Wednesday, 26 December 2012

Laxmanrao Sardessai - O Tempo é o Meu Tesouro

O tempo é o meu tesouro
E minutos e horas são moedas preciosas.
Cada momento que passa pelo meu ser
Torna-se o oiro do pensamento
E flutua no Mundo das ideias.
No branco rolar do tempo
Eu escrevo em letras imensas,
Mensagens eternas de Deus
Eu arrojo com o meu sopro
Para o abismo de Nada
Os escribas mundanos
Que defendem a filosofia do ódio
E nessa obra colossal
Eu me folgo.

Tuesday, 18 December 2012

Santana Pinto - Goa (1962)

É tão atraente meu torrão natal,
Cheio de encanto e tanta beleza
Cintila sem par como uma turquesa
Que não vejo nenhum outro igual.

Vi lá prosperidade, bem e mal,
Riqueza que nem sempre foi firmeza,
Paz, vida pitoresca, dureza
E trecho da história oriental.

Agora, envelhecendo com idade,
Vejo todo passado com saudade
Em visão que foi e não volta jamais!

Já vivi, república, ditadura,
Guerras tétricas – que me resta mais! –
Doce silêncio e paz da sepultura!

Wednesday, 5 December 2012

Francisco Correia-Afonso - A Legião do Amor (1961)

Beati misericordes… Do Sermão da Montanha
Ao alto erguendo o lábaro da Cruz,
Ei-la que vai, galharda legião,
Dos mansos mensageiros do sermão
Que da montanha nos pregou Jesus.

Ungindo toda a dor, cobrindo os nus,
À fome dando até do próprio pão;
A chega faz-se flor sob sua mão;
Sob seu olhar a treva faz-se luz.

Eis na vanguarda Assis e São Vicente....
E surge entre os heróis a quem bendigo
- Orgulho imenso! - Alguém da minha gente.

Que deu à Dor a bênção dum abrigo,
E tem nessa falange um posto à frente,
Pois por amor aos pobres foi mendigo.

Alberto de Menezes Rodrigues - Glória ao Soldado Indiano (1962)

O Dragão Amarelo
Fincou
Suas garras
No solo sagrado
Da nossa Pátria
E uma guerra feroz rebentou!

Porque todos nos unimos
Para enfrentar com energia
A agressão cínica e desumana,
Porque a nossa causa é justa
E numerosas nações nos deram
O conforto da sua simpatia
Quase que se vislumbra a vitória indiana.

A Alma do sempre lembrado
Mahatma Gandhi
- O Pai da Nação –
Paira sobre a Índia
Como uma Sombra inspiradora,
Como uma Sombra que vale por ela
Não nos intimidemos diante da força agressora
Que avançou!
Não está longe a despontar do dia
Em que os invasores,
Não podendo aguentar os combates,
Regressem cabisbaixos aos penates!

E desta provação, que o Destino lhe impôs,
A Nação emergirá
Mais unida,
Mais coesa,
E mais contente,
Continuando a trabalhar
Em prol da Humanidade,
Cônscia da sua alta missão no Mundo.
E atingirá rapidamente
A meta da prosperidade.

Longe, nas regiões montanhosas do Himalaia,
Cobertas de neve,
Os nossos jawans batem-se com bravura.
- Que os nossos corações palpitem de orgulho
E de gratidão! –
Defendendo a Nação,
Eles defendem a nós e os nossos lares.
E quantos tombaram para sempre,
Vítimas do furor insano
Dos chineses!

Glória ao Soldado Indiano!

Evagrio Jorge - Orgulho da Grei (1969)

“Je suis né dans l’Inde orientale, dans ce pays qui fut le berceau de poesies, philosophies et des histoires…

J’appartiens à cette race qui composa Mahabaratta et inventa les échecs – deux œuvres qui portent en elles quelque chose d’eternel et d’infini…

Je demande pour l’Inde la liberté et la lumière!”

A – Quem foi Francisco Luís Gomes ? Onde nasceu ? Onde viveu ? Que fez ele em vida ?

B – Francisco Luís Gomes foi um goês ilustre, nascido em Navelim de Salcete aos 31 de Maio de 1829. Formado médico pela Escola Médica de Goa, dentro dos curtos 40 anos de vida, foi parlementar, economista, historiador, escritor e humanista.

A – Parlementar foi-o Francisco Luís Gomes, de 1861 até a sua morte em 1969 e nessa qualidade defendeu a liberdade, pugnou pelas regalias cívicas e fez a defesa dos humildes e protegidos. Eis algumas passagens lapidares dos seus eloquentes discursos:

C – Tenho amor aos príncipios, amor inabalável e forte. E se este amor precisasse de alguma recomendação tinha-a nas palavras que me dirigiu um dos grandes homens desta terra. Há mais de dois anos o sr José Estevam, abraçando-me e ao sr. Tomás Ribeiro disse-nos estas palavras: Rapazes, não sacrifiquem nunca os princípios aos homens. Não há homem nenhum que valha um princípio.

B – E esta outra passagem que se provou profética: ‘As revoluções antigas derrubavam os feudos, os privilégios, os fortes, os poderosos; as revoluções futuras hão-de levantar os pequenos, os humildes e os pequenos. As revoluções passadas fizeram pequenos os grandes; as revoluções futuras hão-de fazer grandes os pequenos. As revoluções passadas eram os furacões que abatiam os castelos e os confundiam com o pó da terra; as revoluções futuras devem ser os terramotos que levantem as camadas ínfimas e as tornem primeiras . As revoluções passadas foram o “deposuit potentes”, as revoluções futuras devem ser o “sursum corda”. As revoluções passadas emanciparam as classes, as revoluções futuras hão-de libertar as massas, emancipando as indústrias, barateando subsistências e propagando a instrução”.

B – Logo a seguir disse isto que se aplica também às condições actuais do nosso pais:

C – “As liberdades económicas! Eis aí a bandeira, à cuja sombra se podem fundir e aliar-se os partidos em Portugal. Estamos nas liberdades politicas mais adiantados do que muitas nações de Europa, não assim nas económicas. A liberdade é indivisível como a túnica de Cristo. Podem roubá-la mais não a podem dividir. Metade de liberdade não é uma liberdade, é privilégio.”

A – Como economista, Francisco Luís Gomes escreveu três trabalhos de alto valor, que produziram eco em Londres e Paris, sendo apreciado por economistas de nomeado como Stuart Mill, Michel Chevalier e Garnier. A Sociedade dos Economistas de Paris ofereceu-lhe um “fauteuil” distinção que até lá fora concedida apenas a quatro estrangeiros: Gladstone, Mingheti, Stuart Mill e Lobedz.

B – Como historiador e biógrafo, a sua obra em francês “Le Marquis de Pombal – Esquisse de sa vie publique” é um monumento imorredouro à sua elevada noção de historiador, superior visão e belo espírito critico. Com um admirável poder de síntese, Francisco Luís Gomes apreciou nas 377 páginas deste livro a vida portuguesa de 27 anos do Governo de Pombal, nos seus mais diversos aspectos. É considerado ainda hoje o melhor livro que se publicou sobre o grande ministro de D. José, segundo depoimento de escritores como Pinheiro Chagas, Oliveira Martins e Teófilo Bragança.

A – E, finalmente, como escritor e humanista, o romance “Os Brahamanes” ficará para a eternidade não só como o primeiro romance escrito por um goês, mas como uma obra prodigiosa dum grande luminar da nossa terra.

A- O que levou Francisco Luís Gomes a escrever o romance “Brahamanes”? Qual foi o ideal que o norteou na execução dessa obra? Quais as dificuldades que experimentou ao bolar o livro?

B – Revelou o autor da dedicação do livro do “Gazeta de Portugal”, António Augusto Teixeira de Vasconcelos. Eis o que escreveu:

“O livro que ofereço a V. Excia é uma colecção de artigos escritos a lápis e em tudo semelhantes a estes que eu enviava da câmara dos deputados para a tipografia da “Gazeta”, e que V. Excia tinha depois o incómodo de iluminar. O romance, digo-o aqui em segredo, é apenas a forma, o disfarce com que pretendi introduzi-lo nas estantes e obter-lhe pousada mais larga do que é costume conceder aos jornais que aos primeiros raios de sol se derramam por toda a parte mas que em nenhum ficam de assento mais de vinte e quatro horas, quanta luz tinham se lhes apaga, quanto valor possuíam se lhes de deprecia: ei-los confundidos no dia seguinte com as varreduras, e colhendo só desprezos. Sobre esta razão acrescentava-se outra para mim de maior momento: é que o romance tem domínios seus, vastos e exclusivos, e o jornal não pode entrar neles, senão disfarçado, como nos missionários de cristianismo entravam algum dia nas terras dos pagãos. Se pelo mal imitado dos trajes eu não puder lograr o meu fim podem os guarda-barreiras rir-se da minha ousadia, mas peço-lhes que tenham bastante consciência e coração bastante para me respeitar a intenção: que em nobre empresa a que me queda é nobre”

B – E quanto ao ideal que o autor se propunha defender, escreveu ele o que se segue:

C - “É necessário que os princípios da liberdade, igualdade e fraternidade, eternos na sua duração sejam também universais na sua aplicação, que traduzidos em instituições, leis e costumes se estendam por toda a superfície do globo, e penetram até as suas últimas camadas. Só então a regeneração do homem será completa. Proclamando o aqui em voz alta e desejando-o com toda a energia do meu coração, não cuido que seja seduzido por uma miragem social. E que o fosse, mesmo assim eu não ganharia pouco, porque é essa uma das tais utopias benéficas e esplêndidas que despertam com grande poderio o nosso ânimo, que elevam os miseráveis acima dos seus misérias e os afortunados acima do seu egoísmo e transportam a uns e outros às alturas do Sinai, donde só se descortina a bandeira hasteada no cume do Calvário, que é a bandeira da humanidade.”

B – Quanto às dificuldades que encontrou no seu caminho, disse:

“Isto de ser romancista não é cousa fácil como de fora e à primeira vista parece...

Vou pois contar a V. Excia lisamente e com verdade o que me aconteceu ao urdir o enredo deste romance. Criava dois, três, quatro personagens, insuflava-lhes vida, vestia os o melhor que podia, ensinava-lhes gestos e maneiras, depois contemplava-os com inefável prazer e direi mesmo com certo orgulho. Pareciam-me tão belos! Nisto tocava ao almoço, e eu ia almoçar. Não me demorava nem meia hora porque tinha saudades da minha gente.

Voltava, mas Santo Deus, que mudança! Os personagens eram todos feios; os trajes assentavam-lhes como mascarada, e as suas falas sentia-as frias como o gelo. Indignado e cheio de furor, pegava no cutelo e zás, trás, zás, trás, matava tudo. Era horroroso o espectáculo que tinha então diante dos olhos: cabeças decepadas, braços amputados, dedos partidos, sangue, ruínas, vésperas sicilianas, enfim... E só depois que moderei os meus instintos homicidas e agrilhoei os meus braços, é que pude andar e terminar este romance...

A – Qual foi o acolhimento que o mundo literário deu ao romance “Os Brahamanes”? Que disseram dele os escritores portugueses do tempo?

B – Quando o romance saiu, foi acolhido com ovações por escritores da primeira plana.

O grande escritor António Feliciano de Castilho disse dele o seguinte:

D – “Elegância de estilo, vernaculidade de frase, orginalidade de pensamento, facilidade de forma e um dizer sempre simpático e fluente – são qualidades que distinguem esta mimosa produção e que fazem futurar o seu autor uma das mais fulgurantes estrelas da nossa plêiade literária”

B – Pinheiro Chagas, outro escritor de renome, referiu-se desta maneira ao romance do nosso conterrâneo:

D - “O romance não só é um livro bem escrito, mas também é interessante romance. As peripécias complicam-se, o enredo prende a atenção e o estilo fluente, a palavra imaginosa, mostram que o autor soube conservar a virgindade de sua fantasia no meio das lutas parlamentares e de aridez das lucubrações económicas.

As paragens são pintados com mão de mestre. Sente-se que o sr. Francisco Luís Gomes, no meio de civilização europeia, vota sempre e os olhos com profunda saudade para as florestas flagrantíssimas e os ridentíssimos quadros da sua terra natal.

O romance do sr. Gomes é uma soberba estrela e com esse livro desde já o talentoso deputado conquistou um distinto lugar na nata dos nossos romancistas.

B – ‘Le Courier de Lisbonne’ que se propunha tornar conhecidas no estrangeiro as obras primas da literatura portuguesa, traduziu para francês o apreciado romance publicando-o em folheto. Foi posteriormente traduzido do português e publicado por um jornal londino.

Música

A – De que trata, afinal, este tão falado romance? É interessante o seu entrecho? Atraente a narrativa? Vivas as descrições?

B – O Dr Agostinho Fortes apreciou0o abrindo um discurso que fez em Lisboa em 1929 por ocasião do centenário de nascimento de Francisco Luís Gomes.

D – ‘Na realidade não sei que mais admirar em ‘Os Brahmanes’, se a riqueza e o apropriado da linguagem, se o bem delineado e conduzido da acção, se a beleza e magnanimidade dos concertos, se a firme justeza dos caracteres, se a grandiosidade do intuito? Há em os Brahamanes o reflexo da magnificência da Índia, dessa Índia de sonho, dessa Índia do além, dessa Índia tão criadora literariamente que nos deu as duas grandes epopeias Ramaiana e Mahabharata dessa Índia de Shacuntalá, de Sivá o tipo mais idealmente belo e mais inexcedívelmente moral. A acção de “Os Brahamanes” é simples mas grandiosa perpassando nela o tumultuar das paixões e ódios das raças que outros vão há que só lhes assemelhe em intensidade e rancor e o desdém olimpicamente altaneiro das castas superiores dum brahamane por um sudra ou mata ainda por um pária cuja só única vista macula, a alva pureza dimanada do Brahamane. Mas ó consolo das almas bem-formadas, todo este ódio todo este desdém se esboroa e derrete à vez suavíssima da virtude; bem como o rancor que parecia insaciável de Magnod se liquifez à luz quente da grandeza de ânimo de Fr. Francisco, o missionário exemplar que edifica converte.

B – É certo que o romance perdeu hoja a sua actualidade. A Índia de 1969 é o pólo oposto da Índia de 1869. A Índia dum século atrás era um pais decadente, prostrado, crucificado na cruz infame da dominação estrangeira. Mas mesmo então os seus fakirs vaticinavam: “A pátria de Manu, depois de correr como uma moeda às mãos de Alexandre, Tamerlão, Albuquerque, Dupleix e Clive, deve voltar aos seus antigos senhores.”

Levou o largo espaço dum século para se provar verdadeiro o vaticínio. A revolta de 1859 – primeira guerra de independência – foi sufocada pelos ingleses. Referendo-se a ela, uns escassos nove anos depôs, escreveu Francisco Luís Gomes no capitulo 16o do romance:

C – “Os homens imparciais, que fazem questão da liberdade e não das raças, querem a Índia para a Índia, e detestam todos os déspotas, chamem eles nababos ou Cloves. Deve merecer as simpatias da Europa o país que formulou a democracia no jogo de xadrez – o país que formulou a democracia no jogo de xadrez, o pais que cantou com a voz dos anjos as sublimidades do céu e com a voz do rouxinol todas as belezas da terra, no seu poema Mahabharata, verdadeiro Himalaia da literatura.

B – As soluções que Francisco Luís Gomes, na melhor das intenções, propugnara para o renascimento da sua pátria, não se provaram de todo necessárias. A religião cristã e a instrução desempenharam, sim, um papel no ressurgimento do nosso povo. Mas duma forma geral e básica foi o génio imorredouro da nossa cultura ancestral e as potencialidades latentes de nossa raça que se afirmaram mais uma vez. Os séculos 19o e 20o viram gigantes de pensamento e acção como Keihub Chandra Roy, Ramakrisha e Vivekananda, Dedebai Nacraj, e Lokmanya Tilak, Rabrindranath Tagore and Mahatma Gandhi. Subhas Chandra Bose e Jawaharlal Nehru viram estes gigantes surgirem do seu solo e levantarem o país do torpor em que se encontrava. A Índia está hoje livre, e marcha triunfante na senda do progresso.

MÚSICA

C – Escassos três anos haviam decorrido sobre a publicação de “Os Brahamanes” e o seu autor que, como que pressentindo a morte, ia trabalhando sem descanso, sentiu-se exausto e combalido. Os médicos esgotaram todos os seus recursos.

Lembra-se então dos ventos da pátria: “é meu inimigo este doce clima da Europa”, diz, e embarca para a Índia. Mas a Parca cruel atinge-o em pleno Mar Mediterrâneo. A noticia é recebida com sensação e dor nos continentes.

Tomás Ribeiro cantou-lhe assim a glória:

Morres, fugir do sol! Furtar-se à glória
Quem tão mimoso foi dos seus afagos
Quem no abismo sem fim dos sonhos vagos
Passara a vida, a transbordar de luz.

José Rangel - Lactário (1960)

“Deixei vir a mim as criancinhas”
Dorida soluça a Vida:
Almas níveas,
Boquinhas mimosas,
Pálidas de sofrer
À mingua de leite;
Mães chorando
De pungente amargura,
Luto nas almas,
Desespero...

Luz bruxoleante
Ilumina o negrume;
Nasce a esperança
Em corações que sofrem.

Jovens em flor,
Sedentos do Ideal,
Filhos da Ciência
Que arranca a Vida
Dos braços da Morte,
Almas abertas
À dor dos que gemem,
Lutam e criam.

Apoia a humanidade
A cruzada bendita.

Grão de mostarda
Lançado à terra,
Germina e floresce
Em árvore frondosa
Que alimenta e achonchega.

Sorriem as crianças,
Alegram-se as mães,
Ilumina-se o lar,
Eleva-se o mundo...

Palpitam corações
De eterna gratidão.

Jovens altivos,
Ardentes, sonhadores...
Vibrando de alegria,
Estuando de amor.
Vivem uma das horas
Mais belas
Da Vida.

RV Pandit - O Meu Lar (1969)

O fogo é para fogão
Assim sou para a minha casa

Hoje.. aqui
Amanhã acolá
Depois de amanhã?
Deus sabe onde!

Em toda a parte
Onde as cinco essências
Da minha vitalidade
Florescem...

Lá...
Seja dentro do quatro paredes
Seja numa cabana de olas
É o meu lar...

No momento
Em que o pavão da minha mente
Poisa no ramo, no telhado
Onde canta, dança e ri...
A árvore, a canção, a toada
É o meu lar.

Entre o céu e a terra
É o meu lar.

Onde eu estou
Rindo, chorando, iludido
É o meu lar.

Deitei-me fora
É um fogão sem fogo.

Laxmanrao Sardessai - O Mistério Aclara-se (1966)

O mistério aclara-se
E ai vejo definido o meu ideal,
No céu, no mar e na terra
Vejo a mesma mão,
Invisível e misteriosa,
Modelar o destino da humanidade.
No azul do oceano
No verde da terra
A mesma graça vejo
Estender-se na sua simplicidade
E o mistério aclara-se,
E aclara-se o meu espírito,
Confuso perante a difusão
De cores e linhas,
De formas e matéria
E suas infinitas intrincâncias.
Evapora-se a ilusão
E desponta no horizonte,
Vasto e claro,
O sol uno e brilhante,
A dirigir os meus passos
Para a divina realidade!

Nazareno - A Aguadeira (1954)

Ao fundo da sala, propositadamente escolho a cadeira mais apta a proporcionar uma indolência a que lanço reconfortante e lenço o corpo e o espírito na corrente mole que o ar do Café engrossa.

A telefonia conta, em segredos de música, a espalharem mais calor nos nervos, episódios de beleza imaginada – lances arrancados a uma superficialidade brutal que não obriga a pensar.

A esta hora – a tarde nasceu há pouco – a sala deserta intensifica o desejo duma fuga à realidade – cobardia assinalada por um mal estar que, a espaços, me aperta a respiração.

Um quadro de todos os dias que, hoje, repentinamente e sem aviso, resolveu mudar.

Ela apareceu no vazio da porta que dá entrada ao recinto; apareceu e escapou-se, logo, indiferente ao silêncio e à música. Os dois “salões” equilibrados no corpo escanzelado – jogo de braços e quadris – voltou a passar naquele intervalo de paredes onde uma escada se projecta, superior ao esforço da aguadeira, talvez a rir-se dos movimentos caricatos que a subida lhe atira às pernas.

Aquela figura tem séculos de poesia romântica a partirem-lhe os pobres ombros que se aproximam irresistivelmente a quererem fechar o peito que já mal pode gritar. É uma figura de adorno na visão febril dos poetas olheirentos, na sensibilidade esponjosa de lírico impenitentes que andam a medir as noites pelo número de estrelas e a conversar com as fontes que, às vezes, nem água têm o inegável mérito de fornecer material para um soneto recheado de comparações luminosas – para um autêntico soneto!

A mulher continua a passar, a vergastar-me os olhos com a sujidade do sari, a recalcar–me os últimos desejos de indiferença – a impor-me conclusões.

Vergo-me ao peso da sua presença, do cabelo revolto, do rictus de fatalidade que se agarrou àquele fase onde a idade intruja, onde há a marca rebaixada de milhares de horas iguais, na luta a na resig-

(Segue na quarta página)

nação.

Olhou-me – um olhar comprometido – e eu pus na minha expressão todos os efeitos das verdades que se arozam na minha consciência de homem da rua. Fitei-a num grito de compreensão que nunca poderá servir de tema aos poetas olheirentos que andam a medir a noite pelo número de estrelas. Naquele momento, parece-me que cheguei a ser irmão da aguadeira. Talvez, por isso, deitei-me a imaginar os dias que a vida lhe roubou, em negaças, em troços, em desprezo.

De certo, foi bela. De certo, aquele corpo amassado de trabalhos desejou o amor com a ânsia que dá a contemplação da beleza própria. De certo, teve sonhos e ouviu palavras inspiradoras de insónias. Momentos houve em que o seu destino se comprimia nas dimensões dum punho. Tão fácil tudo, tão realizáveis as aspirações dessa mulherzinha de porte virgem e flores na trança. Foram as negaças da vida.

Depois, os primeiros passos na criação dum presente que nunca deu margem a alimentar um futuro. A casa estranha, o homem, a obediência e os filhos. E tudo o mais... numa precipitação de reveses, num conjunto frio que foi anulando o resto de calor que o sangue de dúzia e meia de primaveras ainda aguentava. Foi a vida a troçar.

Hoje, autómata no sofrimento, já nem analisa os factos que mataram os mais queridos desejos, já nem lhe importa a cor do sol que vai nascer. Os músculos empurram-na como se fosse embrulho sujo e inútil que pode cair na primeira sarjeta. Ela é capaz de admitir que nas dobras da sua existência possa andar a ironia da quadratura do círculo.

Torna-se tão igual, nos gestos e no querer, ao cachorro dedicado a coxear das últimas pancadas, que as gentes confundem a falta de posses com o vício do infortúnio. E esmagam-na, cada vez mais. Chegam a dizer que estão a medir toda a extensão da sua cobardia e vão pisando mais forte. É a vida a desprezá-la...

A vida! Feita de milhões de princípios nascidos, mais ou menos, ia estupidez fria dos ambientes humanos que a conveniência gerou. Um montão de hábitos cómodos, riquíssimos de contradições palpitantes que nunca andam nas razões dos sonetos recheados de comparações luminosas.

Visto o problema assim, fica-me a dúvida se a Vida, a verdadeira, a única, não está mais na visão clara e interessada, generosa e irmã, de tudo o que a aguadeira não chegou a ser, que na aceitação distante – e, quando próxima, egoísta, até sádica – daquilo que os homens quiserem que ela fosse.

Ipsilon - A Sorte de uma Batcarina (1963)

Chamava-se D. Isménia e era viúva dum médico muito recorrido e popular, a quem, por isso mesmo talvez, ninguém lhe pagava as visitas. As suas receitas limitavam-se apenas a poções que, com grande resultado, ministrava aos seus doentes, reservando para si o mínimo lucro. Era poupado e chegou a ter umas economias que lhe permitiriam reparar o casebre em que viviam, benfeitorizar o seu minúsculo gorbat e uma várzeazinha.

Quando o marido faleceu os recursos financeiros de D. Isménia limitavam-se apenas às rendas do palmar, duma várzea e de uma dezena de acções de Comunidade.

Como o pardieiro em que vivia, ficava situado num lugar isolado e ela era muito medrosa, teve que sustentar um criado, não porque precisasse dele para qualquer serviço, mas mais para ter sua companhia, pois ninguém a visitava Senão de raro em raro.

A sua alimentação reduzia-se ao arroz e carril e, no dia de festa do orago, trazia um pedacito de carne de porco com o que se banquetavam ela, que era uma velhinha, e o criado que era um latagão.

Apesar de tudo o seu palmarzito era assaltado por gatunos que nem lhe deixavam metade do seu produto; quanto às jacas, não lhe deixavam nem uma e um pé de malcurada de grande estimação da velhinha era alvo das pedradas da garotada, que, quando enxotada, lhe correspondia zombeteiramente arremedando-lhe a voz e o gesto.

A várzea estava arrendada a 7 candis de bate, com o que ficavam satisfeitas as necessidade dela, do criado, de umas 5 galinhas e um porquito, sobejando-lhe ainda o necessário para um pouco de canja e um punhado de arroz a dois pobres que lhe vinham à porta todas as sextas-feiras da semana. Vivia assim a D. Isménia numa miséria feliz.

A certa altura, o criado que se chama Daniel, declarando que estava ao serviço dela há um ano, exigiu aumento de salário, alegando que o que ganhava não lhe permitia usar fatos limpos, aparar o cabelo mentalmente, fumar uns cigarros decentes, etc.

A D. Isménia que não encontrava outro que o subsituísse e também porque tinha ganho uma certa afeição pelo rapaz, condescendeu em lhe elevar o vencimento.

Sucedeu que o Daniel Fosse gostando duma rapariga que, por sua vez, era cortejada por um outro, derrubador, de nome Xavier. Claro está que os dois, quando se encontrassem, ferviam em mútuas raivas. Como Daniel tivesse percebido ser o Xavier que estava roubando os cocos da patroa e querendo desforrar-se, foi no encalço do gatuno e, como era forte, segurou-o e com os cinco cocos que tinha colhido, levou-o ao regedor.

Este, com uma rota em que declarava apanhado em flagrante, remeteu-o por um cabo da Policia ao Mamlatdar, onde o gatuno confessou o furto, declarou que o tinha practicado, obrigado pela fome. Condoído com esta narrativa que o homem soube fazer como emérito comediante, o mamlatdar mandou-o em paz. De volta, Xavier que veio de táxi, queimou abundante foguetório à porta de D. Isménia.

Quando foi da colheita da sua várzea, em vez de 7 candis de bate que devia receber, o arrendatário convidou-a a assistir à colheita e deu-lhe apenas 2 candis e 12 curós que representava a sexta parte da produção e mal chegavam para a alimentação do criado.

Por outro lado, as Comunidades onde tinha acções com a renda dos quaid, acrescidas com as receitas do palmar, pretendia pagar o salário do criado, teve o desgosto de saber que estavam deficitárias e não davam renda alguma. Para se manter, teve de recorrer ao expediente de dúvidas.

Por acaso, o marido de D. Isménia tratara, numa doença grave, um pobretão, que,

(segue na 4a. Página)

em testemunho da sua infinita gratidão, lhe pediu para ser padrinho da sua criança, primogénita que nasceria dali a meses, após 10 anos de casado.

Passados 15 anos, o padrinho abanara ao afilhado, já órfão do pai, passagem para o Golfo Pérsico, donde este voltara rico. Foi justamente a este que Dona Isménia recorreu num dos seus momentos aflitivos. O afilhado do marido concordou em lhe dar o empréstimo solicitado, alegando ter mourejado 25 anos em terras inóspitas, mediante o juro de 10% ao ano e hipoteca geral tde tudo quanto ela possuísse, sem outras formalidades.

O contrato foi por um escrito legalizado pela maneira actual, sem intervenção notarial.

Como o dinheiro assim obtido, D. Isménia pôde satisfazer os vencimentos atrasados do criados e teve de se alimentar com chá e uma fatia do pão, com o que, dentro em pouco, a sua saúde se tornou precária.

Certo dia, como o criado tivesse notado que D. Isménia não saíra ainda do quarto a horas em que constumava ir para a Missa, chamou-a discretamente da porta do seu quarto e, como ela não desse acordo, entrou e viu que continuava estendida no seu canapé, sem sinal de vida.

Correu apressadamente à casa do médico que verificou o cadáver e deu como causa da morte a inanição; pois a velhinha não tivera nem pão nem chá nas últimas 24 horas.

Monday, 29 October 2012

Telo de Mascarenhas - O Tesouro Oculto (1975)

Findo o curso do Liceu, nas férias grandes, Dona Leocádia foi com o filho visitar a família de Luís Bernardo, parentes afastados que Carlos Manuel não conhecia ainda. E ao ver Rosália, de rosto oval de madona, dum moreno doirado, emoldurado de bandós negros, olhos vivos e expressivos, airosa e grácil, exuberante, sorridente e vibrante como uma corda tensa de violino, um doce enleio se apoderou do seu coração. Sentiu-se diante dela confuso e acanhado como um colegial. E os olhares furtivos de Carlos Manuel foram mais expressivos do que o mais belo poema lírico.

Quando estudante do Liceu Carlos Manuel fora um romântico impenitente; mas os primeiros rebates sentimentais da sua adolescência não tinham deixado vestígios nem causado danos ao seu coração.

Naquele primeiro encontro ele manteve-se distante e discreto sem deixar transparente o sentimento que lhe agitava a alma. Mas ela que, com o seu sexto sentido de mulher, adivinhara ter causado nele certo alvoroço, não se deu por achada e tratou-o com calma deferência e simulada indiferença, como se trata um parente de cerimónia.

Havia muito que as duas famílias não se visitavam. Mas agora que Carlos Manuel estava quase um homem, com dezoito anos feitos, precisava de conviver, de conhecer a parentela, de sair da concha em que sempre tinha vivido, e impunha-se à Dona Leocádia o dever de o apresentar aos parentes, e não fazer dele um ser esquivo e insociável como um animal bravio.

“Que curso vais fazer, Carlos Manuel? Com certeza não vais ficar só com o Liceu”, perguntou Dona Ubélia.

“Nesta terra onde não há muito por onde escolher, minha tia, só se pode ser Médico-Cirurgião ou então Adv., quero dizer, advogado provisionário, como toda a gente. Eu optei pela medicina, que para chicana não tenho jeito”, disse Carlos Manuel.

“É uma bela profissão para minorar o mal alheio”, observou Dona Ubélia.

“Eu estou a precisar dum médico na parentela para me curar dos meus achaques”, gracejou Luís Bernardo.

Rosália descera ao jardim, como era seu costume todas as manhãs, para colher flores de jasmim que, como minúsculos flocos de neve, salpicavam as moitas de jasmineiros junto do muro. Enfiava-as em grinalda com que enfeitava o cabelo apartado ao meio e apanhado atrás em carapito frouxo descaído na nuca, que lhe dava um ar langoroso e sonhador das heroínas dos contos de amor.

Carlos Manuel lhe dissera quando, no dia anterior, ela lhe aparecera com aquele penteado gracioso, circundado da enfiada de jasmina, como uma aureola: “Fica-lhe admiravelmente, bem esse penteado, Rosália. Por momentos tive a impressão de que eras uma figura animada dos frescos de Ajanta, caminhando para mim”.

Rosália sorrira e agradecera-lha, lisonjeada o galanteio.

Carlos Manuel desceu atrás dela ao jardim e disse-lhe: “Shakuntalá, no ermitério da floresta, devia ser como Rosália, amiga das flores e da natureza. E foi breve o seu idílio com o rei Dachanta. Também para mim chegou o momento de partir. O rei dera à filha adoptiva do eremita, como recordação, um anel com o seu nome gravado. E o quê me vais dar, Rosália, para eu me lembrar de si?”, perguntou-lhe Carlos Manuel.

“Nada mais lhe posso dar que valha tanto para mim como esta rosa, símbolo do meu nome e da minha afeição por si. Mas as rosas tem a vida efémera duma manhã e a sua lembrança morrerá com ela, certamente, e se esquecera de mim”, disse Rosália, pesarosa.

“Creia que, longe ou perto a sua imagem viverá sempre no meu coração e no meu pensamento”, asseverou Carlos Manuel.

“Com tempo veremos”, disse Rosália, com lágrimas na voz.

Dona Leocádia assomou à varanda e lembrou ao filho que eram horas de se porem a caminho. E a iminência da separação veio angustiar ainda mais os dois corações e interromper o breve idílio junto do jasmineiro.

Foi dolorosa a separação para os dois corações que mal preludiavam a eterna canção de amor. E Rosália sentiu pela primeira vez na sua vida, uma imensa dor no coração como se um punhal de indizível saudade o tivesse trespassado, traiçoeiramente. Perdera a habitual alegria de viver e andava triste e suspirosa, alheada e distante, gemendo em solilóquio: “Quando viras tu, quando?”.

A mãe perguntou-lhe um dia: “O que tens tu, menina, que andas a suspirar pelos cantos, como uma viúva?”.

“Não tenho nada, mãe. Então, o que é que eu havia de ter?”.

“Parece que ficaste com pena de não teres ido com a prima Leocádia”, disse Isabel, a irmã mais nova, em tom malicioso, olhando-a de soslaio, enquanto bordavam.

“Cala-te, minha pateta. Tu, que pareces que não partes um prato, sais-te com cada uma!” repreendeu Rosália com um sorriso triste.

Telo de Mascarenhas - O Tesouro Oculto

Bensaulim é uma aldeia de beira-mar, acolhedora e remansosa, aninhada sob as frondes das palmeiras, que o vento da tarde faz fremir como harpas encantadas.

As figueiras da Índia de porte majestoso e ramaria em umbela, são como naves silenciosas de catedrais, dando sombra e frescura à beira dos caminhos. Antigamente, aquelas árvores seculares, que a tradição santificara eram as guardiãs da aldeia. Sob a sua copa frondosa reuniam-se os aldeões, à tarde, finda a labuta do dia e, sentados em volta da peanha circular de pedra, assistiam à representações cénicas dos episódios heróicos e líricos das grandes epopeias, entoavam hinos a Hari, ou ouviam narrar os contos e as fábulas do “Panchachantra”. Agora, porém, perdido o seu carácter de ‘ficus religiosa’ e de centro social da aldeia, aquelas árvores acoitam na sua ramaria bandos de gralhas bulhentas e crocitantes e nos ocos dos seus troncos cobras de capelo oscilante e coruscante, com o tiara incrustada de pedrarias.

Em volta, várzeas e valados, cômoros e lagoas floridas de nenúfares, dão àquela aldeia o aspecto bucólico duma écloga pastoril. Para além das várzeas e palmares estendem-se as dunas e a praia de areias fulvas onde o mar espraia as suas ondas soluçantes, franjadas de alva espuma rendilhada.

Sobranceiro a uma grande lagoa fica o velho solar, bastante danificado pelo tempo, de Luís Bernardo, representante duma das mais antigas famílias daquela aldeia. Como quase todas as casas dos grandes propriedades rurais, a casa de Luís Bernardo havia decaído, devido não só ao grande estadão de vida que os seus antepassados levaram para honrar a tradição, com banquetes e bailes de espavento, mas também porque as suas terras, em parte hipotecadas ou alienadas, e cultivadas com métodos rotineiros, através de gerações, haviam empobrecido.

Com a sua estatura avantajada, olhar inteligente e nariz proeminente, Luís Bernardo, se em vez do seu democrático boné, bigode e mosca, arvorasse turbante rutilante de seda e pedrarias e barba frondosa, seria a imagem viva de guerreiro rajput das pinturas murais dos palácios principescos de Udeipur.

Luís Bernando tinha o ar afidalgado, maneiras requintadas e hábitos hospitaleiros. E não obstante a sua idade avançada, possuía espírito jovem e encarava a vida com optimismo e bom humor.

D. Ubélia, sua esposa e companheira de muitos anos, dera-lhe um filho e duas filhas. O rapaz, José Manoel, feita a instrução primária e aprendios os rudimentos de solfejo e violino, andara a estudar inglês com o fito de ir para África ganhar a vida. A filha mais velha, Rosália, era uma rapariga azougada e espirituosa, de olhos negros e sorriso gracioso. A outra, Isabel, sorridente e esquiva, parecia viver desprendida do mundo, como se tivesse feito o voto de renúncia e sacríficio. A mãe adestrara-se nos trabalhos de agulha e lavores, e elas com as suas mãos de prata, bordando e tecendo, supriam o magro orçamento doméstico.

A preocupação constante de Luís Bernardo era desencantar o tesouro oculto da família que, segundo a tradição, devia estar enterrado no quintal ou nos baixos da casa, como era uso nos tempos distantes de frequentes incursões das hordas de Bijapur e outros invasores, empenhados no saque e rapina. Com aquele tesouro dos seus antepassados contava Luís Bernardo restaurar o seu velho solar escalavrado e melhorar as condições económicas da família. E obcecado por aquela ideia fazia pesquisas diárias, dirigindo os trabalhos de escavação, revolvendo o quintal e os baixos da casa. Andava naquela faina havia anos, na ânsia de ver surgir à luz do sol o decantado tesouro. Tinham sido, porém, até então, baldados todos os seus esforços. Estava, por isso, pesaroso e decepcionado.

Uma tarde, findas as pesquisas do dia, dirigiu-se Luís Bernardo, extenuado e descoroçoado, para a sala de costura onde D. Ubélia e as filhas estavam atarefadas a bordar uma colcha a matiz, e, atirando-se para cima duma cadeira de espreguiçar, desafabou: ‘E não há meio de dar com ele. Maldita sorte a minha”.

“Com quê, meu pai?”, inquiriu Rosália, simulando curiosidade, embora ela soubesse muito bem a que queria referir.

“Ora, com que havia de ser?! Com aquilo que eu procuro. Com o tesouro da nossa família”, disse ele mal humorado.

“O pai espera ainda desencatá-lo?”, tornou ela com cepticismo.

“Porquê não, menina? A perseverança tudo alcança” disse Luís Bernardo com teimosia.

O pai já revolveu quase tudo. Por esse andar é bem capaz de deitar a casa abaixo. E se o tesouro não passa duma lenda, meu pai?” tornou ela a perguntar.

“Impossível, menina!”, disse ele com energia, quase agastado. “O teu avô sempre falava nele. Mas, grande politicão como era, mais interessado com as lutas eleiçoeiras e festanças do que com o bem estar da família, nunca se importou com isso. Dizia ele que tinha achado na livraria um pergaminho manuscrito entre as folhas dum velho códice, especificando as preciosidades que o tesouro continha: ricos “mohurs” de oiro do tempo dos mongóis, jóias e aljôfares, cintas e braceletes incrustadas de pedrarias. Uma verdadeira fortuna, capaz de tentar Genghis Khan”.

“Não teria Rauji Rane, aquando da incursão à nossa aldeia, desenterrado e levado o tesouro? Diz o povo que Rauji Rane levou um grande despojo da nossa aldeia”, observou Rosália com uma pontinha de malícia.

“Rauji Rane, ainda aparentado à nossa família, foi grande amigo do teu avô”, disse Luís Bernardo, com orgulho. “Ele foi um guerreiro que lutou para reivindicar os justos direitos do nosso povo. Não era um vulgar bandoleiro, e incapaz de uma acção dessas. Foram os outros, com certeza, que roubaram e saquearam à sombra do seu nome”.

“Deus o ajude a achá-lo, pai. Já é tempo de sairmos desta mediania”, disse, por fim, Rosália, conformada.

“Mesmo na nossa mediania temos sido felizes. Para que cobiçar grandes riquezas? Até Deus podia levar a mal”, observou D. Ubélia, com a sua resignação cristã.

“Ora, cantigas, mulher; Deus importa-se lá com as nossas necessidades?” volveu Luís Bernardo.

“Não sejas herege, homem, nem ambicioso”, censurou D. Ubélia.

“Não sou herege nem ambicioso, criatura de Deus! Apenas desejo reaver o que é nosso. E aquilo que foi dos nossos antepassados de direito nos pertence. Nem Deus pode levar a mal que assim seja”, replicou ele mal-humorado.

“E não vês que isso te tira o sossego do espírito?”, disse D. Ubélia para o aplacar. “Pois, sim! O maior desassossego é uma pessoa andar a tinir. E nem o céu se ganha sem trabalhos e canseiras”, disse Luís Bernardo, como que se quisesse pôr termo ao assunto.

Levantou-se e saiu resmugando, arrastando os chinelos para se ir refastelar no balcão e fumar, descansado, o seu cigarro.

Nisto, viu vir subindo os

(segue na 5a pagina)

degraus do balcão, com ares misteriosos e modos mesureiros, Manoel João, o casamenteiro. O ofício de casamenteiro é muito antigo nas aldeias de Goa, tão antigo como a própria instituição do casamento. Não há aldeia que não tenha o seu casamenteiro que, incumbido pelos pais com filhas casadoiras, leva a proposta à algum jovem, herdeiro rico, ou lançado na vida como funcionário público, por mais modesta que seja a sua categoria, porque um emprego público é aspiração máxima numa terra sem grandes horizontes nem perspectivas, como é a nossa. Ou então são os pais de filhos que voltam da África ou de Bombaim, com algum pecúlio, e os querem casar nas famílias de alto nível social, mas decaídas de fortuna.

Manoel João era o casamenteiro da aldeia. Pequeno proprietário, lançara mão daquela missão benfazeja que lhe dava o direito a uma percentagem sobre o dote, e comia a dois carrilhos – da família da noiva e do noivo.

Luís Bernardo, pressentindo ao que ele vinha, acolheu-o com o seu hábil ar galhofeiro: “Então, Manoel João, que bons ares o trazem a esta sua casa!”

Há muito tencionava fazer uma visita ao batcará, para saber da sua saúde”, disse Manoel João com a sua manha habitual.

“Bom, bom, não há razão para sustos. Sente-se, Manoel João, e conte como lhe corre a vida”.

“Se o batcará dá licença”, disse ele e sentou-se na extremidade de um banco. “A vida vai mal, batcará, muito mal. A minha profissão está a dar pouco. Uma crise pavorosa. Cada vez recorrem menos aos meus bons ofícios”.

“Então, que quer Manoel João? O preceito “crescei e multiplicai-vos” não se coaduna com estes tempos de vacas magras. No entanto, não me consta que alguém tenha feito voto de celibato”, disse Luís Bernardo.

“O mundo está perdido, batcará”, tornou Manoel João. “A gente nova faz pouco caso dos nossos bons e moralizadores costumes. Pegam em namoriscar e as duas por três estão casados sem se importarem com o futuro, quer dizer, com o dote nem com os conselhos dos pais”

“Mas isso é óptimo, Manoel João. Porque, afinal, quem se casa são os filhos e não os pais”.

“Vejo que está demasiadamente moralizador e pessimista, Manoel João. Então, assim, pela hora da morte, os seus bons ofícios de casamenteiro?”

“É como diz, batcará. O meu ofício não dá para mandar cantar um cego”.

“O meu amigo já fez uma razoável fortuna. Podia agora descansar e gozar o que ganhou casando os outros”.

“São mais vozes de que as nozes, batcará. Eu ando nisto devido a extrema necessidade que tenho de ganhar a vida. A propósito. Trago a proposta de filho de Manoel da Anastácia que, como sabe, voltou há pouco da África. É muito bom trabalhador, e deve dar um bom marido”.

O filho de Manoel da Anastácia que abalou há anos, quase descalço, para África? E como chegou ele a fazer fortuna, homem?”, perguntou Luís Bernardo.

“A África, como o batcará sabe, é um El-Dorado para quem tenha expediente e habildade. Dizem que o rapaz andou no mato a vender aos pretos riscado pelo preço do brocado e fez fortuna.”

“Magnifico, Manoel João! Esta proposta pode fazer a sua fortuna. Não o poupe. Ele que andou a esfolar o negro, pode enchê-lo de oiro.”

“Eu tinha pensado numa dessas filhas do batecará. É um belo partido. E a sua filha seria tratada como uma rainha.”

“Deus me livre falar-lhe nisso. Eu conheço bem as minhas filhas. O oiro nunca as tentou. Veio bater a má porta, Manoel João.”

“Para falar verdade batecará realmente a diferença de famílias é um grade empecilho. Contudo, há precedente. Como sabe, o filho de Gertrudes piladeira, que tem grandes estabelecimentos em Mombaça, onde ele é vice-consul de Portugal, casou com a filha do batcará da Casa Grande”.

“Cada um sabe as linhas com que se cose, meu amigo”, disse Luís Bernardo, causticante.

“O batcará não leve a mal o meu atrevimento. Pensei que talvez chegássemos a um entendimento e o casamento se fizesse. Visto isso, retiro-me, se me dá licença”.

“Pois bem, Manoel João. Estimei vê-lo”, disse Luís Bernardo, despedindo-o.

Manoel João levantou-se, limpou ao lenço encanado as bagas de suor que lhe perlava o rosto e, vendo goradas as suas diligências, foi descendo os degraus do balcão, arreliado com a sua vida, cabisbaixo e vexado, como um cão batido, murmurando entre dentes: “Pobres mas soberbos”.

Ao jantar, Luís Bernardo deu a novidade à família: “Sabem quem esteve cá esta tarde?”

“Quem foi”, perguntou D. Ubélia.

“Manoel João”, disse ele.

“Manoel João, casamenteiro? E o que é que ele queria pois? Quis saber Rosália, ardendo de curiosidade.”

“Vinha com a proposta do filho de Manoel da Anastácia para uma de vocês”.

“Do filho de Manoel de Anastácia que chegou há dias da África?” perguntou D. Ubélia.

“Esse mesmo. Mas eu tirei-lhe as ilusões”, disse Luís Bernardo, autoritárian.

“Deus me livre de casar com o filho de Manoel de Anastácia; nem que ele fosse pintado a oiro. Prefiro ficar solteira toda a vida”, foi o comentário tempestuoso de Rosália.

“E tu, Isabel, o que dizes?”, perguntou Luís Bernardo à filha mais nova, para a arreliar.

“Eu não quero casar. Quero ficar a fazer companhia aos meus pais”, disse Isabel, corando.

“Nesse caso terei que arranjar um ghor-zaoim, um genro estabelecido”, disse Luís Bernardo, divertido, o que a fez arreliar ainda mais.

“Não digo com o filho de Manoel de Anastácia; mas porque não hás-de casar, Isabel? Queres ficar para tia?”, disse Rosália com o seu ar chistoso, e acrescentou: “Já estou a ver a nossa Isabel de pano-baju como as tias clássicas das famílias antigas, devotas e beatas”.

E Isabel, ante a observação da irmã, conservou-se calada e cabisbaixa, e ficou a remoer o seu amuo e a sua timidez.

Telo de Mascarenhas - O Emigrante (1975)

Luís Bernardo era regedor de aldeia. Com o seu saber e experiência de vida, administrava Justiça nos limitados domínios da sua jurisdição, com raro tacto e rectidão. Era, por isso, respeitado e acatado; e os seus concelhos tinham força da lei para a pobre gente da aldeia.

Todas as manhãs, de fato branco, o casaco abotoado até ao queixo, o boné encafuado na cabeça e a bengala que era o seu bastão de mando, dava o seu passeio habitual para se inteirar da vida do burgo, ouvir as queixas e reclamações e dar-lhes pronta solução.

A vida de regedor da aldeia não é um mar de rosas. Contudo, a par de trabalhos, arrelias e canseiras, tem também as suas compensações. Todo o africanista ou bombaísta que regresse após longos anos de labuta no Continente Negro, em Bombaim, ou como embarcadiço nos grandes transatlânticos, é ao regedor-batcará que faz a sua primeira visita com alguma lembrança, e pinta-lhe com cores vivas e até com cores por sua conta e risco, as coisas maravilhosas que viu na Grande Índia e na estranja, no que, não raro, leva a palma ao famoso Marco Pólo.

João António era filho de gente modesta. Inteligente e empreendedor, com o seu sonho de transpor mares e ver terras novas, estudara a algumas classes de inglês na escola de Jackson e fora para Bombaim para se empregar a bordo. E era agora dispenseiro dum dos barcos da P&O, que faz carreiras para Europa.

“Pode crer, batcará”, disse João António a Luís Bernando, “aquilo é que são terras ricas e progressivas. Grandes cidades, grandes e florescentes centros industriais.. E nós aqui a foassar nestas aldeias atrasadas em tudo.”

“O que é que tu queres, João António? Se todos vocês, emigrantes, estivessem de acordo podíamos fazer grandes melhoramentos na nossa aldeia”, disse Luís Bernando.

“E sabe, batcará, como ‘elas’ lá fora, identificam os goeses?”

“Hum, - como é?”

“Eu conto. Uma noite, em Marseilles, fui, com mais dois companheiros meus, visitar uma daquelas casas de luxo das professional beauties, por mera curiosidade, para ver como aquilo era por dentro e se correspondia à realidade aquilo que me tinham contado. Veio sentar-se ao meu lado uma rapariga muito loura, muito pintada, e perguntou-me: “Êtes-vous Goannais, mon chéri?”. “Oui, mademoiselle”, respondi-lhe.

Vai ela, então, sem mais cerimónias, mete a mão pelo peitilho da minha camisa para ver se eu trazia ao pescoço a corrente de oiro com a cruz.

“Com que, então, os goeses lá fora são conhecidos por trazerem ao pescoço a corrente de oiro com a cruz?”, disse Luís Bernardo soltando uma das suas estrondosas e divertidas gargalhadas. “Essa é de primeira ordem. Hei-de contar isso ao nosso vigário para ver com que cor ele fica”.

“Deus nos livre, batcará. É capaz de barafustar no púlpito e chamar imoralões aos emigrantes”

“E o que pensas fazer agora, João António?”, perguntou Luís Bernando.

O ghor-mand é o terreno em volta da casa que sendo pertença do dono da propriedade, este impõe aos seus moradores ou mundcars, obrigações verdadeiramente onerosas: e as várzeas das Comunidades são os grandes proprietários que as tomam de arrendamento em haste pública ou gaun-pon, disputando os lanços em lutas renhidas e as sub-arrendam aos pequenos cultivadores sem terras, mediante rendas exorbitantes, explorando-os sem comiseração. Por isso, ser dono da casa com uma nesga de terreno em volta para servir de logradouro, e uma pequena várzea onde possa semear arroz no tempo das chuvas e, em tempo seco pimenteiras, legumes e batata doce para consumo doméstico, abrindo um poço quando se não tem serventia da lagoa para aguar a plantação, é o maior sonho do mundcar o que lhe dá o desafogo e a satisfação de ser um pequeno proprietário e o liberta das condições onerosas do sistema de mundcarato.

Outra compensação para a vida de regedor de aldeia são os ‘brincos’ goeses e vem de longe aquele costume, de quando os jograis iam de aldeia em aldeia, de corte, representar os episódios heróicos e líricos das nossas grandes epopeias e lendas doiradas.

Música estridente de flautas e tambores anuncia a aproximação de ‘brinco’. E a gente da aldeia acorre; pressurosa e exultante, para se juntar à volta dos cantadores e bailarinos que, nos seus trajes de fantasia, adornos e coroas auriflamantes de papel doirado, cantam, mimam e dançam as façanhas bélicas de Ramá e Ravon, dos Pandavas e Kauravas, os jeitos de audácia e bravura de Shivaji e Custobá (um herói local) ou comentam, com graça e chiste, malícia e bom humor, a vida da gente da aldeia, numa espécie de revista do ano, para gláudio do auditório.

Telo de Mascarenhas - Advogados e Solicitadores (1975)

Todas as tardes, por volta das seis, José Gregório fazia o caminho da estação para casa, de regresso de Margão, e costumava parar no balcão de Carlos Manoel para dar dois dedos de conversa ao amigo, com novidades frescas colhidas no botequim de David Camilo ou na sala de espera da gare do caminho de ferro e, às vezes, quando dispunha de tempo, para uma partida de xadrez.

José Gregório era vizinho de Carlos Manoel, e ambos, quase da mesma idade, tinham cursado o Liceu juntos. Feito o exame para advogado, e obtida a provisão, José Gregório abrira banca em Margão. Todos os dias ia ele com a pasta atulhada de papeis de demandista, tomar o comboio, na sua via-sacra quotidiana, para o escritório e para o tribunal. Arguto e hábil, de olhos vivos armados de óculos de grossas lentes faiscantes, tinha criado uma razoável clientela, alem da que herdara do pai, que fora um advogado consciencioso e honesto. Jogando habilmente os artigos do Código como jogava as pedras do xadrez, engrolava os juízes, novatos na profissão e desconhecedores das tricas e dos costumes forenses da terra, e conseguia fazer vingar as causas que lhe eram confiadas.

“Imagina tu, Carlos Manoel”, dizia ele uma tarde ao seu parceiro do xadrez, referindo-se aos Licenciados, oficiais do mesmo ofício, “aqueles senhores, lá por terem cursado Direito na Universidade fazem alarde do seu título de Doutor e pretendem saber mais do que nós, com o nosso simples exame de advogado”

“Não admira que assim seja, José Gregório”, observou Carlos Manoel. “Também nós, os médicos, com o nosso curso da Escola Médica de Goa, de via reduzida, no dizer do Dr. Brito Camacho, não podemos competir com os diplomados pelas Faculdades de Medicina”.

“Ora, bolas! Eu só queria ver a figura que fariam esses senhores togados, de enorme prosápia, perante os nossos grandes advogados doutros tempos, com o mesmo exame que nós, como o Avertano, Bruto da Costa, Lourencinho e outros, que mereceram louvores dos grandes mestres do Direito.”

“Esses, sim. Foram grandes advogados e podiam ombrear com os luminares do foro, em qualquer parte. Mas hoje em dia, sem desprimor para si, José Gregório, não temos nem grandes advogados nem grandes causas”

“Tens razão, Carlos Manoel. Concordo, plenamente, contigo. Infelizmente assim é. Nós, agora, vivemos de migalhas e não passamos de cepa torta. É sina nossa”

Rosália veio servir o chá, e José Gregório levantou-se muito cerimoniosamente, para a cumprimentar. Continuaram a jogar, até que Carlos Manoel, movimentando a rainha, deu cheque-mate no rei do parceiro, e disse: “Por hoje, basta. Já tens a tua conta, José Gregório”.

“Ora veja, minha senhora”, disse José Gregório, dirigindo-se à Rosália, “Veja como um médico descamba um advogado no xadrez e dizem que nós é que somos chicaneiros”.

“Bem dizem os ingleses – Lawyer is liar. Na língua que nós falamos não rima; mas deve ser verdade. A vossa chicana é mais de temer, porque pode levar à ruina os litigantes. Enquanto que a nossa, se chicana se pode chamar, é no inofensivo xadrez”.

Passaram a beber o chá louro e perfumado, que Rosália deitara nas chávenas.

“Na verdade, não há como mão de mulher para preparar um bom chá. Nós, os homens, somos desajeitados e sem gosto”, disse José Gregório, continuando a saborear a aromática bebida.

“Obrigada pelo elogio Sr. José Gregório”, disse Rosália, agradecendo.

Tomando o chá, José Gregório levantou-se para retirar, dizendo: “Agradecido pelo seu excelente chá, sra. D. Rosália. E agora, deixem-me ir, que devo ter gente em casa à minha espera. Não calculas, Carlos Manoel, como é espinhosa a profissão de advogado”.

“Espinhosa, sobretudo, para os teus clientes a quem tiras coiro e cabelo”.

“És dum sarcasmo mordaz, Carlos Manoel. O que vale é que não passa de boca”, disse ele sorrindo para o amigo e despediu-se; “Bem, até amanhã, à hora do costume”.

E lá se foi gingando, ajoujado, com a pasta atulhada de papeis de demandista.

Esperava-o, sentado no balcão, o procurador Belmiro, com dois clientes, para recorrer aos seus serviços para uma composição amigável numa disputa de limites, que o próprio solicitador suscitara e alentara com os seus conselhos tortuosos, esperando fazer disso uma mina de inconfessáveis proventos.

José Gregório era para o procurador Belmiro um advogado de recurso, de quem se valia para casos urgentes e embaraçosos, que não sabia solucionar, como aprendiz de feiticeiro que era, e por trabalhar por conta dum advogado de Margão.

“Então, Sr. Belmiro, que bico de obra temos nós hoje?” perguntou-lhe o advogado.

“Coisa de nada, Sr. José Gregório. Estes meus clientes querem ouvir a sua opinião para se resolver uma disputa sobre limites”.

“A minha opinião em casos desses só posso dá-la após prévia vistoria ao local. Mas a hora é imprópria”, disse José Gregório.

“Se o Sr. José Gregório não se importasse, podíamos ir lá agora, que é muito pertinho daqui. É que, um dos meus clientes retira-se amanhã para Bombaim”.


E como o caso de esbulho era patente, a disputa foi prontamente solucionada, comprometendo-se o esbulhador a corrigir a extrema.





O procurador Belmiro para se dar ares de pessoa atarefada, sentado sob alpendre de olas entrelaçados da sua casa, que fazia de escritório e servindo-se duma velha Remington, quase desconjuntada, desatava a escrever a toda a gente aquilo que lha dava na real gana – as autoridades civis, reclamando a destituição do regedor que não lhe fazia bom pêlo, dificultando-lhe as manigâncias: as autoridades eclesiásticas, suplicando-lhes a transferência do vigário, por denunciar nas suas práticas dominicais, os que não observavam o décimo mandamento: aos prováveis compradores de algum prédio à venda em hasta pública, apoucando-lhe o valor e o rendimento, para os afastar da concorrência, com o seu espírito de cambão inveterado, para compra-lo por tuta-e-mais.

O procurador Belmiro era uma espécie de gestor de negócios de defuntos e ausentes, mas mau prestador de contas. Para se furtar ao pagamento da renda de prédios que arrendava, desculpava-se alegando o desaparecimento do negociante do coco, sem lhe ter pago. Deixava relaxar as contribuições que eram de sua conta, para descontar na renda e procuradoria pelos serviços prestados para evitar a execução.

Ia assim aumentando a sua fazenda por artes de tricas e baldrocas, e engordando como um bom burguês, porque o seu sonho era ser também um batcará, como todos os grandes batcarás da terra e fazer-lhes sombra. Homem de poucas letras e algumas classes de inglês, metera ombros à vida com o fim de fazer rapidamente fortuna.

Um dia, um aldeão foi procurá-lo no seu “escritório” sob o alpendre, para lhe pedir um conselho. E como ele o tratasse por ‘Sr. Belmiro’, o solicitador abespinhou-se e disse-lhe:

“Dobre a língua, seu begarim, e trate-me por Sr. Doutor, porque eu sei muito mais de leis do que muitos advogados que por aí pululam, quase tanto como os Licenciados – esses senhores de grande prosápia que, quando peroram nos tribunais, vestem túnica negra, como se lhes tivesse morrido a avó torta. Forte danação! Sem aqueles charlatães, que bem que eu teria governado a vida! Não tenho grandes estudos, é certo; mas a manha e a chicana são o meu segredo:.

O pobre homem ouviu em silêncio e a pé firme a longa objurgatória do procurador Belmiro, sem lhe atinar o sentido. Mas quando compreendeu o sentido da expressão “governado a vida”, fez meia-volta e safou-se, apressadamente, com receio de que o solicitador mal-humorado o despojasse das úncias duas rupias que levava atadas na ponta do lenço, sob o pretexto de lhe ter dado um bom conselho.

Aljube, Janeiro de 1961

Friday, 26 October 2012

Laxmanrao Sardessai - Ouço os Teus Passos, Senhor

Eu ouço teus passos, Senhor,
Na brisa suave da manhã
Vejo o esplendor do teu sorriso
Na luz áurea do sol nascente,
As aves e as árvores
Acarinhadas pelo vento
Comunicam-me o teu canto misterioso
E, a chuva abundante,
Inunda-me da tua graça infinita,
A tua generosidade, sinto-a, Senhor,
Nos rebentos que saem espontâneos da terra
E o azul celeste retrata
A tua alma universal
Vejo isto...
E me curvo reverente
Perante a tua omnipotência
Mas quando vejo uma velhinha,
Carcomida e benta,
Oferecer a um pobrezinho
O arroz da sua tigela,
Lágrimas borbulham nos meus olhos
Retratando o infinito amor
De que palpita toda a criação!

Friday, 12 October 2012

Evágrio Jorge - Menezes Bragança (1966)

Recai hoje o 28o aniversário do falecimento de Menezes Bragança que foi justamente considerado o Maior de Todos os jornalistas de Goa.

Nasceu aos 15 de Janeiro de 1878 em Chandor, filho de Juveniano Menezes de Calapur das Ilhas, advogado que chegou a exercer o cargo de Juiz de Direito. A família de sua mãe, Stael de Bragança, não tendo deixado descendente masculino, fez estabelecer o genro no seu solar e impôs ao neto os apelidos tanto do pai como da mãe. As duas casas eram ricas em posses materiais como em dotes intelectuais. Porém, Luís teve a infelicidade de perder o pai aos 7 anos de idade.

Seguindo o praxe do tempo, Luís fez os seus estudos no Seminário de Rachol e depois no Liceu. Aqui, com excepção da marata, obteve distinção em todas as outras disciplinas. Entrou a seguir na Escola Médica, onde era um dos primeiros dois alunos distintos. Mas logo no primeiro ano foi acometido de febre tifóide, tendo de convalescer por um ano. Aproveitou deste ano para leitura mais vasta e universal. Ganhou gosto de ler as melhores obras literárias. Conhecendo várias línguas como latim, português, francês, e inglês, e tendo franca queda para literatura e ciência, procurou estar ao par das melhores correntes nestes dois campos. Sendo rico, podia abalançar-se a trazer os mais recentes livros e revistas da Europa, que recebia regularmente.

Com os conhecimentos assim adquiridos, o seu talento privilegiado floriu precocemente e, antes de atingir vinte anos de idade, escrevia para jornais como O Heraldo e

(Segue na segunda página)

Nacionalista e enfileirava-se entre os intelectuais do tempo.

Influenciado por Rénan e os enciclopedistas franceses, Menezes Bragança seguiu o trilho de livre pensamento. Animado pelos ideais de Igualdade, Fraternidade e Liberdade, fez-se o paladino da democracia. Em um tempo fez parte do Corpo Redactorial de O Heraldo.

Quando Portugal declarou-se República, por cuja causa se batera denodadamente, Menezes Bragança aspirou melhores dias a Goa e ofereceu o seu apoio ao primeiro governador da República Couceiro da Costa. Pensaram muitos ao tempo que Menezes Bragança fizera-se pró-governamental. Mas, quando verificou que um outro governador, Freitas Ribeiro espezinhava os direitos dos goeses Menezes Bragança serviu-se da sua pena para o atacar.

O seu jornal “O Debate” batia-se pela democracia e pelas liberdades da terra. Esse jornal além de exercer grande influência no governo, preparou uma geração de espíritos progressivos. Não há um só assunto que não tenha versado. E cada assunto que versava, fazia-o com uma superioridade única.

Afim de canalizar as aspirações populares pelos métodos constitucionais, Menezes Bragança serviu-se do Congresso Provincial de Goa. Foi eleito presidente deste organismo em tenra idade. Foi também escolhido para sócio do Instituto Vasco da Gama.

No tempo da ditadura, Menezes Bragança serviu-se do jornal Pracasha para atacar o governo bem como para criar a consciência livre no nosso povo. Racionalismo, ciência e democracia, era os ideais que o norteavam. Batia-se por eles com denodo, mas nunca se rebaixou-se aos ataques pessoais. Era admirador de Jesus, o doce rabi de Galileia, mas não aceitava a Igreja com a única e genuína depositária da doutrina. Insurgia-se conta a injustiça, fosse ele afligida num pobre ou num padre. Era de opinião que devíamos aceitar todas as coisas boas de Europa e também que devíamos prestar atenção aos novos ventos que sopravam da Índia.

Menezes Bragança pugnou valentemente pelos direitos do povo goês. Batendo-se pel República Democrática, tornou-se jus à gratidão da maioria hindu da nossa população, que até então vivia espezinhada. Quando o Governo português fugia de nos outorgar a prometida autonomia administrativa, propôs a abstenção das urnas. Finalmente quando Dr. Salazar brindou-nos com os epítetos de indígenas e assimilados e arrogou à Nação Portuguesa o direito “de possuir e colonizar domínios ultramarinos”, propôs no Conselho de Governo a seguinte moção:

“A Índia Portuguesa não renuncia ao direito que têm os povos, de atingirem a plenitude de sua individualidade, até virem a constituir-se unidades capazes de dirigir os seus destinos, visto ser um direito originário, da sua essência orgânica.”

Uma vintena de anos passados sobre esta moção, a Índia Portuguesa ganhou o direito originário de liberdade. Foi este o maior tributo à sua obra.

Lino Abreu - Os Goeses (1966)

Já se suponha escrava a alma goesa,
De luta incapaz, já sem hombridade,
Na masmorra do Ócio eterna presa,
Jamais sonhando a sua liberadade.

Deita então a cobiça na “Fraqueza”
Olhar que não conhece a saciedade:
“Tão só! E p’ra mais tão fraca a Princesa!”
Fácil é tê-la toda a eternidade!”

Mas não tarda ela a ver o claro dia
Romper nos que julgava escuros céus,
E a “fraqueza” tornar-se em valentia:

Bravos viu lendo ao mundo feitos seus
E onde pensava bravas não havia
Quantas Joanas d’Arc! Quantas, meu Deus!

Sunday, 7 October 2012

Versos de RV Pandit (1963)

“O Meu Rico Amigo”

O meu corpo
É despido
De roupas...

E
São farrapos
As poucas roupas
Que visto.

Não me despreza,
Por isso.
Pela Pobreza
Das minhas roupas.

O sol me veste
Com tecidos de oiro...
E a Lua
Com tecidos de seda
Cor de pérola...

De cobrir o corpo
Dia e noite
Com tais tecidos
Deus me deu
A grande fortuna!

Deus me deu
E só a mim,
Não se esqueça.

“Um faísca só”

A lâmpada
Está
Cheia de azeite...

O pavio
Imerso no azeite...

Está
Tudo pronto
Para receber a Luz.

Mas...

Entre o azeite
E o pavio
Falta a faísca
Que os há de incendiar
Escuridão em toda a parte

Assim
Entre o corpo social
E o pavio do seu coração
Para humanizar a sociedade
Falta só uma faísca

Sem ele...
Nunca haverá luz

Tradução do original concani por Mucunda Quelecar.

Mucunda Quelecar - Um Acontecimento no Mundo Literário de Goa (1968)


Viram a luz da publicidade, no dia 25 do corrente mês, cinco livros de poesias do poeta goês, RV Pandit.

Exprimir em palavras o que o génio dum poeta sentiu e traduziu na sua linguagem é talvez uma das tarefas mais difíceis que há; “é preciso ser-se um Milton” diz-se. Para apreciar o poeta RV Pandit não tenho senão uma qualidade: é ser goês e amar Goa como ele.

O sr. Pandit escreveu os versos não tendo em mira a publicidade, mas simplesmente para o desabafo do seu temperamento de artista, extremamente sensível ao mundo que o rodeia. Ele acalentou durou dez anos essas manifestações que traduziam a sua alma de poeta. Acontecimentos posteriores fizeram com que o poeta achasse necessário e oportuno que os seus versos saíssem à luz da publicidade!

Os cincos livros do poeta RV Pandit marcam uma época na vida da literatura e pensamento goeses. Em si, esses livros representam uma revolução na vida goesa. O sr. RV Pandit é um goês no mais íntimo das suas fibras e quando ele fala, é Goa que fala pela sua boca.

O sr. Pandit identifica-se com tudo o que Goa possui. Não há objecto, forma ou feição que lhe tenha escapado. É admirável a sua penetração em todos os detalhes da vida goesa. Tal penetração só é possível a quem ama entranhadamente a sua terra.

O sr. Pandit é goês e é revolucionário. Os seus versos atestam o facto de que ele atravessa todas as convenções literárias e sociais para atingir a verdade latente em que se vê.

No prefácio a um dos livros “Ailem toshem gailem” (I sang as it came, Eu canto como me apraz) diz o poeta laureado Baqui Borcar: o poeta Pandit, ao contrário doutro poetas não respeita a tradição. Quando eu li os versos de Pandit fiquei perdido numa floresta mas quando avancei fiquei encantado com a majestade natural dela. Essa era a voz do aborígene goês que até hoje não tivera uma oportunidade de se exprimir.

Lembrei-me de Walt Whitman, os versos de Pandit tem um estro, uma imaginação, uma revolta, uma ironia e uma tendência marcada para o sublime”.

Uma característica desse poeta é o seu anseio pela justiça social e o seu humanitarismo.

Outro livro seu aparece sob o título “Mogem Utor Gaudiachem (A Mminha fala dum Gaudó). O autor está tão identificado com a vida dum gaudó que ele exprime tudo o que essa entidade goesa representa. O gaudó é filho da terra, a sua base de sustenção.

Mas a sociedade não o considera, e todavia ele é imortal e passa por todas as vicissitudes sociais sem se alterar.

Sou um gaúdo – diz o poeta. Os outros são grande gente, mas eu sou um gaudó desprezível. Mas há uma coisa em mim. Podeis esmagar-me! Mas não fico pulverizado. Sou o mesmo homem, hoje e amanhã.”

Falando dele diz outro poeta goês Dr. Manohar Sar Dessai: “RV Pandit fala a linguagem dum gaudó. Ele é o filho aborígene de Goa. Goa tem passado por vários regimes políticos, várias mudanças económicas, mas o gaudó tem-se conservado firme. Ele é a base da nossa sociedade. Tem uma vitalidade inexaurível.”

Outros três livros são: Uitalem tem rup dhartalem (Form that will remain), Dharturechem Kavan (Song of the Earth) e Chandraval (Phases of the Moon). Todos esses cinco livros representam o génio versátil e polifacetada do artista e poeta que é o sr. RV Pandit.

Eles não só assentaram um marco miliário na literatura goesa na sua língua mas quando a língua de Goa for reconhecida no mundo, haverá para a nossa terra um prémio internacional.

Laxmanrao Sardessai - Não Desanimes (1965)


Não desanimes, rapaz,
Porque os teus maiores estão
Desanimados e retirados.
O ideal que arde
Nos teus olhos e lábios,
Vale muito mais
Do que a sabedoria e erudição
Que são como os ventos
Que passam.
Enquanto o teu ideal
É como a semente
Às vezes, invisível
Que no solo grela, germina
E lança raízes fundas.
Não desanimes, rapaz!

Friday, 28 September 2012

Floriano Barreto - Velha Goa (1968)

Rainha do Mandovi, ó empório gigantesco
Que assombraste as nações com o teu esplendor,
Um manto d’amargura envolve a tua fronte,
Já não resplandece a luz no teu vasto horizonte
Senão para mostrar-te uns despojos de dor.
Sumiu-se para sempre a tua glória passada
E a fama universal do teu nome temido.

O Escritor Goês Orlando da Costa (1975)

Este escritor apresentou ao I Congresso dos Escritores Portugueses a seguinte comunicação intitulada “Reflexões sobre a liberdade de criação, condicionamentos e liberdades concretas”:

1) Ao abordar o tema proposto “Criação literária, sua especifidade ou Instrumentalidade” apontaria desde já uma pequena mas significante correcção. “Criação literária, sua Especificidade e/ou Instrumentalidade”.

Esta correcção assenta no facto de a alternativa criar uma falsa proposta de problema e por isso – mesmo admitindo-se à discussão a situação de alternativa – não se pode admitir a formula copulativa. Se a especificidade da criação literária pertence ao domínio da própria definição e expressão da criatividade do escritor, a sua instrumentalidade é uma característica, um valor, decorrente dela.

Assim, penso que abordar o problema da especificidade da criação literária é ter que chegar, necessariamente aos domínios da sua instrumentalidade, considerando que a actividade criadora do escritor envolve dois sujeitos e dois tempos necessários do conhecimento e da transmissão: o eu e o outro e, o a seguir, o necessário e o urgente.

2) A criação literária, no âmbito da sua originalidade, é um acto privado, não deixando de ser um facto social.

Um acto privado depende da consciência de um homem – neste caso do escritor – e esta consciência, por sua vez, depende de uma vida real, da sua quotidiana.

Ora, a vida quotidiana traduz uma “condição” subjacente: condição humana, condição social, não obstante factores específicos temperamentais de índole e carácter que são, sem dúvida, intervenientes na criação e porventura dos muito importantes e que dão o “tonus” aquilo a que poderíamos chamar correctamente a “individualidade da criação na liberdade de criação”.

Todos têm a sua “condição”. Os escritores também. A sua criação literária depende da consciência privada – dos seus limites – e da sua “condição” – contexto básico em que interferem factores mutáveis sócio-económicos e políticos. Na antinomia entre estas duas realidades, definem-se, efectivamente, as fronteiras mais ou menos estáveis do campo onde, com maior ou menor exercício de liberdade, se exprime a capacidade criadora do escritor, como homem “situado” que é.

E aqui convém frisar que esta capacidade do escritor e o seu conhecimento das necessidades apontadas pela sua “condição” são, além de tudo o mais, dentro do âmbito das condições de criação literária, responsáveis pela conquista incessante da liberdade – a liberdade daquilo que escreve e como escreve, das opções temáticas e dos modos de comunicação.

A especificidade da criação literária radica-se nessa liberdade de opções e capacidades individuais e, ao exprimir-se, essa criação passa de um nível de acto de responsabilidade privada a um nível de facto de responsabilidade social, tanto quanto provoca uma participação do público com que comunica.

3 – Mas a liberdade que a criação literária reclama e que um escritor a todo o momento tem de conquistar como é que é assumida? Isoladamente? Individualmente? Isoladamente, não. Individualmente, som, mas não apenas, porquanto a sua perspectiva – com todo o respeito pela sinceridade, coragem e coerência do escritor consigo próprio – está comprometida no exercício de uma liberdade que, quer queira ou não, o ultrapassa como sujeito individual. A liberdade de criação não é mais do que a consciência e conhecimento da própria necessidade de criar e comunicar, que, por sua vez, ao transformar-se em actividade, participa de um conjunto social.

E a necessidade de criar contém em si gérmenes combináveis de observação e da participação. Quando reflectimos e imaginamos não estaremos já a ser mais participantes do que apenas espectadores? Sem dúvida. Um escritor é, por natureza, um “espectador observador”. A sua capacidade criadora. Porém (de descobridor, de recriador – que é afinal toda a sua possibilidade inventiva de perspectivar a realidade), acaba por se revelar um instrumento mais ou menos activo na transformação do conhecimento do real humano.

Entenda se por real humano o mundo interior que todos temos e carregamos ao longo dos dias e dos anos e o mundo exterior, que aquele reflecte, e em que inseridos, marginalizados ou não, mas sempre “situados”, nós atravessamos ao longo dos mesmos dias e dos mesmos anos.

4 – No plano da criação literária esse real humano poderá ser definido como o convívio entre a consciência privada do escritor e as motivações e solicitações da realidade circundante – física e social, sensível, inteligível e transformável.

Ao falar em realidade social convém salientar o que anteriormente já se apontou como sendo a “condição” do escritor numa dada sociedade. Não se está a referir ao escritor como classe profissional, mas como homem social, isto é, como “parte de um processo social”. Da sua inevitável inserção numa dada estrutura em que relações sociais de um certo tipo dominam os fluxos da história, resulta que a sua actividade criadora consigo aquilo a que poderíamos chamar uma provocação de instrumentalidade no seio da sociedade, na medida em que não se pode abstrair a criação literária das vias de comunicação. A criação literária envolve indissociavelmente “aquilo que se comunica, a quem e como se comunica”.

Todo este processo propõe, efectivamente, ao escritor a saída da sua consciência privada, o transpor para um encontro de identificação da sua necessidade criadora com uma determinada ideologia. Projecta-o para uma possível consciência colectiva, para uma aferição constante entre a sua necessária liberdade concretas a que num dado momento histórico o ser social tem acesso activo, dentro das raízes culturais e dos problemas do povo que o integra, dentro da sua própria nacionalidade – única, via profunda para a universalidade.

E na aferição constante entre a liberdade de criação literária – que se exprime por uma linguagem que é um instrumento colectivo vivo – por linguagem novas que só criam e fecundam em situações novas ou em vias de renovação e as liberdades concretas que se situam em toda a sua extensão a inegável instrumentalidade da criação literária.

Essa instrumentalidade é, pois, técnica e ideológica. Enquanto técnica, sempre necessária e porventura urgentes por ser ineológica.

Nas capacidades criativas e expressivas de cada escritor, reside a especificidade da criação literária, ao mesmo tempo que é no conhecimento dinâmico da sua condição social no mundo e da responsabilidade oficinal que assume ao recorrer a uma via de comunicação que é a escrita, que se reconhece a sua instrumentalidade, a um tempo linguística e social.

Bicaji Ganecar - Treze (1970)

Após o juramento
Fez-se o ajuste
Do casamento
Mas à hora
Do sacramento
Recusou-se
O noivo
E deu-se tudo
Isso porque
O dia era treze

O rapaz era
Estudioso
Nunca ficava
Ocioso, pois,
Estudava todo o dia
Mas perdeu
Nos exames,
Porque o número
De inscrição
Era treze.

A família doutro
Era boa
E morava numa
Aldeia de Goa
Mas o filho
Era vadio
Foi assim
Porque o dia
Do seu nascimento
Era treze.

Após tanto esforço
Foi lançado
O novo Apolo
Mas teve
Que voltar do meio
De seu caminho
Porque o número
Que levava
Era de azar
Era treze.

Monday, 24 September 2012

Laxmanrao Sardessai - A Velhice e a Poesia (1965)


Dizem que sou velho,
Mas faço, aqui, poesia!
E que fiz durante toda a vida?
Fiz prosa e levei vida prosaica!
Experimentei o mundo,
Vi os bons e os maus,
Observei a natureza,
Os ricos e os pobres,
Os velhos e os novos,
Acumulei tudo, digeri tudo!
E, como um montanhês,
Fui rude e forte
Mas insensível às delicadezas da vida,
Porque o espírito se deleitava
Em ver da vida as rudezas
E, também, os contrastes chocantes
E os seus acidentes e os contornos.
Agora sou velho, como dizem,
E eu acredito,
Vejo nos meus olhos do meu netinho
O tesouro dos céus
E no seu sorriso
O tesouro da terra!
Ele, o meu netinho
Observa, encantado,
O céu, o sol, a lua,
As aves e as árvores,
Os cães e os gatos,
Olha-os, enfeitiçado,
E se ri e se move,
E agita as mãos
E, de olhos radiantes,
Pronuncia uma sílaba
E faz poesia!
Ensinou-me, pois, o meu netinho
A ver e sentir a poesia do Universo!

RV Pandit - Amor Comprado (1968)


O dinheiro
Compra tudo?
Tudo.
Até o amor?
Até o amor
Envolto da desgraça! 

A História de Cinco Inéditos (1954)

Talento e Modestia
Entrámos no edifício sem sabermos em que repartição trabalhava Judit Beatriz de Sousa. Deparamos com o Sr. José Souto que nos resolveu o problema, num gesto elegante que não podíamos deixar de trazer a público – foi ele mesmo a chamar a poetisa.

Já na frente daquele sorriso modesto um tanto ou quanto místico que nos embaraça, vimo-nos impossibilitados de expor imediatamente o que nos levara ali porque a nossa interlocutora atacou diversos assuntos ligados às letras e nós fomos na onde do entusiasmo que percorreu os gestos e as frases de JUDIT.

Falou-se do movimento poético em Portugal, dos mais representativos valores da nossa poesia de hoje, da necessidade de contesto permanente com os bons poetas, da forma e dos temas (disse-nos que está a procurar novos), dos Jogos Florais de Goa, etc.

E a propósito deste certame, a poetisa declarou-nos que, por princípio, não gostava de concorrer. Lá terá as suas razões que achamos de mau gosto discutir.

E quando finalmente notamos que estávamos a roubar tempo de que a “funcionária dos Correios” precisava, lançamos, então o nosso pedido: queríamos um poema para o Número de Pascoa.

Olhou-nos, naquele modo simples e desprendido que define um temperamento e respondeu: “não sei se estarei à altura de qualquer coisa digna dum número especial, mas vou tentar satisfazer o seu desejo”.

Aquelas palavras saíram com tanta sinceridade, tão naturalmente, que nos impressionaram. É que na verdade é difícil alguém pensar tão mal de si como esta talentosa artífice do sonho. Felizmente para nós a poetisa não tem razão. A demonstrá-lo está este poema que Judit intitulou:

Poema da Rua
Eu ando sozinha
Amparada à minha sombra
Na rua.

Há tanta gente na rua
Mas a minha sombra
Continua
Amparando aquela que sou eu.

Tanta gente conhecida
Que agora na minha Vida
É como areia fugida
Por entre os dedos...

Olham-me e dizem segredos:
- “Sexta-Feira de Paixão
Uma sábia distraída...
É uma interrogação...
Parece que está na lua...”
Sei lá que mais, aqui, alem,
Murmura quando me vê
Esta gente que vai e vem
Na Rua
No vaivém da Vida
Envelhecendo...

De longe veio um Poema
Alberto Barros e Sá anda por terras distantes, curtindo entre os solavancos da existência, uma saudade teimosa da sua querida Goa – desta mulher bonita que um dia adormeceu encostada ao Gates, ouvindo as lendas que o mar lhe contava, sôfrego do seu corpo dengoso e quente.

Não pudemos, por isso, tratar directamente da pretensão de “O Heraldo” com o goês que retratou a sua alma lírica nas páginas de O Destino – livro que ainda não apareceu em letra de Imprensa mas que se encontra pronto a seguir para a tipografia.

Felizmente há sempre alguém que se dispõe a colaborar, caso contrário não teríamos podido incluir nestes inéditos o poema que aí vai, cuja publicação foi autorizada pelo autor, através de pessoa amiga.

Tem, assim, o sabor de lembrança que se manda de longe, já que se não pode vir. Um aceno amigo que o homem do cais atira ao viajante desconhecido.

Daqui enviamos a Barros e Sá tudo o que nos é dado pelo seu gesto: a nossa gratidão e a nossa amizade. E que a poesia continue a guiá-lo nos caminhos da beleza, embora a quiséssemos menos subjectiva que nesta.

Visão
Sonhei em vão
Um sonho lindo
Que é feito dele?

Esvaiu-se
Quando sobressaltado
Me Levantei

Vi, vi no fantasma
Negro das trevas
Além, além
Os canteiros sinistros
Dum cemitério
Flores murchas
Flores amareladas
O vento agreste
Assobiando
Por entre lúgubres
Ciprestes

Súbito
Um estrondo
Neve que cai
Acompanhando
A celestial visão
Da minha bem amada,
Partiste, partiste
Sem um adeus
Sem uma palavra
Um beijo não pode
Selar a eterna jornada

Tanto abraçar-te, ó visão
Ó visão esmagadora
E eis que me foges
Um sonho.
Nem tudo morreu ainda...
Um silêncio que vem morrer à porta, avisa-nos de que naquela casa se trabalha religiosamente, sem alardes nem cartazes.

Vencido o primeiro lanço de escada, o ambiente começou de infiltrar-se nas nossas intenções e, sem darmos por isso, achamo-nos frente à ideia de que não tínhamos o direito de desviar o tempo dum homem que, embora vencendo um ordenado, estava a contribuir naquilo que andava ao seu alcance, para uma obra marcadamente humanitária como é esta de valer a todos para quem a vida reservou o pior bocado – o bocado dos desgraçados.

Mas as circunstâncias impunham-se e lá fomos subindo e depois cortando à esquerda, para irmos para ao fundo dum corredor envidraçado, local onde Alfredo Lobato de Faria queima uma grande parte das suas horas, de caneta em punho.

Um aperto de mão. Duas palavras sobre o calor. O autor de Sombras acabou de preencher uma papeleta que tinha sob o domínio do aparo e acomodou-se no seu lugar, a saber ao que íamos.

Agradeceu-nos a lembrança que tivermos do seu “modesto nome” e prometeu-nos ajude.

Entretanto, vieram mais uns minutos de conversas quase inteiramente preenchidos pela palavra fluente e sentida do poeta. A análise do ambiente literário goês deixou-nos inteirados quanto ao carinho que estas coisas merecem a Lobato de Faria. E nós que temos a veleidade de nos supormos interessados num progresso cultural desta terra, aprendemos ali, na serenidade daquele santo, que nem tudo está perdido – pelo menos enquanto restar uma dedicação como a do poeta de

Sintetizando
Homem que vais por este mundo fora
Que queres ser tu mais, intelectual profundo
Ou simples afectivo, pobre embora?
Que queres ser, pois, cérebro facundo
Onde esplendem ideias luminosas,
Ou coração que em noites silenciosas
Chora a dor dos que penam neste Vale?

Que queres ser, qual é tua ambição?
Um Compte, Galileu, “divino” Antero,
São Francisco de Assis, Camões, Pascal,
Miguel Ângelo, Newton genial?
Que queres ser, qual é o teu ideal?

Um Intervalo na Prosa
Onze da manhã. No quartel da policia vai um movimento intenso. Horas de expediente que são iguais em toda a parte onde a burocracia entrou com todo o seu cortejo de impressos e assinaturas, verbetes e ofícios, participações e relatórios, autos e despachos, etc.

Indagamos do paradeiro de Leopoldo Menezes. A praça a quem nos dirigimos tomou a posição correcta de “sentido” e chamou um camarada – o que nos havia de conduzir à presença do poeta.

Fomos encontrar a nossa “vítima” num grupo discutindo qualquer assunto de serviço que, pelos vistos, estava a preocupar aquela meia dúzia de elementos, tal a vivacidade que púnhamos na troca de frases.

Interrompemos Leopolod que nos acolheu com um ar saudável de quem não faz força para ser cortês.

Finas as habituais cerimónias do “então, como vai, passou bem?”. Quisemos saber o que tinha produzido nos últimos tempos.

Que pouco, em verso. Na prosa é que estava a empregar o presentemente as suas horas vagas: duas obras de carácter histórico sobre Goa.

Foi quase um balde de água fria. A um poeta que está em época de prosa não se devem pedir favores de género que levamos engatilhado. E se não descobríssemos o jogo. Se disséssemos que tínhamos ido ali para saber novidades sobre os trabalhos literários do nosso amigo? Era talvez o melhor. Mas, assim, o Número da Páscoa não contaria com a sua colaboração!... Isso, de maneira nenhuma. Reunimos forças e “Eu vim aqui para lhe pedir um poema inédito”. Leopoldo Menezes perguntou-nos a que se destinava a produção. Satisfeita a sua curiosidade, acedeu.

Afinal, tinha sido mais fácil do que pensávamos. É que os verdadeiros poetas, trazem sempre na alma a beleza suficiente para conceber dois sonetos, sem que seja preciso quebrar a continuidade doutra empresa. E a prova aí vai.

Sonhar

Oh! Como é bom sonhar, embora uma mentira,
Ser sol e ser luar, uma estrela cadente,
Teu escravo, mulher, cantando uma lira,
O amor que me destrói matando lentamente!

Oh! Como é bom sonhar um sonho que delira
Como um beijo de hurí sensual e fremente,
Morremos a queimar sós numa ardente pira,
Num amplexo fatal que a morte nunca sente!

Oh! Como é bom sonhar, ser tudo e não ser nada,
Pigmeu ou titã, ser apenas pó de estrada,
Vento forte que obumbra ou um raio de luz!

Oh! Como é bom sonhar, ter o aroma da flor,
Viver só para amar, viver só có o amor,
Morrer no cadafalso ou aos pés duma cruel.
Nem Sempre o Sonho é Possível

Alberto de Menezes Rodrigues era, até há bem pouco, um desconhecido para nós – até ao dia em que nós informaram de que na tipografia Sadananda estava a imprimir-se um livro de versos – “Arroios” – cujo autor vivia em Goa Velha e trabalhava em Pangim, como oficial da Fazenda.

Tivemos mais tarde ocasião de falar ao poeta e de lhe exprimir a nossa satisfação por vermos mais um filho de Goa a procrar o caminho das letras.

Era, portanto, uma porta que não deixaria de se abrir para nos acolher. E não hesitamos.

Grupos apressados entram e saem, num movimento descomendado, ao sabor do tempo disponível e da urgência dos assuntos. Cá fora, as sete letras, enormes e inalteráveis, lá vão atirando para cima do contribuinte todo o vigor da sua presença “Paga!”.

Após um série de perguntas e respostas provocadas pela nosso desejo de encontro com o autor de “Arroios” chegamos a uma sala espaçosa, de semi-penumbra, onde um grupo de funcionários se entregava aos papeis que tinha sob os olhos, numa concentração que era quase volúpia.

Alberto de Menezes Bragança não estava, de momento, mas não tardaria. Efectivamente, poucos minutos decorridos, eis-nos a lançar o golpe de misericórdia. O nosso interlocutor “parou” admiravelmente este “bote dos cem luzes”. Nem pestanejou. Levou as mãos ao rosto, num gesto de quem vai pensar, e disse-nos que não lhe era possível produzir um poema para a data que nós queríamos. No entanto, como lhe custava deixar de nos ser agradável, extrairia um do livro que tinha no prelo. É esse que inserimos abaixo e que não nos parece mal esolhido.

Aquela melodia...
E abrindo a porta envidraçada
Que dava para o terraço,
Um jovem alto e formoso
Avançou, vagaroso,
Até à balaustrada.
A casa era branca e cercada
De altivos coqueiros
E tinha, à sua frente,
Um jardim virante,
Que espalhava no ambiente
Aroma suave e fino,
Ele trazia na mão um violino
E havia muita tristeza
Nos seus lindos olhos.
Àquela hora silenciosa,
Em que ia alta a noite,
A Lua subia majestosa
Pelos caminhos azuis do céu,
Derramando, com profusão,
Argêntea claridade.
O mancebo ergueu os olhos para o alto,
Em calma contemplação.
Depois os poisou sobre as plantas floridas,
Aspirando, com serenidade,
As fragrâncias que elas rescendiam
E, por fim, começou a tocar...
Uma música melodiosa
Ressoava agora no ar.
Era triste, mas tão harmoniosa
Que não parecia deste mundo,
Mas das longínquas regiões do Azul.
Aquelas notas vibrantes
Eram a expressão sublime
Da dor
Que amargurava a vida
Do moço tocador.
A Natureza, em silêncio,
Escutava-as embevecida.
Havia murmúrios das flores,
Em baixo, no jardim.
Uma rosa, comovida,
Virando-se para o cravo vizinho,
Estas palavras lhes soltam aos ouvidos
De mansinho:
“Que harmonia é essa
Que me enleva e domina?
Em toda a minha vida,
Música não ouvi
Tão amena e divina!”
E o cravo lhe cochichou,
Tristemente sorrindo:
“Na serenidade maravilhosa
Daquele semblante
Eu vejo nítidos reflexos
Dum sofrimento incessante,
Que dilacera essa alma formosa.
Mas escutamos com atenção.
Pois agora a melodia
Tem não sei quê de magia.”
Nesse momento vibrou no ar
Um anseio enternecido:
“Eu quisera reclinar-me
Sobre aquele peito dolorido,
Para lhe aliviar o amargor
Com o meu suave olor!”
Era a voz dum mogarim
Que alvejava no jardim.
Com efeito, o violino
Era sublime, sublime,
Que maviosidade ele espalhava
Naquele ameno recinto!
O arco ligeiro
Agora deslizava
Apenas sobre a prima,
Num arranco impressionante,
Soberbo culminante!
E chegou, afinal, o momento
Em que o exímio violinista
Cessou de tocar.
Depois, mansamente,
Se recolheu ao seu aposento.

Instantes após,
Na amplidão enluarada,
Uma voz maviosa
Tremente, ressoou
Da trepadeira
Das cinco chagas
Que crescia viçosa,
Enroscando-se às balaustradas,
Do alvo terraço,
Uma flor graciosa
Desatou a falar:
“Eu vi de parte o violinista
Moço formosos, cujo olhar
Era triste, mas fascinantes
Eu escutei, com muita emoção,
Qual comovida amante,
O brando arfar
Daquele triste peito.
Algumas pétalas minhas
Quase que tocaram
Nas suas vestes branquinhas,
Ouvi, ó esbeltas flores,
Atentamente,
O que vos vou agora contar!
Precisamente no instante
Em que ele cessou de tocar,
Do seu olho direito
Uma lágrima brilhante
Eu vi brotar,
Que, logo depois,
Resvalando rapidamente
Pela face ebúrnea,
No meu seio tombou.
Ai, que comoção
Nesse momento senti!
Julguei que me rebentava
O coração, 
Eu recolhi, com grande ternura,
Essa lágrima ardente e pura,
Dádiva generosa
Que o Eterno enviou
Para avaliar a dor
Daquela alma desditosa.
Mas que vendaval feroz
Passou por aquele coração,
Na primavera da vida,
Nessa linda idade
De sonhos e ambições?
Ai longe de mim a intenção
De perscrutar
O segredo que oculta
A tremenda desventura
Que o tortura!
Ó lágrima silenciosa!
Lágrima cristalina!
A ti que és a coroa gloriosa
Do desventurado tocador
E que agora tremeluzes formosa
Na minha corola virginal,
Eu te contemplo, com intenso amor!
Bendita sejas tu, bendita sejas,
Ó lágrima ideal!”