Friday 19 August 2011

Mariano Saldanha - Contos Goeses em Marata (1962)

A Índia, país de lendas, cultivou desde a mais remota antiguidade, o género romântico com a feição extraordinariamente mitológica; e a sua literatura oferece abundante produção de epopeias, dramas, kadambaris e puranas, que alimentavam e ainda alimentam a imaginação popular, ávida do extraordinário e mesmo do inverosímil.

Com o advento da cultura inglesa, os “B.A.s” das novas universidades introduziram, especialmente os parses e os babus, um novo género: o romance pequeno em prosa, à maneira europeia, despido de mitologia; mas o princípio a imitação era lamentavelmente servil e monótono: o mesmo namoro e as mesmas descrições de paisagens (sinaris – scenery). Umas das cenas predilectas era a beleza da tarde (sayamkalchi vêll) como o seu pôr-do-sol ou nascer da lua. A heroína devia estar com um livro na mão, sentada num dos bancos de Choupati, a cabeça apoiada noutra mão, absorta a contemplar o mar ou o Malabar Point, e assim por aí além, e tudo temperado com as indispensáveis citas de Chaucer, Shakespeare, Wordsworth. Mal iria, porém, às letras, se algum literato de mérito, correspondendo à nova vaga de renascença nacional, não tivesse dado os idiomas pátrios com produções de real valor, como Binkim Chandra Chatterji e Hari Naravan Apté que, se tivessem escrito em inglês, teriam talvez conquistado um nome entre os maiores romancistas.

A nossa Goa, não tendo tido quem a romantizasse em língua indiana, não figura nem como sujeito nem como objecto em semelhante literatura, com a feliz excepção dos poucos romances em concani, limitados à sociedade cristã. Os contos e tradições locais, que porventura nos tivesse legado a antiguidade, não encontraram quem os perpetuasse em letra e lá, se perderam, com as nossas avós, lendas curiosas, de grande interesse folclórico, com a do Codmá Razá (rei cadamba de Goa) cuja formosa noiva, satam sam’dirambhaili cumvor (talvez princesa de Ceilão ou das Maldivas) viera a Goa Velha, não em qualquer prosaico transporte, nem mesmo no épico aeroplano do monstro ceilonense Ravana, mas numa idílica e mimosa concha de madrepérola, transportada sobre as ondas pelas encantadoras ninfas de Varuna, o senhor dos mares, as mesmas ninfas que ajudaram a Rama para recuperar a sua Sitá. Ao desembarque, foi oferecida à princesa, para deixar o primeiro pé nas terras do seu real consorte, uma tábua do melhor sândalo de Maissor, incrustada de diamantes de Golconda e enviada pelos parentes dos cadambas; e o puroito palaciano deu-lhes as boas-vindas, saudadando-a com um punhado de arroz azgó de Goa Velha e um mhomvó nal de Cortalim.

(Continua na 3a pagina)

A população cristã, para não ficar atrás da hindu, também dava largas à sua imaginação e tonificava as suas crenças criando lendas especiais, que eram bem aceites e até acrescentadas pelos hindus. Assim, por exemplo, contava-se que a freguesia de Ucassaim, tendo dedicado a igreja ao culto da rainha lusitana Santa Isabel, não obtinha como desejava, uma imagem do seu orago talhada em madeira de Portugal; mas a santa rainha, que já em vida convertera ouro em rosas não tardou em acudir aos seus longínquos devotos e, transformando uma pedra preta em bóia, mandou sobre ela, pelo rio fronteiro à igreja, a sua estátua, que foi recolhida no templo e a pedra lá esteve, durante séculos na margem do rio, a atestar a dádiva celestial. Era nesta pedra que desembarcava a Milagri-Saibinn, de Mapuçá, quando, na noute de sua fama, se dirigia pelo rio abaixo a convidar para a sua festa as suas seis irmãs, veneradas em outras tantas igrejas ao longo do mesmo rio, desde Ucassaim até à Penha de Franca. Para os hindus, aquela Saibinn era uma convertida, que naquela ocasião ia convidar para a sua festa as suas 6 irmãs, Laharai, Mahamai e outras, que dantes tinham os seus pagodes em Bardez, precisamente como a Senhora do Monte de Bandorá, procede, segundo a crença dos collis, para com as suas irmãs hindus, também seis, Mumbá-Devi, Kalká-Devi e outras. Que belo exemplo de tolerância e camaradagem religiosa.

Hoje, com a maquina de imaginação empurrada pelas engrenagens da vida material, nem há quem conceba dessas simpáticas lendas, nem quem nelas acrediate, e até a pedra da minha freguesia, vendo dispensado o seu mudo testemunho, sumiu-se para parte incerta.






A falta de contos goeses em marata foi agora suprida por um moço escritor hindu, de Goa, o sr. V.S. Sukhtankar, que, sob o título de Sahyadrichya Paythyaxim (i.é. No Sopé dos Gates) acaba de publicar uma coleção cuja acção se desenvolve em Goa. Sendo o autor educado em Bombaim, os seus cantos são escritos em bom marata e talhados em carácter regional, oferecendo grande interesse ao leitor por retratarem com toda a naturalidade e graça e sem preconceitos de castas ou crenças certas cenas de província, tão nossas conhecidos. Os assuntos, completamente estranhos ao eterno tema do amor, relacionam-se com os factos da vida actual ou da história e tradições do pais, com referência às questões sociais do nosso meio local, o que talvez seja um campo pouco pisado em literatura marata, pelo menos em relação à Goa.

A história, triste história da bailadeira Zaí, narrada no primeiro conto, Zaí-Zaí tem um grande alcance social, hoje que em toda a Índia, incluindo Goa, se procura eliminar o lado imoral desta profissão, aliás digna de apreço pela sua cultura musical e coreográfica. A infeliz menina, iluminada pelo raio de pureza revolta-se contra o estigma hereditário que quer obrigá-la a manchar a honra na ignominia e afinal sucumbe pela ambiciosa imposição dos maiores e pelo dever da casta!

O Mahapurachi Xikavan é na verdade, uma lição tanto para os cristãos como para os hindus, especialmente para os jovens hindus modernos, que importam da Índia vizinha as ideias, que aliás não tinham, de antagonismo religioso ali geradas pela eterna rivalidade hindu-maometana. O balcão de Santú-Xenoi era o ponto de reunião diária dos vizinhos de ambas as crenças e um dos frequentadores assíduos era Paulu-de-Sá, cuja amizade pelo Santú irmão é típica das boas relações que nas nossas aldeias ligam às vezes os vizinhos hindus e cristãos. As senhoras das duas famílias se auxiliavam mutuamente com os seus préstimos; se uma era perita de lon’chins e papddés a outra tinha bom hat-gunn para as doenças e boa provisão de hervas para os coddés foramentans, xeddés, etc. A família de Paulú compartilhava com a de Santú as goiavas, atas, papaias da sua horta, que este retribuía, pelas suas festividades, com rós, neuryôs, laddús, e mais delicacies da culinária hindu.

Mas um dia surge na aldeia, como um Yama’duta, um neto de Santu-Xenoi, o jovem Sonú, que, com a mioleira enfatuada pela Mumboichi suki boddai, arvora-se em defensor do hinduísmo e da dignidade dos hindus e, com as suas arengas subversivas, levanta, na pacata aldeia do partido pró hindu, semeando desunião entre as duas religiões; divide-se a população em dois partidos: o hindu e o cristão, rompem-se as relações extingue-se o trato e os dois vizinhos vêem a sua amizade, datada de gerações e robustecida pela mútua dedicação e confiança, substituída por uma espessa barreira de antagonismos, de ódios e vinganças. Em casa de Santua, Xri Gonês já não via o seu altar profanado pelas impuras papaias do kiristão Paulú, nem este saboreava os neuryos e mais pitéus da concni Aji-bai. Em compensação havia farto obséquio de insultos, ameaças e espancamentos. Até os animais se alistaram nos partidos. Os porcos e galinhas de Paulú, tornavam bhoxtt o quintal de Santú, cujas vacas, por seu turno, devastavam as bananeiras daquele. Os ossos e mais resíduos alimentares do cristãos encontravam-se à porta dos hindus, e os patravallyôs desses acumulavam-se à porta daqueles; até que esgotada de ambos os lados a paciência, Santu levantou um processo contra o seu ex-amigo. E tudo por causa do fogoso Sonu e do seu terrível adversário Paulugueló Santan.

O processo naturalmente estava destinado a largo e longos anos de vida, nadando com a velocidade de cágado – própria para agravar e protelar as animosidades – numa inundação de requerimentos, selos, preparos, intimações, prazos, inquirições, depoimentos, contestações, recursos, agravos, apelações, minutas e mais terminologia do bem provido léxico judiciário. Entretanto a natureza lembrou-se de um expediente bem eficaz. “A amizade dos mahatmas – diz uma sentença sânscrita – dura toda a vida; a sua inimizade é apenas um episódio temporário e sua liberdade é desinteressada”. E assim se provou. Uma inundação perigosa e prolongada, ameaçando destruir a casa de Santú e deixando sem pão a família de Paulu, fez submergir os ódios e mais o processo e provocou a reconciliação, inspirada pelo delicado coração das respectivas mulheres, ansiosas por mutuamente acudirem ao vizinho na sua adversidade. E o velho Santú, entre agradecido e arrependido, pergunta:

“É sempre bom observar-se o dever da amizade entre os vizinhos, não é assim, Paulú?”

“É verdade, irmão. Também o nosso Jesus disse: Ama o teu irmão como a ti mesmo”.


E os dois tornam a amar-se como a si mesmo, retomando a aldeia, a sua paz e harmonia. E o mal agourado Sonú favoreceu a todos com a sua ausência, para pôr termo a este episódio temporário, que ia prejudicando a amizade dos dois mahatmas aldeanos.





Alguns destes contos têm um fundo histórico ou tradicional, como o Varanda (Voronddó) que diz respeito ao assassínio de Rauji Ranes e a consequente vingança. O Tamrapat (Tambed-pottó) expõe os poucos conhecidos sofrimentos do povo, a quem uma simples questão sobre uma Alagoa basta para agravar a miséria. Em Katu Kartavga temos uma tradição dos tempos do imperador Axoha relativa a uma hostilidade já narrada em outro livro, entre os gaocares de Loutolim e os de Curtorim e terminada também pela intervenção duma adversidade que afectou a Loutolim, invadida por umas tribos selváticas de além Gates e espontaneamente socorrida pelos vizinhos de Curtorim, esquecidos nos antigos ressentimentos. Há mais contos que não posso estar a particularizar.

O livro é prefaciado em inglês por Mrs Kamaladevi Chattrophyaya e traz no fim um vocabulário das palavras goesas empregadas no texto. A próposito, não posso deixar de fazer um comento: O autor é de Goa, os personagens são de Goa e em Goa se passa a acção dos contos, que têm por fim pintar a “life and colour” daquele “beautiful land”, que é Goa. É, contudo, nos diálogos e descrições, onde, aliás, figuram, além do marata, o português, o inglês e ainda o latim, só é banido sem contemplações o idioma goês. Até os personagens cristãos e analfabetos falam tudo menos o concani, para se embrenharem marata, que aliás nem em sonho falaram. É verdade que a sua linguagem nem sempre é a literária de Puném; mas aquela construção mulheril, com a nasalação das terminações neutras, não é nenhuma particularidade de Goa, é de todo o Maharastra, cujos dramas e romances uniformemente o imitam. Perdeu-se portanto a oportunidade de revelar aos leitores maratas o idioma e expressão particulares de Goa, que aumentariam o encanto dando uma atmosfera caracteristicamente goesa e portanto “a vida e o colorido” linguístico do país. Não digo que toda a dialogação devesse ser em concanim; mas bem podia intercalar-se uma ou outra frase expressiva e típica, como se fez com a fala portuguesa do Padre Cabral, do delegado e outros. E, mesmo sem um diálogo inteiro, o do cumbi Kamnu, por exemplo, fosse em concani, que havia nisto de estranhável. Os maratas, que o compreendessem, se quisessem, na mesma medida em que os hindus de Goa se prontificam a compreendê-los a eles, tanto mais que o livro é acompanhado de um vocabulário explicativo.

Das palavras goesas, algumas estão desfiguradas com o aspecto marata ou sanscrítico. Assim, chardó, vocábulo dos cristãos, maratizado em chardá, terminação contrária ao génio do concani. Os nomes topográficos Agxi, Keloxi, Kut’tal, Lottli etc. são escritos na sua suposta forma sanscrítica Aghanaxini, Kardali, Kuxastali, Loxtavali. Dir-se-á talvez que essa sanscritização se justifica pelo facto de o respectivo conto se referir aos tempos do imperador Axoca. Mas o próprio Axoca empregou nas suas descrições, três séculos antes de Cristo, os nomes geográficos na sua forma prática ou popular e não sanscrítica, que era escusado agora desenterrar em uns contos modernos, que não são em sânscrito.

À parte esta nota, o livro é interessante e apresenta-se bem: papel bom, impressão nítida, revisão cuidada, ilustração e encadernação artísticas, bem feita, cousas não vulgares em publicações vernaculares da Índia.

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