Thursday, 25 August 2011

Mário Isaac - A poesia goesa e os goeses (1956)

Se, como alguém disse, a literatura é a expressão da época em que se vive, não será exagero considerar deslocados os que permanecem quietos no tempo e nos processos, transformando a arte em mero passatempo sugerido por satisfação própria e única, num divórcio das mais prementes imposições da realidade que atravessam e num desprezo por tudo o que é devido aos que esperam do romancista, do poeta, do pintor, do músico, a interpretação fiel e carinhosa, equilibrada e harmónica dos mais largos anseios e das últimas experiências do dia a dia.

Por ruas e praças do mundo o verdadeiro artista anda a seguir os movimentos das massas e procurar dar-lhes formas estéticas que fiquem a atestar as tendências do momento em que se localizaram e a ajudar a construir a resposta ou o prolongamento que seja passo decisivo para a luta das gentes.

Fixou-se assim, por relação do homem com o artista, um novo tipo de literatura (já que só desta vamos falar) a que têm chamado neo-realista. É uma literatura vigorosa, direita, rude por vezes como a vida o é quando calha, mas, em nosso entender, sempre honesta e ligada ao destino dos outros.

Há quem afirme que tal literatura se deixa fixar pelos caminhos da miséria, vendo a existência por um só ângulo – o mais deprimente. Não havendo más intenções na afirmação, há, pelo menos, a falta clara de percepção exacta do que seja neo-realismo. Este tanto pode sair do ambiente lúbrico e abafante de um lupanar como de um salão atapetado de aristocratas ou de um armazém cheiroso de comerciante feliz. Tudo vai de forma de procurar as causas de determinadas situações e de interpretar o verdadeiro sentido, o menos excepcional, das reacções em jogo. Tomando por ponto de apoio premissas que desde o princípio do mundo têm feito nascer conclusões verdadeiras, a moderna literatura coloca o Homem no centro das concepções que vai espalhando e à base delas ajuda a construir a época de que é espelho.

Falando de Portugal, nota-se uma plêiade de jovens perfeitamente integrados nas novas correntes, de quem há muito a esperar além do que já deram. Na Metrópole e no Ultramar vai uma autêntica revolução literária que nos tem elevado aos olhos do estrangeiro e interessado uma grande maioria dos leitores portugueses.

A poesia não podia ter ficado indiferente a este arejamento de processos e de intenções que se vêm verificando de há quase um quarto de século para cá. Os poetas compreenderam a missão que lhes estava marcada e seguiram o tempo em que vivem.

Aqui em Goa, entretanto, parece que ainda não percebemos do que vai à nossa volta e continuamos a estafar as horas e as possibilidades em interpretações de estados mais ou menos pessoais e mórbidos sem reflexos directos na colectividade e sem frescura de realismo que desperte o ambiente já de si mole e fatalista.

É tempo de acordarmos para alguma coisa de construtivo, é mais que tempo de começarmos a comunicar aos outros a mensagem que anda nos gestos de todos. O ponto estará em sabermos dar altura e sentido poético às vicissitudes que podem influir no esclarecimento dos problemas mais chegados à realização completa de cada um de nós.

Deixemos os sonhos esfumados e imprecisos que ficam no ambiente que criámos e se dele saem é para darem a nota de derrotismo a quem os entender (que bem poucos são). Finquemos os pés na terra e tiremos dela algum ensinamento que possamos cantar em estrofes e de ritmo adequado ao nosso entusiasmo. Poesia jovem, flutuante de vida e cheia de verdade, eis o que precisamos em Goa já que não faltam sensibilidades para transformarem em arte a visão de segundos.

E não venham dizer-nos que são necessárias expressões confusas ou versos estranhos para se criar a beleza que pedimos! Não, se a vida do poeta anda a bater as ruas, para que será necessário o malabrismo de palavras ou a contorsão da ideias? Acaso não se passa tudo à nossa vista, ao alcance da nossa inteligência – de encontro aos nossos nervos? Para quê, então, emaranhar o que por si é livre, tornar difícil o que ninguém ignora, fazer nebuloso o que nunca se apresentou em nuvem? Não, só temos que filtrar na pureza das nossas convicções o elemento que gera o poema e distribuir o nosso potencial artístico pela interpretação do silêncio que ficou nos lábios dos outros. Será o ponto de partida para o edifício que pretendemos construir. E isso é poesia – dizer que os outros sentiram e não souberam exprimir. Mas dizê-lo com beleza simples de quem é capaz de acordar uma criança ou conduzir um velho.

Cremos que há entre nós jovens com alma para encaminharem seguramente os seus passos pela senda de que estamos a tratar. Cremos que alguns poderão mesmo ir longe se resolverem abdicar, definitivamente, das leis geométricas por que se têm regulado. Mas nós cremos não chega, evidentemente, para que haja poesia viva em Goa!...

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