Mário Cabral e Sá ofereceu-me um dia um gira-discos, em penhor de amizade. Era excelente mas tinha um senão: ligado à corrente e ao alto-falante do rádio e posto a funcionar, os discos gravam, giravam e iam girando sem nada dizer, mudos e silenciosos. Como ao cavalo dado não se lhe olha ao dente nada disse ao meu amigo Mário e procurei investigar a causa da mudez do aparelho: o cartucho electrónico da cabeça do seu braço estava avariado.
Como nessas alturas partia para Europa, retirei o cartucho para comprar outro igual. A primeira cidade do meu itinerário onde me demorava era Zurich e banhado, comido, bebido e vestido no hotel após a chegada fui percorrer as lojas, para comprar a peça. Não havia em nenhuma parte. Havia de outra marca que podiam servir mas não se adaptavam na cabeça do braço. Ia resignar-me a tentar em Londres, pois o gira-discos era de manufactura inglesa, quando se acercou de mim um rapaz de dezoito anos prováveis e insistiu: “olhe, compre e venha comigo”.
Comprei e acompanhei-o. Numa água furtada de minúsculos dimensões, armara sobre um banco de pinho a sua minúscula oficina. Num canto sobre uma mesinha de pinho uns livros e duas rosas numa jarra de água. Noutro canto num leito estreito a cama limpa e arrumada. Estudava, dormia e trabalhava ali em horas vagas. Como trabalho semi-permanente servia num restaurante e feito o exame final terminado aquele semestre esperava obter o seu diploma de engenheiro técnico. Por espaço de uns quinze minutos, que passei fascinado com a sua história a vê-lo trabalhar, manipulou pinças, despicios de vários calibres, limas e soldador eléctrico e no fim a cabeça do braço do meu gira-discos estava munida do cartucho. Dei-lhe seis francos pelo trabalho e convidei-o para beber comigo uma cerveja. Levou-me ao restaurante onde servia e, sentados a uma das mesas, bebemos e conversámos: àquela hora não era criado. Era freguês, instruído e culto.
Segundo facto. Quando o Japão estava prostrado pela derrota na segunda Guerra Mundial dois rapazes, formados em Engenharia electrotécnica, puseram-se a matutar ao meio de ruínas da cidade bombardeada sobre que rumo iam dar à vida. Coligiram bocados de sucata, arranjaram ferramentas, apossaram-se de uma garagem dilapidada e à custa de trabalho e engenho fabricaram um pequeno rádio-transistor. A tentativa dera resultado. Fabricaram outro, mais outro, mais outro. Foram vendendo os aparelhos que fabricavam. Engajaram um rapaz e uma rapariga como primeiros operários da empresa incipiente. E hoje a fábrica dos aparelhos “Sony”, que principiou numa garagem dilapidada como vontade de sobreviver e triunfar de dois jovens castigados pela derrota do seu pais, é um dos símbolos da ressurreição do Japão à custa do trabalho dos seus filhos.
Terceiro facto: uma das primeiras cartas do meu filho escritas de Munique estava recheada de elogios pelo trabalho dos alemães: ‘Nem calculas, pai, como esta gente trabalha!” Ele trabalhava então, como aluno-aprendiz da Universidade Técnica de Munique, numa fábrica de Siemens em Nuremberg. O governo indiano tinha mandado para Alemanha como bolseiros dois engenheiros para ‘advance training’. Estavam naquela fábrica onde os engenheiros alemães fizeram praticamente todas as espécies de tarefas dos operários sob as suas ordens. Aos alunos-aprendizes, como ao meu filho, mandaram à entrada limar as peças e fazer gradualmente todos os trabalhos até à montagem das máquinas. Pois a respeito desses dois bolseiros, a carta dizia: ‘Estes nossos dois compatriotas andam à volta das máquinas, afastados, com receio de mancharem seus fatos, como se estivessem a observar animais num jardim zoológico. Que vão fazer depois de voltarem à Índia? Que vão levar daqui? Só a vanglória de serem “foreign trained”!
Todos estes factos ocorreram-me à mente num quarto de hotel em Bombaim. Tinha ido a Damão em serviço profissional. Reservara o bilhete de volta no avião para o dia 10 do corrente mês. Como o meu trabalho terminou mais cedo do que esperava voltei a Bombaim no dia 8 e fui direitinho ao escritório da ‘Indian Airlines’ para saber se podia antecipar o meu regresso a Goa tomando o avião do dia 9. Entrei e me abanquei ao balcão com o bilhete na mão. À minha frente, uma empregada e um empregado – que naturalmente foram contratados e são pagos para serem acessíveis aos passageiros – ciciavam aos ouvidos um de outro, indiferentes aos que passava em volta. De vez em quando olhavam para mim, para o bilhete que tinha na mão, e sem se importarem comigo voltavam aos esus arrulhos. Passaram assim quinze minutos. Perdi a paciência e estava para lhes dizer coisas duras quando o protagonista macho do dueto inaudível levantou-se da cadeira e outro que a veio ocupar informou-se da minha pretensão. Não havia lugar vago no avião e tive que marcar passos num hotel de Bombaim.
Estes episódios vieram-me à mente ao ler no quarto do hotel a revista de um livro num velho número de um magazine. O livro intitula-se ‘Asian Drama;, livro volumoso de 2.500 páginas em três volumes. É seu autor o economista sueco Gunnar Myrdal cujo livro ‘American Dilemma’, publicado em 1944 é um estudo sóbrio e autorizado sobre o preto americano. Comissionado pelo Twentieth-Century Fund para estudar os problemas e as perspectivas do Sul da Ásia, o economista levou dez anos para completar a tarefa, três dos quais viajando na vasta área ao sul da periferia da Rússia e China. Constituída por onze nações, desde o Paquistão à Indonésia, a área abriga quase um terço da população do mundo porém enfrenta mais de dois terços dos problemas mundiais: pobreza esmagadora, crescimento demográfico ruinoso, o fardo do passado colonial e agressores armados comunistas no Sueste Asiático. Myrdal é sueco, o seu pais não tem pecados coloniais e as conclusões do seu estudo não são coloridas de preconceitos ou ideias pré-concebidas que tendemos atribuir aos ocidentais que tiveram colónias. Reconhecendo que existem as condições vulgarmente citadas como responsável pelo atraso da Ásia – a falta do capital, dos recursos da educação – Myrdal diz porém que muito mais prejudiciais são os traços de carácter básicos e atitudes dos asiáticos que passa a enumerar: ‘níveis baixos de disciplina, pontualidade e ordenamento; crenças supersticiosas e visão irracional; falta de vigilância, adaptabilidade, ambição e prontidão geral para mudança e experimentação; desprezo pelo trabalho manual; submissão à autoridade e à exploração; aptidão baixa para colaboração.”
Desprezo pelo trabalho manual – sim, que exacta definição não é, por exemplo, das nossas atitudes, nesta nossa minúscula parcela da Ásia! Basta aprender a soletrar duas palavras na escola primária e adeus o trabalho manual – o menino já é doutor.
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