, absorta,
O céu interroga e perscrutar deseja.
Se sente a beleza, toda a dor que importa?
Não se prende ao sol a triste folha morta,
Não pode voar o verme que rasteja.

A matéria, a força assombrosa, se existe,
É porque não para, nunca dorme exsangue;
Ao destino mau nunca se oferece triste
Como vítima inerme que jamais resiste
E não sente o ardor do desejo no sangue.

E o homem não hesita e treme como o vime,
Se resfria o globo e concentram-se os mares,
Não é como o insecto que a Natureza oprime;
Seu fado não é de sujeição ou crime,
Seu passado fulge de gemas solares.

Agostinho Fernandes - Ladrão (1955)

Fora um galo anunciava a madrugada. Surgiu mais uma ideia: se fosse ao cofre do patrão? Havia lá tanto dinheiro que ele, com certeza, não daria pela falta de uma notinha de 5... Rounar?! Ele que até então fora dos mais honestos? Roubar ele?... Mas cinco rupias não empobreciam o patrão! Ele que apodrecia de rico!... Ladrão! – dizia-lhe uma voz lá dentro... Desistiu... O número 20338 tornou a aparecer... “Ele também rouba! Roubam todos!” Saiu decididamente da cama. A mulher ressonava. A coberta esburacada descobria-lhe os voluptuosos seios nus. Abre de mansinho a porta. O filho mais novo acorda e grita pela mãe... Não se importa com ele, sai. O tempo urge, a escuridão é providencial...

Rasteja cautelosamente pelos corredores. Há luz na cozinha do patrão. A sua sombra projecta-se enorme na alvura da parede. Recua... Ganha ânimo, avança. Os seus passos ressoam nas lajes. Soa-lhe ao ouvido, cada vez mais a voz íntima: Ladrão!... Ladrão!... O patrão dorme profundamente. Na cadeira está o casaco. As chaves estão no bolso.... A sua mão treme toda... As chavezinhas parecem geladas... O patrão mexe-se, dá uma volta na cama...

Abre o cofre. Um estrondo medonho! Silêncio a seguir... Valerá a pena? E se o número for falso?... Tira uma notinha de cinco! Surge-lhe neste momento uma outra ideia: e fosse até Pondá consultar o “gaddi”?... Quem tira cinco tira dez... Chega-se até à porta... Recua ainda... Ladrão! Ladrão!... Não é nada... É apenas o coração que bate mais forte!...

... Ouve-se o rodar dum carro. Desperta do seu sono! Oh! Era um carro particular... E o tempo avança...

... As palavras do Gaddi soavam-lhe ainda aos ouvidos: “Vai sair o número 20338. Vá depressa que talvez ainda consegue bilhete.” Dizia o sono, dizia o Gaddi, dizia a sua consciência! Não! Não podia ser falso! Ia ser rico!

Apareceu a carreira. Lançou-se a ela, mas esta vinha tão cheia que o condutor, não recebia nem mais um passageiro. Para cúmulo estava lá um polícia!

Era de estoirar! Paciência!... Mas se chegar tarde? Perderia tudo! Não! Impossível! De qualquer forma tinha que enriquecer. Poderia enfim adquirir um terreno muito seu e construir lá uma casinha.... Comprar umas eiras de terra e uma junta de bois... Não haveria mais vexames do patrão para a sua esposa.. Mandaria os filhos à escola. Talvez pudesse montar um pequeno negócio. Um barzinho, talvez. Conseguiria ter um criado para dar ordens, e, quem sabe? Talvez viesse a ter pança como o patrão... Mas o auto demora-se muito. Assim não pode ser... E pose-se a correr a toda a brida... Os membros martirizam-se e os pulmões não aguentam. Já corria há mais de 20 minutos. De repente ouve o ruído do carro... Felizmente vinha quase vazio... Mete-se nele e ordena ao condutor: a máxima velocidade. O carro quase que voa mas, ao homem impaciente parece que anda como lesma. Mais, mais!...

Chega enfim a Pangim. Soavam 9 horas. A extracção começava às dez. Tinha ainda uma hora para procurar as cautelas miraculosas. Como um louco andou aqui e acolá pelas ruas. Nem um vendedor de lotarias! Teriam morrido todos? Na praça, ninguém. Foi ao bazar. Nada! Foi ao cinema! O mesmo! Sem dar por isso chegou ao pé da Provedoria de Assistência Pública. Mole imensa de gente esperançosa. Encontrou-se com um vendedor de bilhetes: “Tem cautelas?” “Não. Estão esgotadas.” Correu ao outro. Esta tinha muitas. “Tem o número 20338?” “Tenho sim. Quantas cautelas quer?” “Dê-me o bilhete inteiro!...” Comprou. Azar! Era de extração seguinte!... Devolveu. Correu ao terceiro, correu a muitos outros. Ninguém tinha. Chegou ao pé dum velhote! “Você tem com certeza. Dê-me! Pago o duplo!”. “Eu tenho, mas...” “Mas (segue na 4a página) o quê? Eu quero!” “Não, não tenho..” Levantou-o pela gola do casaco: “Dê-me! Ao menos uma cautela! Pago-lhe cinco rupias!” “Não, não tenho.” “Rogo-lhe de joelhos! Única cautela!” “Não!” Desconsolado sentou-se no chão ao pé do velho... Beijou-lhe os pés: “Uma, só uma” “Não!” Estava alquebrado! Já não podia mais... E... ladrão!...

... Momentos depois saía o número 20338 e dois homens desmaiavam ao mesmo tempo. O velho vendedor de lotarias, pobrezinho, feito rico num instante e o homem honesto feito ladrão...

Renato de Sá - Luz e Trevas: Um Livro Postúmo de Hipolito de Menezes Rodrigues (1951)

Um poeta que morre é mais uma vida que se apaga envolta no mistério da sua própria existência.

 
Hipólito de Menezes Rodrigues, temperamento poético por excelência, cujos primeiros versos surgiam tão cheios de ritmo nas “Luarizadas” ou na “Barca do Amor”, era uma dessas tendências poéticas que procurava na Arte um meio de expressão para as emoções mais intimas da sua alma.

Dominado por esse sonho do irreal e do vago, o seu espírito recolhia-se na doce contemplação dos horizontes vastos, ora escutando aqui uma folha que treme ao sopro da aragem, além um regato que corre plácido por entre as veigas... Ele sente a beleza da terra e da paisagem, ouve o eco da viração, além escuta a voz dolorida do pobre pedinte da estrada e mendigar uma côdea de pão...

E logo, nos primeiros cantos da mocidade os seus versos surgem num hino triunfal a poesia:

“Eu amo a poesia, amo a palidez funérea,
Das campas a mudez, da noite a quietação,
Eu amo a solidão, a tristeza, a miséria,
E a virgem traída na sua mais bela afeição,

Eu amo o soluçar da guitarra, a desoras,
No silêncio da noite os dobres a finados,
A coruja chorando, escondida , horas e horas,
Seus amores talvez funestos, malfadados.”

Todavia num rebate juvenil em que as primeiras realidades de existência o chamaram a si, Hipólito de Menezes Rodrigues, completado os estudos do Liceu, segue para a Metrópole como bolseiro do Estado para fazer os seus estudos superiores.

Passa pela antiga Escola Politécnica; faz os preliminares para os estudos da Agronomia: transita depois para a Faculdade de Medicina, e nessa digressão em que procura escolher o curso que mais se ajuste a sua índole entra para a Faculdade da Farmácia do Porto, centro notável dos estudos químicos e farmacêuticos em Portugal.

Está-se com efeito nos grandes dias em que o movimento transformador da nova ciência com a síntese química está em pleno apogeu, ao mesmo tempo que a química biológica, a nova técnica das análises e a química orgânica aplicada à Farmácia tendem a ampliar os acanhados horizontes de velha botica rural.

E si, no ambiente da vetusta Universidade onde pontificam os grandes mestres como Aníbal da Cunha, Castro Henriques e Manoel Pinto (e mais tarde Abel Salazar nos seus doutos estudos sobre a química microscópica), que Hipólito de Menezes Rodrigues prossegue nos seus estudos de Farmácia Superior que lhe abrem um mundo novo no vasto campo da investigação laboratorial e cientifica.

Mas vem a queima das Fitas, a tradicional festa da pasta, e é então que novamente a sua lira vibra em sínteses formosas que ficam grávidas nas páginas do livro dos finalistas do seu curso.

E os anos passam... e um dia no sertão dessa África – onde ele é Inspector do Exercício Farmacêutico do quadro do Ultramar, quando os serviços do seu dispensário o permitem, ele revê as suas primeiras poesias, os seus primeiros cantos, doces e ternos, o “Idílio”, “A Procura do Ideal”, o “Nosso Amor no Campo”, “Nos Lábios de Mulher”, “O Calvário duma Alma”.

Depois sonha com essas belas quadras do Instabílis:

Rosa que estás na roseira,
Sorrindo a minha desgraça,
Lembra-te que neste mundo”
“Tudo muda, tudo passa”
Passa a desgraça mais crua
Morre a ventura mais linda,
Surge o que menos se espera,
O que mais se estima finda.

Não. A vida não mudou. O destino tem qualquer coisa de inexplicável e subtil que nem a ciência nem nenhuma filosofia conseguem explicar, o eterno enigma que o determinismo universal condensou nessa inexorável sentença:

“A Móbil não escreve e passa avante. Da sentença que lavra nem toda a sua piedade num todo o teu génio alcançarão que risque meia linha sequer! Todas as lágrimas que chores não poderão delir-lhe uma palavra só.

E ele torna-se pessimista, descrente como se um sonho mau o perseguisse:

“Nas minhas veias perpassa
Fatalismo duma raça
Que não consigo vencer –
E assim, julguei-me feliz,
E, assim, julguei-me infeliz,
Fatal poder.
Alma vogando, vencida,
Por tantas vagas batida,
Co’os sonhos a naufragar...
Quem te deu esse cilécio,
P’ra que tanto sacrifício
Num tão inglório luar?

E ocorre-nos preguntar:

- Qual o drama que o pungiu, que lhe amorteceu a vida que tão prometedora e fagueira lhe surgia?

O mesmo drama talvez que ensombrou a vida de tantos poetas, de tantas existências consagradas a poesia, desde esse sublime Leopardi que cantou as suas desditas no “Pardal Solitário” até esse mago da Arte que foi Burns quasi que pressentiu o seu triste fim na sua famosa “Ode a uma violeta...”

Era na selva por um dia nevoento de Setermbro de 1947, quando Hipólito de Menezes Rodrigues em vésperas do seu embarque para a terra natal, fechou para sempre os olhos à luz nas terras de Quelimane, longe do carinho dos seus, tendo por únicos companheiros as páginas das suas líricas que a ternura do seu irmão Alberto de Menezes Rodrigues, camarada distinto das Letras coligiu num mimoso poema de saudade...

Mas é aí que encontramos o lírico mavioso da “Suplica”, da “Rosa Branca”, das “Ironias do Destino” e desse belo soneto “Luz e Trevas”, que em páginas de subtil beleza converteu os seus casamentos em formosos cantos.

“Luz e Trevas”, testamento lírico de um grande poeta que entra para o cancioneiro da melhor antologia goesa, versos em que perpassa a chama dum ideal de pureza sem artifícios e cujo autor repousou suavemente na paz de Deus na selva adusta e impenetrável...

E ao desfolhar a última página desse livro da saudade, eu recordo o famoso verso de Vigny:

Sur la pierre du tombeau croit l’arbre de la grandeur.