Friday, 3 June 2011

Guilherme Santos - Sari Branco (1958)

Estavas linda, nessa noite!

Branco sari a flutuar à doce aragem, a contrastar com o negro ardent de duas tranças perfumadas.

Estavas divina, nessa noite.

E quando te vi surgir da penumbra a que te acolheras, qual visão etérea de um conto de fadas, toda a angustia até então sentida se evolou no meu peito e, a certeza desse amor, mil vezes recalcado no fundo dos nossos corações, desse amor cheio de entraves, de impossíveis receios se materializou, senti que no Mundo, nada poderia vencer-nos, nada podia separar-nos!

Vieste!

Branco sari a flutuar ao suave vento da noite, a contrastar com o negro argente de duas tranças perfumadas!

E renovaste nosso amor!

E foste minha, nessa noite inesquecível, nessa noite sem igual.

E os nossos sonhos e os nossos anseios, tornaram-se uma realidade! E o futuro se delineou risonho, prometedor como um bálsamo forte e revigorante, a sarar as feridas de duas almas que se queriam, que se procuravam, que se encontravam, afinal!...

E os receios se dissiparam como o fumo de um cigarro que se consome, que se esvai para nunca mais voltar!

E a noite passou!

Noite de sonho, noite ardente, noite de amor!

Noite dolorosa, contudo, porque a amanhã se aproximava a passos largos afinal.

Porque existe afinal o “amanhã” se o “hoje” é belo?...

Porque não para a vida, no próprio momento que deve parar?

E a noite passou! E o dia rompeu!

E tu partiste afinal, deixando-me apenas o perfume, o sabor doce dos teus beijos e a imperecível recordação desse sari branco, etéreo, a flutuar vaporoso à doce aragem da noite cálida, a contrastar com o negro ardente de duas tranças perfumadas.

Tu partiste e eu fiquei, de olhar perdido no céu a contar às estrelas já pálidas no firmamento, a linda história de amor que havíamos escrito e vivido nessa noite que tanto custou a chegar, mas que findou tão depressa!...

E a penumbra que me envolvia, pesada e triste, companheira silenciosa e fria, foi a ouvinte atenta da queixa magoada de um coração, do lamento pungente de uma alma apaixonada que, passada a noite, rompido o dia, voltava à solidão, ao sofrimento, ao desalento, à incerteza?

E lá ao longe, a mancha branca de um sari cor de luar, a flutuar à doce aragem da madrugada. Mais um adeus, mais um olhar e... uma rua deserta, sem ninguém, uma recordação, uma saudade, nada mais!

Mais nada?


Não... Em mim, vivo sempre a esperança de outras noites iguais e no meu peito, canta a suave certeza de um grande amor, imperecível, como o meu... como o teu!...





Estás linda essa noite!

Branco sari a flutuar à doce aragem, a contrastar com o negro ardente de duas tranças perfumadas.

E agora estás longe! E agora estás distante!

Voltarás?

E esse amor jurado, incontível, indomável, sem igual, deixará de ser uma realidade? Terá de ser uma quimera?

Tu estás longe, tu partiste e eu, vivo apenas de saudade dessa noite inesquecível!

... uma rua sem ninguém!... Ninguém!...

... um último adeus!... O derradeiro adeus!

... E agora?

Agora, só esperança de outras noites iguais e, no meu peito, a Altiva Sinfonia de um grande Amor, como o meu... como o teu!

Estavas divina essa noite!


Branco sari a flutuar etéreo e vaporoso à doce aragem, a contrastar com o negro ardente de tuas tranças perfumadas!



Ele escrevera isto, num rompante, num arroubo de paixão, sentindo ainda nos lábios a ardente sensação dos lábios dela, há já muitos meses, lá nessa Goa pequenina mas tão linda, onde o Mandovi, plácido e imperturbável, parece murmurar os ritmos dolentes dos mais dolentes Mandos!

Como tudo havia mudado!

Como tudo e ele próprio, era diferente agora!

Não. Ele não era o mesmo. Regressara enfim à sua terra natal, à sua bem-amada e portentosa Angola, à sua risonha e incomparável Luanda, onde as acácias em flor, têm encantos sem igual!

Recordava-se ainda da sua partida de Mormugão! O barco a afastar-se da muralha daquele cais onde desembarcara dois anos antes ainda repleto de saudade daqueles a quem deixara. Ela não viera dizer-lhe adeus. Não viera! Para quê? É tão dolorosa uma despedida! Mas uma carta – um branco envelope com um selo de uma tanga – havia-lhe chegado às mãos ainda na véspera! Era uma carta longa, sentida, transbordando de dor e ternura, de revolta e de compreensão:

“Vais partir, eu sei. Que me resta pois? Enquanto tu caminhas ao encontro da vida, da luz, da alegria dos prazeres de uma grande cidade, como é a tua, eu, pobre de mim, apenas tenho comigo a sombra, o fantasma de um amor, uma saudade pungente que me mata!

Tu partes, eu sei! Vais ao encontro da felicidade junto daqueles que muito te querem! Eu fico. Mergulho mais e mais no abismo negro tremendo de desespero!

Não sei se resistirei a tão dura prova, não sei!

Até me parece que o coração por vezes pára de bater e que a morte se aproxima a passos largos.

Mas não fiques triste com estas pobres linhas, nem sequer penses que me fazes grande mal, porque eu, ... eu amo-te ainda e sempre, e, nunca deixarei de ser tua!

Não vou ao cais dizer-te adeus, mas à hora de partida, estarei no alto de Mormugão, em sítio bem visível do porto para que me possas rever uma vez mais. Não quero que a minha imagem se te apague muito cedo da memória.

Levarei o sari branco que vestia naquela noite em que me foste buscar de gari, lembras-te ainda?...

Termino porque vou chorar, termino porque sofro muito! Adeus meu amor! Sê feliz, para sempre feliz, porque eu, nesta infelicidade em que fico, perdoo-te porque te amo muito!...

Adeus! Um último beijo, nos teus lábios, daquela que jamais deixará de ser tua.”

Ele conseguira sorrir então, ao terminar a leitura daquela passagem final da carta. As mulheres nunca mudam em qualquer pais, em qualquer latitude. Sempre as mesmas. As mesmas frases, as mesmas recordações! E, guardando a carta no bolso da farda, fitou o mar que em breve sulcaria e depois, lentamente, o alto de Mormugão, como que pensando o que valia mais. O regresso ao lar, à vida brilhante e animada da sua grande Cidade, ou ficar preso àquele amor, tantas vezes jurado, mas tão cheio de dificuldade e impossíveis!...

E o barco partiu afinal ao cair da tarde!... E lá em cima, no Alto de Mormugão, um sari branco a esvoaçar ao longe, como naquela noite que despertara tão gratas recordações havia já tantos meses;


E o barco partiu e singrou dois Oceanos e Goa ficou longe, muito longe, milhas e milhas para trás!....





LUANDA!

A marginal de grandiosos edifícios! Os oitavos e os quintos andares sucedendo-se. O grande edifício do Banco de Angola. Depois os cafés em que tantas vezes estivera sentado. A Portugália, A Bijon, O Pólo Norte!... O Galo!... E as boites, os Cabarets!... O Bambi, O Choupal, O Rex, O Copacabana, O Retiro de Fados Os Marialvas! Os grandes cinemas, os programas de variedades, O Restauração, O Tropical, enfim a sua vida passada, a vide de movimento, vida de agitação, tudo regressara afinal. O ambiente em que havia nascido!

E depois, o tempo passou! Um mês, dois meses, e ele a aturdir-se com o seu trabalho e com os seus prazeres. Que diferença!

Até lhe parecia que nunca estivera em Goa, que nunca saíra dali!

E mais dias passaram e ele, mais e mais se embrenhava nessa vida desenfreada, nesse turbilhão atordoante, fatigante, inerrável.

Mas, que sucedia? Não era feliz, afinal? Não tinha tudo quanto desejava?

Não!...

Assim como depois da vida, só há a morte, depois do amor, só existe o amor!

Agora acontecia o inevitável! Não podia regressar, nunca mais e veria a ele, amava-a! Amava-a ainda mais do que dantes, amava-a como nunca a amara!

E então, curvando os ombros num gesto de desalento, deixando pender a cabeça num desânimo invencível, caminhou pela rua repleta de gente atarefada que o ignorava que lhe dava encontrões, que o desconhecia! Sentia-se tão só, tão triste, tão desesperado como naquela noite de suave brisa lá em Goa, quando ele partira depois de uma noite sem igual, depois de docemente, meigamente, lhe ter dado o seu amor, aquele amor que agora o corroía, que o fazia sofrer!

E caminhando lentamente, ao acaso, olhar perdido no firmamento, banhado pelas multicores luzes dos anúncios luminosos, enormes pirilampos rubros e verdes, brancos e azuis, ele balbuciou, como uma oração sentida, as palavras que escrevera há muito já!...

Estavas linda nessa noite!

Branco sari a flutuar à doce aragem, a contrastar com o negro ardente de duas tranças perfumada!

E tu partiste, deixando-me só! Não! Eu, eu parti, deixando-te só!

E agora?

Agora? Nada mais!

Mais nada?... Sim! Só a saudade pungente, a saudade que dói, que fere, que mata, que enlouquece!

Tu estás longe e eu, eu não posso voltar a ser teu!

Oh a vida!

Oh a dor!

Oh o teu sari branco!

Esse sari cor de luar que me perturba, que me enlouquece!

Oh o teu sari!... Recordar o teu sari branco é morrer!

E os anúncios luminosos, gigantescos pirilampos multicores continuaram a banhá-lo com a sua luz rubra, verde, branca e azul, enquanto ele continuava a camninhar sem destino, preso ao sortilégio daquele sari branco que não poderia esquecer jamais...

E duas lágrimas de saudade, incontíveis, ardentes, escoaram-lhe pelas faces pálidas e sem expressão!

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