Fevereiro de 1941. Quando me encaminhei nessa tarde luminosa e triste para a Câmara Municipal de Margão, onde se realizava uma homenagem ao poeta acabado de falecer, levava eu o coração ansioso e confundido. Era a primeira vez que ia ouvir falar de um grande poeta indiano contemporâneo, que até dias antes eu ignorara. Ignorara sem pecado, porque as selectos e os livros de história que então me instruíam, não falavam em Tagore, como nunca falaram em Vyassa, Valmiki ou Kalidass. E, no entanto, vinte e oito anos atrás, em 1913, o poeta Rabindranath Tagore fora mundialmente consagrado com o Prémio Nobel da Literatura.
Apesar dos meus treze anos incompletos, assisti àquela sessão nos Paços Municipais da minha terra com uma angustiada consciência adulta, em que um súbito e indefinível sentimento de culpa agravava a minha comoção. Era como se assistisse ao funeral de meu avô, que teria desesperadamente desejado amar em vida. É essa sensação diluída que ainda hoje revive em mim, quando leio páginas de Rabindranath Tagore ou contemplo com orgulho e inexplicável satisfação o seu semblante de profeta, admirável de serenidade. Essa mesma sensação, a que hoje se alia uma capacidade interpretiva dos destinos do Homem diferente da que está contida no idealismo tagoreano, que me detém a mão ao escrever estas linhas, que apesar de curtas e despretensiosas não deixam de ser uma homenagem ao grade poeta, pedagogo, pensador e infatigável paladino da compreensão e convívio entre os homens e os povos do Oriente e do Ocidente que foi Rabindranath Tagore.
Ao lembrar a passagem do 1o centenário do nascimento de Tagore não podemos esquecer a prodigiosa riqueza da sua personalidade de artista e pensador, cuja vida e obra se fundem num mesmo gesto, humilde e soberano, de coerente procura da verdadeira felicidade, da defesa do património comum da humanidade, para além de fronteiras e religiões, da aproximação das culturas dos continentes do nosso mundo – mensagem de espiritualidade e universalidade.
Há cem anos nascia Rabindranath Tagore, no seio de uma família aristocrática e culta da província de Bengala, no nordeste do sub-continente indiano. Do meu familiar especialíssimo que envolveu a sua infância e particularmente de seu pai, Devendranath Tagore, cognominado ‘Maha-Rishi’ (Grande Santo), que foi um homem de afirmada personalidade mística e continuador do sociólogo hindu Ram Mohan Roy, o jovem Tagore recebeu as primeiras influências.
Educado, com os seus irmãos mais velhos, pelos preceptores da família, cedo sente nascer em si o inconformismo em relação aos sistemas aos sistemas tradicionais de ensino e a rebeldia contra a disciplina e a reclusão que lhe são impostas. De longe, através de uma janela que se abria para o exterior, contemplava ele sem fadiga a mais directa e imediata lição da vida – a natureza, que veio preencher a sua solidão e primeiras meditações, como uma lição de plenitude e liberdade, como um fim com o qual o homem, na realização do seu destino, deve comungar. “Das minhas mais longínquas recordações, amava apaixonadamente a Natureza”.
Dotado de uma sensibilidade invulgar, desde muito novo cultivava a poesia, com uma admirável espontaneidade. Aos 12 anos publica os primeiros poemas e aos 16 escreve para o jornal Barathi fundado por um dos seus irmãos. Teria 18 anos de idade quando, para cursar Direito, pois a família destinava-o à carreira de advogado, partiu para Inglaterra, de onde regressa aos 20 anos com os estudos por concluir.
O contacto inteligente e sentido com os poetas bengalis, seus antepassados inconformistas de entre os séculos XIV e XVI, Chandi Das, Kabir, Chaitanya, Vidyapati, que, num plano literário, haviam concorrido para afirmar a vitalidade da língua do seu povo, marca na obra de Rabindranath Tagore os primeiros frutos de uma herança nacional, da qual a sua poesia, em particular, e a restante obra, em geral, irá influir, numa fase de amadurecimento da sua personalidade, para caminhos de um mais amplo e profundo significado humano.
É, porém, o encontro com a mensagem quotidiana dos cantores vagabundos da sua terra, os ‘Bhauls’, a aproximação com o povo trabalhador e a vida rural, a compreensão subtil da Natureza que floresce na planície indo-gangética, que vai determinar a fisionomia última do seu lirismo, o fundo místico de coordenadas livres do seu pensamento, o ideal de amor da poesia de Tagore. Os poetas-cantores ‘Bhauls’, nome que vem do sânscrito ‘vayu’ e significa ‘excêntrico’, caracterizam-se pela sua não sujeição aos costumes sociais correntes, pela adoptação de uma como que religião de consciência que desconhece ritos ou sacerdotes e não se submete a um Deus particular (“se Deus está no templo, então a quem pertence o Mundo? Se Rama está na imagem que tu adoras, o que se passa onde não há imagens? Kabir), pela aceitação da liberdade de espírito, do amor por todos os seres, da alegria do corpo e do espírito, do respeito pela natureza e pela personalidade humana.
É nesses princípios activos que mergulham, com efeito, as raízes da universidade do espírito tagoreano. É também na conjugação rítmica imediata da recitação e do canto – forma de expressão ‘bhaul’ – que poderemos encontrar a sua mais autêntica forma de culto, espontâneo e livre, culto da vida, culto da unidade de todas as coisas: “Tudo o que existe vibra com a vida, porque saiu da vida”.
Quando aos 40 anos de idade, retirando-se para Shantiniketan (O Asilo de Paz), o ‘ashram’ (eremitério) criado por seu pai a cerca de cem milhas de Calcutá, Tagore funda, em pleno contacto com a Natureza, a sua famosa escola, começa a sua invulgar experiência de pedagogo, a que a Índia desde logo ficou a dever uma obra de notável alcance educativo e social. É com o dinheiro do Prémio Nobel da Literatura, que em 1913 obteve o seu belo livro de poemas “Gitanjali” (A Oferenda Lírica), que Tagore cria, anexa a Shantiniketan, a universidade internacional Visvabarathi, aberta a estudantes e mestres de todos os países, que por este meio procurava realizar um dos objectivos do internacionalismo e pacifismo da mensagem de Tagore – a união do pensamento oriental e ocidental, a aproximação dos valores culturais do Ocidente e do Oriente.
A personalidade de Rabindranath Tagore – cuja acção encontra de certo modo, em Romain Rolland um equivalente no mundo ocidental – através da sua vasta e riquíssima obra artística, de poeta e de músico, é um dos poucos exemplos do nosso século, em que um lirismo de inspiração autêntica e consumando-se num profundo e continuo sentido da beleza visível, se alia a um pensamento filosófico-místico assenta numa perene e universal liberdade de espírito, a uma verdade pedagógica liberal e progressiva, a um sentimento enraizado de amor e fraternidade humanos, onde não cabe, como princípio teórico e prático das relações humanas, qualquer forma de submissão ou lei de sujeição de um homem a outro homem ou de um povo a outro povo.
É essa mensagem de Paz e Amor que, com 54 anos de idade e durante vinte anos de espantosa actividade de conferencista, Radindranath Tagore, como um autêntico poeta ‘Bhaul’ em peregrinação pelo mundo, trouxe, ele próprio, aos distantes países da Europa, da América e do Extremo-Oriente. E essa mensagem que para além das contradições do seu idealismo filosófico, face a uma consciência colectiva surgida da evolução histórica das sociedades actuais dos dois hemisférios se mantém, quase sagrada para nós com a singular herança espiritual legada aos homens do mundo pelo maior poeta da Índia contemporânea.
Uma aluna de Arquitectura que actualmente vive em Évora (Alentejo - Portugal) acaba de me dar a conhecer a obra de Rabindranath Tagore. Fiquei espantado com a sua qualidade e sensibilidade; procurando novos dados sobre este grande homem, encontrei a sua página. Parabéns!! A minha missão será agora dar a conhecer, aos meus aluno, a obra de Rabindranath Tagore mas também o seu trabalho e o seu blog.
ReplyDeleteMuito obrigado! Grato pela visita.
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