Friday, 24 June 2011

A.D. - Nobilarchia Local (1977)

De quanto em quanto, aparecem em letra de forma referências à genealogia de Fulano ou Sicrano. Não acho descabido este meio de propaganda, sabido que o atavismo proveniente de boa cepa pode vir a influir favoravelmente na vida de um homem... Ora esta facto por mera associação de ideias, convocou-me ao espírito um mundo de reminiscências do que, vai já para anos, ouvira a um velhote patusco da minha aldeia, muito versado na Nobilarquia Local. O homem comprazia-se em desenrolar episódios vários, um que outro algo picaresco pondo à mostra a calva de muitos pretensiosos a blasonarem de fidalgos de quatro costados... O finório do velhote sabia contar isso com o seu peculiar sainete a dar a narração sabor de anedota. À titulo de curiosidade, vou reproduzir um deles, que se outra valia não tem, servirá quando menos para “desopilar o fígado dos leitores pouco dotados do sentido de humor”, no conceito do Reverendo Dr. Martinho Noronha, sem nutrir, porém, pretensões de ombrear com ele na sua ironia fina e alada.

Nos tempos que já lá vão, em que os governadores e vice-reis portugueses da Índia, por uma simples ordem de serviço faziam dos seus Pedrus, alferes de esquadra, quando lhes desse na tineta, um deles e dos mais prepotentes que por cá andaram, tinha um cozinheiro, lá das bandas da beira-mar, um virtuoso na arte culinária. O bom do governador, um ‘gourmand’ impenitente exigia ao seu Pedru, variações constantes no seu menu palaciano. E o pobre do nosso Pedru tinha de dar tratos à imaginação para inventar iguarias esquisitas a sabor do amo. Um dia, porém, já farto das suas caturrices, lembrou-se de fazer um xacuti de galo e serviu-lho ao jantar. O amo, de palato regalado pelo esquisito manjar, devorou-o avidamente até lamber os beiços e, chamando o cozinheiro à câmara vice-real, disse-lhe com palmadinhas no ombro: “Pedru, tu és a nata dos cozinheiros de Goa!”. O homenzinho, babando-se de gozo, dormiu nessa noite o sono dos felizes, sonhando com alguma benesse vice-real...

Noite velha, o Pedru estremunhando, saltou do seu catre ouvindo um burburinho pelos corredores do paço. Envergando à pressa o seu roupão de ganga saiu do quarto. Tudo andava numa roda viva – os camareiros e os famulos do paço a correrem desatinadamente; os aulicos a deambularem com a cara de caso, cofiando as venerandas barbas, pelos corredores anexos à câmara do doente que se contorcia no leito, soltando urros medonhos. Os cirurgiões da cidade reunidos em conclave estavam em brasa, incapazes de diagnosticar o mal e o governador a uivar de dor e praguejar contra a inépcia dos esculápios palacianos... O nosso Pedru, porém, que era um topa-a-tudo, deu no vinte. Obtida a vénia, consoante a pragmática palaciana, com curvaturas dorsais e zumbaias aproximou-se do amo já exausto do forças e, após o beija-mão da praxe, suplicou-lhe humildemente: Permite-me Vossa Senhoria, que eu faça alguma coisa a ver se posso aliviar o Vosso Sentimento? – Pois vai lá, meu Pedru. Faz o que quiseres que estou em artigo de morte.
O ladino do Pedru, aproximando-se do leito do enfermo, fez vigorosas massagens no baixo ventre por longo tempo, e, depois, introduzindo profundamente o indicador da mão direita no augusto recto do amo, descobriu um ossículo encravilhado na sua base. E, após hábil manobra, removeu-o destramente sem ninguém dar por isso. Era um ossículo do galo do xacuti, que obstruía a base do recto. O Vice-Real soltou um longo suspiro de alivio e abraçando-se ao cozinheiro, disse-lhe debulhado em lágrimas de alegria e gratidão: “Meu caro Pedru, tu vales mais que todos os cirurgiões juntos da terra. Não fosses tu eu rebentava de dor. Tu terás uma recompensa condigna pelo teu assinalado serviço...

E a munificência vice-real houve por bem conceder de uma penda ao bom do Pedru um vasto prazo-de-Coroa a valer quase um condado com todas as regalias inerentes...
Foi esta a origem de uma nova árvore genealógica que de lá para cá foi tida por nobre, enxertando-se através dos tempos, no seu tronco plebeu, vergônteas das árvores genealógicas mais distintas e nobres da nossa terra, sentenciava o meu velhote. E, para comemorar o nobre evento, o nosso simpático Pedru escolheu como brasão do seu solar um majestoso galo de barro, que colocado no cocoruto do balcão, em atitude de cantar, parece proclamar aos quatro ventos a origem da sua nobreza. É esta a razão por que no conceito popular, a nobreza desta casa está marcada com o epíteto de nobreza do C..., concluía o velhaco por entre casquinadas sonoras...

Anedota ou narração verídica?

Não estou habilitado a decifrá-lo dada a minha índole pouco afeita a meter-se em cavalarias altas nesta delicada matéria.

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