Minha querida amiga:
Da minha janela virada para o mar, do litoral do sul de Goa, de regresso à minha terra após uma longa ausência, te escrevo esta carta, feita de amor e saudades dos tempos que, há muito, deixaram de nos sorrir, assim que deixámos os bancos daquele velho liceu, plantado ao sopé do altinho, quando por entre sorrisos e esperanças do porvir, com olhos marejados de lágrimas, a sombra da verdura do arvoredo, com a lua nos batendo em cheio nos rostos, olhos fitos nos olhos, lábios colados nos lábios, os nossos corações se despediram naquele longo ADEUS, na véspera da minha debandada para terras do oeste, para vestirmos a capa universitária e cantarmos o fado nas margens do Mondego:
Coimbra é uma lição
De sonho e tradição
O lente é uma canção
E a lua a faculade
O livro é uma mulher
Só passa quem souber
E aprende-se a dizer
SAUDADE!”
Como os tempos passam e tão depressa! No entanto, na roda vertiginosa do Tempo, rodaram duas longas décadas. O velho império do oriente fabuloso desmoronou-se em peso, a face do intransigível do palácio de São Bento. Mudaram os ventos nas margens do Tejo e emanciparam-se as Áfricas. O expedicionário português, Manuel da Tropa dos Batalhões de Portugal, já casado de responder às cartas da sua namorada Maria, que por tão longo o esperou, regressou agora às províncias de Minho e Algarve para fazer o lar. Enfim, depois da longa noite polar que passámos nos cafés de Coimbra e Lisboa, levantou-se a velha cortina de “Visado pela Comissão de Censura”, mas o escudo vascilou em face da instabilidade económica, cortado o nó górdio da placenta que o nutra. E aí, os governos somaram e seguiram.
No meu solar, à beira-mar do lindo Arábico, no litoral do sul de Goa, com as suas areias finas e brancos, como o corpo desnudado dos turistas de todo o mundo que o debandaram desde a última década, em redescoberta do caminho do oriente das Índias, una levados pela ideologia da revolução de Paris, da primavera de 68, outros motivados pelo turismo ou estudo de uma civilização milenária, ainda cercado por aquela vegetação luxuriante para antro de chilreantes pássaros, o anteras e a terra que um dia foram a minha telefonia, serviram de cordas de suspensão para a roupa dos pares que, em noites de luar, anicharam nele para furtivas luas de mel, aproveitando da solidão do ambiente e da ausência do seu dono em terras de fado.
As árvores do meu lindo arvoredo de há gerações, circundando o meu vetusto solar, e que serviram de protecção aos inofensivos inquilinos temporários que aí apareceram de quando em vez, sem a carta do contrato, para hospedes de um ou outro dia, senão horas, escaparam das chacinas do machado dos algozes. Aqui e acolá, os coqueiros, as mangueiras, as jaqueiras, os pinheiros, a despeito de não terem que manjar, cresceram sem queixumes, reproduzindo-se regularmente, para mata pão de mata-bicho dos desventurados da sorte. Só a pintura das paredes, que em tempos se vestiram de gala, cedeu imenso. Mesmo assim, eles albergam ainda com toda a fidelidade que dorme agora o sono na campa fria da lousa e que, em tempos, encheu o solar com vida e alegria. Uma e outra imagem dos santos, de devoção, de marfim, relíquias do passado, distante, foi roubada do seu nicho, sagrado, provavelmente pelos homens de além-gates, sem escrúpulos, em troca de algumas centenas de rupias no mercado de Bombaim, para fazer o seu ganha-pão, sem suor, irados de acharem as antiguidades removidas, há tempo.
E enquanto cá o nosso Mandovi secou o seu leito de saudades dos que partiram, nós, já fartos das águas do Mondego e das capas negras, fechamos o nosso diploma de Coimbra nas gavetas da secretária em Lisboa, esquecidos do objectivo do nosso curso, para tomarmos um emprego na casa-forte do Banco Espírito Santo e Sotto Maior em Lisboa, para vermos o saldo na caderneta do banco em algumas centenas de contos, para partirmos para um tour pelas sete partidas do mundo, a ver se fazíamos o coração mais leve... Aonde fomos, o que vimos, o que fizemos, seria um longo rosário de histórias que as limitações do rectângulo de papel não me permitiriam por hoje.
E agora, de regresso ao meu velho solar, em romagem de saudades, com alma feita de nostalgia, com o coração repartido pelas sete partidas do mundo, recostado à minha janela virada para o sul horas sem fim, reatando o fio, recordando o que a memoria me permite desses longos vinte anos da minha ausência, com as suas lacunas, convidando-me a um exame introspectivo: são recordações que se perdem no alem. As lembranças humanas dissipam-se cada vez mais... E o mundo, elíptico e redondo como a luz que alcançamos, na sua azáfama incessante, vai-se evoluindo impassível... as emoções humanas!
Se há muito a vida não me faz sentido, ainda guardo na minha mala de mão os enormes maços das tuas cartas, já amareladas pelo tempo, enumerados por ordem cronológica, em maços de cada ano, quando, por longos anos, corria ávido à porta da minha república em Coimbra, à espera das tuas notícias que, de repente, a certa altura, se sumiram como por mistério...
Nunca mais consegui escrever-te... nunca mais pude indagar... porque em parte não tinha alma para tanto, porque em parte não tinha também o endereço da tua residência nova.. mas faço hoje a muito custo, servindo das colunas do nosso jornal, o velho ‘O Heraldo’, o único que sobrevive até hoje, a ver se tu podes ler a minha carta, além do túmulo...
Litoral do sul de Goa, 7 de Agosto de 1981
Tu amigo dos bancos do liceu,
Aires Colaço
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