Sunday 19 June 2011

Guilherme Santos - Misérias sem fim (1957)

A escuridão do quarto pesa sobre mim como se todos os fantasmas do meu passado se tivessem reunido para me esmagar!

Insónia dolorosa que me fatiga, que me desespera, que me oprime!

Quem teria dito que recordar é viver?

Será realmente?

Para mim, afinal, recordar é pior que morrer:

É sofrer de angústia e desilusão.

De um maço amarfanhado, que momentos antes ainda estava repleto, tiro um cigarro, o meu último cigarro. O fósforo faz-me pestanejar fortemente. Sopro uma baforada amarga de fumo e a sua mancha clara, espalha-se no ar e quase materializa na forma de um rosto branco, pálido, fantástico, um rosto de mulher que me fita, que sorri...

Docemente?

Escarnecedoramente?

Não sei precisar!

A sua imagem é tão forte, tão precisa, tão real que nem movo um braço sequer, receando dissipá-la ao menor movimento.

Ao longe, um receptor qualquer transmite um tango.

Oh, aquele tango!

Porque, precisamente, o tango que mais odeio, o que mais receio de ouvir?

Quantas vezes a enlacei fortemente, carinhosamente, ao som dessa melodia!

Quantas palavras doces e ternas eu murmurei aos seus ouvidos, quantas verdades, quantas mentiras, quantas falsas promessas, Santo Deus!...

E a vocalista, lá ao longe, vai pronunciando esses versos sentidos, chorados, que eu sei de cor!

“La comparsa de miséria sin fin desfila en torno de aquel ser enfermo que cedo há-de morrir de pena...”

De pena!

Que cedo há-de morrer de pena!

Morrer de dor!

Que tormento!

Tento tapar os ouvidos com as mãos e sinto-as trémulas e geladas!

Em vão! No meu subconsciente aqueles versos torturantes, continuam a martelar, compassadamente “morir de pena... de pena, de pena, de pena!...”

Oh sim! Quem dera poder morrer neste momento, poder apagar na mente esta visão que noite após noite me persegue, me tortura, me enlouquece!

Esquecer esse momento doloroso em que ela morreu.

Esquecer esse branco leito do Hospital, onde, pálida com a mão presa na minha, os olhos verdes repletos de saudades da vida que lhe fugia do amor, da sua vigorosa juventude em flor, eu beijei pela última vez, os seus lábios frios, rígidos e descorados!

“Morrir de pena!”

Foi assim que ela morreu!

De pena por não poder ser minha, de pena que eu lhe mentira cinicamente, de pena porque, quando a realidade surgiu esmagadora e monstruosa, num desespero, ela destruiu dentro de si, aquele elo, aquele pequenino traço de união que nos faria felizes para sempre, se ela pudesse ser minha... se eu não lhe tivesse mentido!

“Miséria sin fin,

Desfila...”

Pelo Mundo, a humanidade pervertida e cínica, faz desfilar misérias sem fim – No amor, na amizade, no ódio, na traição... miséria, sempre miséria.

No abortar de uma vida em gestação.... miséria, podridão, sangue, eterna miséria.

II

A dor aguda de uma queimadura nos dedos, faz-me despertar subitamente daquele torpor semelhante à morte!

O cigarro consumido, esquecido é arremessado longe, violentamente!

Fito o mostrador luminoso do relógio. Quatro horas da madrugada!

Hora perversa aquela!

Quantas vezes, àquela mesma hora eu a enlaçava ainda. Quantas vezes, às quatro da manhã, eu a beijava ainda com loucura, com frenesi, nos lábios húmidos e ardentes.

Oh meu Deus!... Quantas mentiras eu não disse às quatro da manhã?

- Amar-me-ás sempre?

- Sempre, sempre querida! Acaso não o sabes tu! Não o duvides meu para ti? O mesmo ardor nos meus beijos, o mesmo fogo apaixonado das minhas carícias?

Ela furtou-se subitamente ao abraço com que tentava envolvê-la e, numa voz estranha, repassada de profunda tristeza, murmurou:

- Sim! Sempre o mesmo, mas eu duvido de ti. Desculpa-me. Bem sei que te aborreço, mas pressinto que em breve te vou perder! O teu ardor!... Não será ele apenas a lógica e bem humana manifestação da natural tendência de um homem que deseja a mulher que confiadamente o ama, que se lhe entrega, que se não lhe nega nunca? Oh meu amor... e eu amo-te tanto!

Com uma lágrima tremeluzindo ao canto dos olhos, ela rogou com veemência...

- Casa comigo! Casa comigo!...

(Segue na página 3)

Porque evitas sempre a conversa quando te falo em casamento? Diz-me!... Eu porque duvido de ti. É esta a minha mágoa!

Calmamente, premeditadamente, como homem que sabe dominar os sentimentos íntimos, treinado na Escola Cínica da Vida e do Amor, cortei as suas lamentações...

- Mas... meu amor! Nunca disse que não casaria contigo! S... s.. im! Casaremos um dia, mas, por enquanto, é forçoso que esperemos. Só te peço que não duvides de mim nem da lealdade que sempre manifestei para contigo. Eu amo-te, ouve bem, amo-te com toda a violência do meu ser, com todas as minhas forças do meu coração! Tu és minha e eu,... eu sou teu, só teu! Ninguém, ninguém neste mundo poderá jamais separar-nos!

Ela levantou os magníficos olhos ainda húmidos e tristes e hesitou ainda, fitando-me bem de frente!...

- Mas...

Para iludir a pergunta crucial que se seguiria fatalmente se ela conseguisse falar, para esquecer e mascarar a minha repugnante falsidade, um beijo violento, esmagador, perturbante, uniu bocas.

E, de novo a enlacei, e, de novo, frementes, jovens, vigorosos, nos lançamos uma vez mais no louco turbilhão das carícias sem fim.

Depois... Cinco horas da madrugada!

A essa hora, que eu classificava como perigosa, ela protestava sempre, quando eu me erguia para me dirigir à casa:

- Porque te vias embora? Aborreço-te?... Fica. Fica mais um bocadinho!

Bocejando, enfadado, invariavelmente, às cinco da manhã, eu respondia:

- Impossível querida, impossível! Tenho de te deixar agora!

- Mas impossível porquê? Porquê, Santo Deus?

Impacientava-me então e respondia já com certa rudeza na voz que não perguntasse mais nada, que as mulheres eram todas iguais e que se ela não confiasse cegamente em mim, então era melhor encerramos o assunto com um adeus eerno! Depois mudava de voz e suavemente, dizia-lhe uma razão qualquer de ponderar e pedia-lhe com meiguice que fosse boazinha, tal como eu sempre desejava que ela fosse para mim!

Finalmente, ela suspirando hesitante, acabava sempre por ceder, conformando-se, livrando-me momentaneamente da sua perigosa curiosidade feminina!

III

Cinco e meio da manhã.

Cuidadoso regresso a casa, sempre surpreendido pela esposa desperta!

Depois, novas perguntas, novas recriminações justíssimas, sempre repelidas com o mau humor e a vivacidade dos que não têm razão, dos que labutam na mentira, na perversão, na infidelidade, na traição aos mais solenes dos solenes juramentos.

E depois?

Depois, o silêncio amuado, o silêncio torturante que pouco durava porém, porque, há sempre no homem, qualquer coisa que pode vencer a razão de uma mulher que ama: precisamente, o amor sincero que essa mulher nos dedica e do qual, nós, fazemos a nossa força, a nossa couraça, o instrumento paradoxalmente protector das piores perfídias e deslealdades.

E depois... bem... um beijo quente, falsamente ardente, cópia estereotipada daqueles que se deram momentos antes noutro quarto, noutra mulher e, a seguir, uma comedia de amor, tardia, olheirenta, desvairadamente cansativa.

E de novo, o silêncio!

E depois, outra noite que desce a seguir ao dia que passou célere, outra noite igual à outra... outra e mais outra.

Um mês, seis meses, um ano, dois anos!

E depois?

Depois, a tragédia, o drama!

Miséria da vida!

Um corpo que se desfaz em sangue puro, incontível, torrente vermelha e trágica de glóbulos rubros e brancos, brancos e rubros!

Morte! Desolação! Crime! Consciência!

E depois?

Depois da morte? A vida!

A vida?

Sim! A vida, prenhe de recordações dolorosas é certo, mas recordações fugidias que, uma nova mulher, um outro amor... depressa atiram para o olvido.

A vida... O que é a vida afinal?

Um drama a que se segue uma comédia, uma tempestade que amaina e é substituída pela bonança!

A comédia da vida!

A comédia do amor!

Novas juras se hão-de trocar, novas mentiras se hão-de dizer, novos lábios se hão-de beijar, novos afagos, novas sensações... Miséria.

E a vida não pára, e a vida se renova constantemente!

O que é a vida afinal?

Vida – turbilhão de miséria

Vida – miséria sem fim

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