Quando as canhoneiras, antigos barcos de Guerra navegando a vela e a vapor, aportavam ao torrão de Goa, após uma longa viagem de alguns meses e ali estacionavam muitos anos ancorados no caudaloso Mandovy, a marinhagem instalava-se na cidade de Pangim, a caminho de Campal e próximo a um denso palmar que se estendia para alem de Santa Inês, onde casitas, de branco pintadas, desseminadas, se escondiam sob a amena frescura e sombra das longas palmas dos coqueiros.
Habitava essas modestas moradias, que do exterior nos pareciam desertas, uma humilde casta hindu que se dedicava ao culto da deusa Lakshmi. As mulheres conhecidas por “bailadeiras”, alem de cuidarem da nascente Cabeça de Vaca, e executarem as sagradas danças junto das suas divindades e nas festas nupciais gentílicas.
Em missão de soberania e animando o Mandovy lá se encontrava então a canhoneira “Sado” em suas graciosas linhas, e para além das serranias dos Gates, cuja majestosa silhueta se divisa do ancoradouro, o domínio altivo dos ingleses.
Na época das chuvas, que coincide com o calorento estio, a canhoneira despia-se dos seus mastros e cobria-se de um toldo de olas. A tripulação então passava os seis meses de invernada nos quartéis e a oficialidade ia habitar, geralmente em grupos de dois, as casas gentílicas, no limite daquele palmar, ladeando o magnifico largo de Misericórdia aonde, por vezes, se efectuavam jogos desportivos.
Não poucas vezes acontecia, na minha juventude e após as lições para o dia seguinte, passar as tardes na residência desses oficiais. Quanto à alimentação elas seguiam o regímen receitado pela sua religião. Num meio de submissão a obediência a que foram criada elas sabiam ser discretas, conservando assim a necessária harmonia naquele ambiente.
Não seria tão jovem como as demais mas possuía o encanto de boas maneiras e um metal de voz, de franco gargalhar, que a todos enlevava. Comunicativa, não conhecendo obstáculos pois, tudo resolvia por sua iniciativa, e o trabalho domestico, era geralmente feito ao ritmo do seu cantar.
Naqueles meus últimos meses em Goa meu pai havia sido generoso para comigo e estendia-me com especial paciência.
Na noite que lhe disse adeus ouvimos a triste história da amorosa Zaiú, naquele anoitecer e na calma do palmar, quando as andorinhas deixavam de rondar e o morcego iniciava o seu esvoaçar misterioso, àquele mesma hora em que o horizonte se tingia de olaia.
“Zaiú era, como tantas outras como nós uma desditosa bailadeira. Elogiam, em segredo, o nosso cantar sagrado, o nosso bailar e o amor mas, jamais o fazem em público, pois seria desprimor aos olhos do mundo. E a nossa sina, o nosso destino. Já no berço nos coroam com a grinalda de singelas flores amarelas de “fulo” distintivo da nossa triste herança, da nossa humilde e infeliz casta,
O templo estava em festa, todo iluminado, todo cintilante de luzes e cristais numa atmosfera de essências raras e inebriantes. Um lindo conjunto de bailadeiras, em perfeição absoluta, harmonioso, o que de melhor se viu então, nos encantava, elevava-nos o espírito. Zaiú, a estrela da festa, toda vaporosa, esvoaçando nas ondulações musicais, parecia divagar, sonhar em um reino distante, em um mundo maravilhoso onde todos se amavam e se respeitavam sem distinção de castas, almas de infinita bondade donde brotavam felicidade, dedicação e amor. Ao despertar daquele sonho de encanto, suavemente, nos seus olhos semicerrados ainda, uma imagem de homem do mar se desenhou no meio daquela turba de gente, todo interessado, mesmo maravilhado pela devoção daquele bailar sagrado. Novo período e foi assim o começo duma dedicação bem funesta, onde lágrimas não chegaram a aflorar, mas o coração sangrava nela, preferindo dá-lo a morta que tê-lo dentro do seu peito em constante soluçar.
Dois longos anos passaram sobre eles irmanados de uma dedicação sem igual. Pontualmente, finda a labuta de bordo, alie estava junto dela como se outra coisa não existisse no mundo. Zaiú bem sentia ao fundo da alma o afecto daquele rude marinheiro que ninguém mais tinha a não ser sua mão, uma pobre velhinha que lhe escrevia, nele pensando noite e dia.
Chegara o fatídico dia, dia que todos nós afinal, tememos. Angustiosos momentos esses que nos toldam o coração de amargura. Aquele barco recebera ordens de regressar. De abandonar as águas de Goa.
Bem quisera ele ocultar aquele verdade, igualmente tão crua para si. Mas, não se sabe como, ela o soube e na véspera, como aqui neste momento connosco, juntos pela última vez, lhe falou, sem uma lágrima furtiva que viesse toldar o ânimo do seu companheiro de tantos anos.
- Escusas de me convencer do contrário. Vais deixar-me. Há dias que trago no coração esta profunda mágoa. Resta-me pedir-te um favor, um favor apenas já que vais para tão longe para junto da tua mão. Quero que me dês esse crucifixo, preso a camisola, que ela te deu. Desde este momento abraçarei a tua religião converter-me-ei à religião de Cristo.
E, na madrugada seguinte, noite ainda, abalou, para as dunas de Gaspar Dias. Ali, serena, com a alma a chorar e a morte no coração, ergue alto os braços como numa oração à passagem do barco que, ligeiro, se escondia na neblina, em direcção ao mar. Ainda a alva não rompera e já a pobre Zaiú de olhar fito na esteira do barco longínquo, afogava o seu desgosto e paixão naquelas águas tumultuosas, que se abriam para receber aquele lindo corpo de mulher que soubera amar. Dias depois acharam o seu cadáver. Presa ao ‘choly’ vinha a Cruz do ente amado, bem junto ao coração.
- É assim o amor de bailadeira – concluiu a Mogá. E tirando da cintura um anel com uma safira – adquirida, por certo, com o dinheiro que eu lhe dava – amorosamente, bem meigamente no seu triste olhar, introduziu-me no dedo, dizendo com firmeza - para que nunca te esqueças de Mogá. É a última noite que tu passas na tua Terra. Um dia regressarás. Voltaremos a ver. Adeus, adeus. E fechou-se na sua humilde alcova.
Já distante, volvi os olhos em direcção aquela casa, então toda manchada de prata pelo esplendor dum luar maravilhoso.
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